Nelson Rodrigues dos Santos: ‘SUS – Uma Síntese do seu desenvolvimento’

No texto a seguir, Nelson Rodrigues dos Santos, médico sanitarista e ex-presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) faz uma síntese, apontando traços positivos e negativos do Sistema Único de Saúde (SUS). Veja abaixo.

Este mini-texto foi elaborado a partir de fala sobre nosso livro, a convite da Associação dos Ex-alunos da Universidade Estadual de Londrina – ALUMNI em 21/09/23. Optamos por pequeno ensaio, sem o rigor de artigo científico. Nossa grande referência cinge-se às diretrizes constitucionais do direito universal de cidadania à saúde. Com a atenção básica cobrindo 80-90% da população, com 80-90% de resolutividade, e atenção de média e alta complexidade cobrindo os 10-20%, oportunamente referidos. 

Abordaremos fatos e faces na dinâmica do SUS, positivos e negativos perante as diretrizes constitucionais, fatos e faces marcantes, por igual, nos seus 34 anos. O que visualizamos nos quatro enfoques a seguir.  

PRIMEIRO ENFOQUE – AVANÇOS IMPACTANTES, CONSISTENTES E APARENTEMENTE IRREVERSÍVEIS 

Crescente e consistente inclusão social em periferias urbanas desde os anos 1970, que se tornou explosiva nos anos 1980 e mais ainda com a CF/1980, guiada pela diretriz da Universalidade. Até meados dos anos 1990, quase metade da população total, antes excluída de qualquer serviço de saúde, estava incluída.  

Com as diretrizes da Integralidade e Equidade parcialmente implementadas só na Atenção Básica e a da Regionalização ainda não implementada, os avanços sensíveis do SUS cingem-se até hoje a “ilhas” de avanços, na prática, com ângulos ainda reversíveis, mas retomados com tenacidade por vezes heroica. Persistem no território nacional, nos 34 anos do SUS, as “ilhas” de Atenção Básica – AB com 80-90% de resolutividade, com reconhecimento mundial do nível das equipes de Saúde da Família, o SAMU, os CAPS, o controle da AIDS, a ANVISA, os Hemocentros (neste momento objeto de PL mercantil no Congresso Nacional), os transplantes de órgãos e tecidos, as centrais de regulação, os consórcios municipais que tentam em vão minimizar a omissão da Regionalização, etc. 

Notável foi a assunção pelos poderes Municipal e Estadual, nos anos 1970, isoladamente e depois pelos COSEMS (ainda na fase de germinação) e o CONASS, em plena ditadura, decisivas iniciativas históricas perante a responsabilidade pública com a saúde da população, nas periferias urbanas e vilas rurais, a seguir, as mostras estaduais e nacional de experiências bem-sucedidas, patrocinadas pelos COSEMS e CONASEMS, e, mais recente, a efetivação da responsabilidade do SUS durante a pandemia-COVID.  

Também notável foi a assunção do pré-SUS desde os anos 1970, pela Universidade Pública e Institutos de Pesquisa em Saúde, pela opinião pública e mídia, incluindo o período pandêmico agudo.  

SEGUNDO ENFOQUE – LIMITES NO IMPACTO DOS AVANÇOS: O PERFIL DA PRODUÇÃO DOS SERVIÇOS 

Tomaremos os totais quantitativos somente como partida para reflexões sobre o quadro qualitativo: a AB – Atenção Básica, a MAC – Média e Alta Complexidade Assistencial e os SADT – Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico. Partiremos das médias nacionais do atendimento anual, por volta de 3 bilhões na AB, 2 bilhões na MAC e 1 bilhão nos SADT. 

Somente como síntese do perfil assistencial dominante nos 34 anos do SUS, vemos a predominância abusiva e incontrolável de terceirização para entes privados, na política nacional de recursos humanos, na de internações hospitalares e na de SADT, respectivamente, por volta de 70%, 65% e 94%, redundando em precarizações nas relações de trabalho no SUS, na baixa cobertura efetiva da Atenção Básica, com resolutividade média ainda mais baixa. 

Os serviços de MAC e SADT, em regra, inertes perante a imprescindível função de retaguarda de referência à AB, incluindo a contra-referência. E mais: funcionando como porta de entrada real, com massivo e evitável atendimento especializado e SADT, redundando em prolongadas esperas, agravantes ou cronificantes e até óbitos evitáveis. E mais: evitando a omissão de socorro, acabam consumindo vultosos recursos que faltam à ampliação e resolutividade da AB. Recursos esses, três vezes maiores que os destinados à AB, fechando-se o ciclo vicioso anti – modelo SUS, que perdura e aparentemente consolida-se nesses 34 anos. 

O altíssimo impacto positivo dos 6 bilhões de atendimentos anuais do SUS ao direito humano à saúde, aliviando doenças, mortes e sofrimentos, não deve, porém, aos 34 anos da sua vigência, ser pretexto para camuflar e tergiversar sobre o caráter tardio, muito tardio e evitável que persiste predominando na maioria desses atendimentos, doenças, mortes e sofrimentos. 

Além disso, a lógica da formação e utilização dos profissionais de saúde, pouco foi estruturada sob as diretrizes constitucionais do SUS, como a formação médica ainda atrelada ao estímulo federal à expansão de escolas médicas privadas, com mensalidades até R$12 mil, para formandos que reporão esse investimento, saturando os médios e grandes centros. Mais adiante, no 4º e último enfoque abordaremos o que reputamos fatores causais sobre o caráter tardio evitável no SUS. E desde já, reverenciamos os recursos humanos envolvidos com o SUS, desde agentes comunitários às especialidades mais sofisticadas. 

Em aparente contradição com o perfil assistencial dominante, nos 34 anos do SUS, com o que iniciamos este 2º enfoque, aprofundam-se iniciativas de definição e capacitação das equipes de saúde de família, a ponto de exemplos e reprodução internacional, multiplicam-se encontros regionais e nacionais de AB e Saúde de Família como ocorreu recentemente em Fortaleza. Nosso país é campeão em transplantes públicos de órgãos e tecidos, além das redes CAPS, SAMU e Hemocentros, todos de concepção e funcionamento de reconhecimento internacional.  

Destacamos que, perante o manifesto predomínio das insuficiências e distorções na implementação das diretrizes constitucionais, os acertos, apesar de contra-hegemônicos, acumulam evidências e visões de futuro, positivas para a maioria da sociedade. Não por outro motivo, mesmo sob a manifesta e desumana precarização das relações de trabalho no SUS, que se estende à maioria dos profissionais que atendem nas clínicas credenciadas pelas operadoras dos planos privados de saúde, vêm predominando postura sensível aos direitos à saúde, dos usuários no SUS e consumidores nos planos privados.  

Isso ficou evidenciado nas altas hospitalares na fase aguda da pandemia, 17 vezes maiores que os óbitos, assim como entre estes, os de 893 médicos(as) em Outubro/2021 e de 872 enfermeiras(os) em Outubro/2022. 

No quarto e último enfoque deste texto, abordaremos as prováveis causas estruturais das distorções aqui resumidas, que injuriam a massa dos usuários e também o pessoal de saúde. 

TERCEIRO ENFOQUE – O RETARDO, PELO ESTADO E GOVERNOS, NA iNCORPORAÇÃO DE DESCOBERTAS CIENTÍFICAS EM BENEFÍCO DA SOCIEDADE 

Tanto o tempo para a transformação das descobertas científicas em novas técnicas produtivas viáveis, como os interesses comerciais a serem superados, em regra geram atrasos. A grande revolução industrial europeia na segunda metade do Séc. 19 gerou inédito avanço científico e tecnológico incluindo os campos da Microbiologia, Farmacologia, Imunologia, Anatomia Patológica, Meio Ambiente, Clínica Médica, perfis profissionais na saúde e outros. 

Em decorrência desses avanços, estudiosos experientes no campo da saúde, desde o início do Séc. 20 passaram a formular intervenções mais precoces, preventivas e de diagnóstico/tratamento precoces, localizadas próximo às populações expostas em áreas urbanas e rurais, entre eles, Lord Dawson, cujo relatório final muito repercutiu na Inglaterra e Europa. Nascia aí a Atenção Primária à Saúde com potencial de resolver 80-90% das necessidades de saúde e de ser porta de entrada para a atenção ambulatorial especializada e hospitalar. 

Sob esse paradigma, após a arrasadora 1ª Guerra Mundial na Europa, seguida da criação da antiga URSS, esta incluiu, a partir de 1923, um sistema universalista de saúde com base na APS. O mesmo aconteceu após a ainda mais arrasadora 2ª Guerra Mundial, com a criação dos Estados de Bem-estar Social – EBES europeus a partir de 1945, com o paradigmático NHS inglês e expansões ao Canadá e vários países. 

Nesses países, a implementação e consolidação dos sistemas públicos de saúde com qualidade, apoio e pressão da população, precisaram de 20 a 30 anos para sua consolidação. Em nosso país, a partir de 1955, iniciaram-se os debates sobre as raízes de possível Estado de Bem-estar Social – EBES, repercutindo na saúde, com a 3ª Conferência Nacional de Saúde em 1963. Somente após 20 anos de ditadura (1964/84), e com o vasto debate social nos anos 1980, foi gerado na CF/1988, o Título da Ordem Social, típico do EBES, contendo o SUS. 

Já nos anos 1990 o Governo Federal, cedendo passivamente aos novos ditames da globalização financeira, na saúde, além do marcante subfinanciamento federal na prestação pública de serviços, que se reproduz até hoje, decidiu pela interrupção de promissores projetos de autonomia tecnológica e industrial em andamento, como no caso dos IFAS (Ingredientes Farmacêuticos Ativos) essenciais na produção de vacinas e outros fármacos, também dos hemoderivados (fatores de coagulação, gamaglobulina, e outros), e demais insumos básicos nas áreas eletroeletrônica e outras, o que até hoje nos mantém dependentes de caríssimas importações. 

São 34 anos; agora, em 2023, com torcida para evoluir a iniciativa recém-anunciada de um complexo econômico industrial de saúde com R$42 bilhões, 23 do setor privado e 19 do setor público (BNDES, FINEP, Fundo Nacional de C&T, Ministério da Saúde e mais 10 Ministérios). 

Quanto à política para o sangue e hemoderivados, o retardo federal na eficácia da gestão da HEMOBRÁS, criada há 20 anos, além de outras distorções, desconsiderou o reconhecido nível da incorporação tecnológica na rede dos Hemocentros, e o potencial da própria HEMOBRÁS no controle da qualidade na coleta, fracionamento, armazenamento e na produção de hemoderivados, o que agora nos coloca diante de nefasto projeto de emenda constitucional, de explícita privatização mercantilista nesse espaço. 

QUARTO ENFOQUE – O RUMO E A HEGEMONIA NOS 34 ANOS DO SUS  

Dos recursos públicos (federais, estaduais e municipais) que financiam a atenção à saúde da população e somam 3,8% do PIB, apenas 1,7% vêm do governo federal, e o restante, composto das elevações somente municipais e estaduais nos 34 anos do SUS. Nosso per-capita público: 5 a 6 vezes menor que a média dos países da OCDE. Ilustramos o desinvestimento federal nos recursos humanos públicos, hospitais públicos e SADT públicos: – no SUS, respectivamente 70%, 65% e 94% são comprados pelo governo no mercado.  

Paralelamente a essa radical distorção, ocorre drástica privatização na própria gestão pública de unidades públicas: segundo o IBGE em 2019, 73% das unidades públicas de saúde estão geridas por OSs, PPPs, OSCIPs, etc. Por outro lado, nos 34 anos do SUS, o governo federal vem financiando regiamente o mercado de planos privados de saúde, mantendo o per-capita dos 25% da população, consumidora dos planos privados, 5 a 6 vezes maior que o dos 75% dependentes só do SUS. Esse financiamento público dos planos privados é realizado pela renúncia fiscal do IRPF e IRPJ, cujo valor anual ultrapassa o do Lucro Líquido legalmente declarado ao Ministério da Fazenda pelas empresas de planos privados. Além de polpudos empréstimos subsidiados do BNDES, entre 2006 e 2008, para edificações hospitalares privadas de porte médio e grande. 

Assim sendo, a política federal para o SUS apresenta-se sob duplo perfil: o da política explícita, definida pelas diretrizes constitucionais, e o da política implícita, definida nos últimos 34 anos, pelas diretrizes e atos aqui expostos, que se referem a outro sistema público: “mix público-privado perverso”. Pobre para os 75% mais pobres e privado estratificado para os restantes 25%.  

Estratificação essa, que inicia nos setores mais aquinhoados da classe média-média e a totalidade da classe média alta e da elite social, com oferta explicitamente dominante de serviços privados contratados, em especial os SADT, de maior incorporação tecnológica e custo. 

Temos, portanto, um sistema Universal, mas estacionado em baixa realização da Integralidade, baixíssima da Equidade e nula da Regionalização. Sob os ângulos das políticas públicas de Estado e de Governo, assim como da relação Estado-Sociedade, todas as citações e comentários expostos quanto ao financiamento, modelo de atenção, incorporação de tecnologias e distanciamento do pacto social explicitado na CF/1988, referiram-se, sem exceção, nos 34 anos do SUS, a todas as gestões do governo federal e respectivas coligações partidárias. 

Algo mais estratégico, informado, global e competente, enquanto “real política de Estado implícita”, “acima” de cada governo federal e, por meio deste, submetendo os estaduais, municipais, a mídia e a própria opinião pública, a esta política implícita. A nosso ver, as positivas reações em defesa do SUS, aqui relatadas nos dois enfoques iniciais, significam historicamente, uma janela contraposta à atual hegemonia dessa política de Estado. E uma esperança concreta de sobrevida do SUS. 

A seguir, mais três estratégias anti-SUS que vemos como elementos também decisivos para a atual hegemonia privatista no setor saúde:  

  • Ao contrário da quase totalidade dos EBES europeus, Canadá e demais, nossa “nomenklatura” estatal federal – Legislativo, Judiciário, Executivo (Ministérios, Autarquias, Fundações, Estatais, etc) e Ministério Público, é contemplada com os planos privados de saúde mais caros, pagos pelo erário público, incluindo assistência no exterior.
  • Passada a vitória constitucional em 1988, após a maior mobilização social da nossa história, com o massivo pleito social pelo SUS, incluindo o movimento sindical, o governo federal passa a canalizar os pleitos de assistência à saúde dos trabalhadores formais, não ao SUS (Ministério, Secretarias e Conselhos de Saúde), mas sim à Justiça do Trabalho, na pauta dos dissídios salariais coletivos, então acrescida do acesso subsidiado aos planos privados de saúde. Ao que as Centrais e estrutura sindical aderiram. Nosso país passou a ser o único EBES constitucional, com a “potência sindical mobilizadora por atenção à saúde”, desviada para a arena das relações salariais, de trabalho e planos privados de saúde. 
  • A partir de 2015, com a legalização da vinda do capital estrangeiro para nosso mercado de planos privados, estudos em andamento observam nesse pesado mercado, acelerada concentração de capital americano e europeu, acompanhada de crescentes aplicações no mercado financeiro especulativo global, avolumando a evasão do setor saúde para o setor financeiro especulativo. Os mesmos estudos em andamento, a partir do potencial da promiscuidade nas contabilidades dos hospitais e dos SADT privados contratados tanto pelo SUS como pelas operadoras de planos privados, levantam a probabilidade do fluxo de recursos públicos aos privados complementares, integrarem crescentemente a evasão da saúde para a especulação global.  

Finalizando e mal comparando: – a atual redução em torno de R$18 bilhões no orçamento federal/2023 do SUS, está muito bem analisada na nota do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA e Associação Brasileira de Economia em Saúde – ABrES, de 08/10/23 (idisaonline@idisa.org.br), que remete a reflexivas comparações: a) nossos 1% mais ricos usufruem de isenção do IRPF equivalente a 2,5 orçamentos federais ao SUS, b) nossos depósitos em paraísos fiscais em 2014, a 9 orçamentos federais do SUS, e c) os juros e encargos da nossa dívida pública em 2023, a 11 orçamentos federais do SUS. 

Também, a vigência da isenção fiscal para os lucros e dividendos. Também a permissão para patrimoniar ganhos mensais acima de 160 salários-mínimos, visando evitar incidência do IRPF/IRPJ. Também a evasiva das emendas parlamentares que distorcem o grande debate do Legislativo nas prioridades do Orçamento Geral da União perante os direitos sociais e desenvolvimento. São recursos financeiros extraídos da sociedade e a ela sonegados, que poderiam ser do SUS, da Educação, de outros direitos humanos, da ciência e tecnologia, etc., mas vazando pelo ladrão. 

Sob o ângulo do processo civilizatório, referenciamos quatro marcantes momentos: 

a) a 3ª Conferência Nacional de Saúde/1963, 
b) o maior debate social de nossa história nos anos 1980, gerando o Título da Ordem Social na CF/88, c) os quatro avanços impactantes nos 34 anos do SUS aqui citados no 1º Enfoque, e  
d) a resistência e desenvolvimento incessantes do PSF, dos CAPS, do SAMU, dos Hemocentros, do controle da COVID e tantos outros, ainda que contra-hegemônicos. 

OPORTUNO ADENDO: – de Conrado Hubner Mendes, Prof. de Direito Constitucional/USP  

35 ANOS DE AMBIÇÃO DEMOCRÁTICA” – Folha de SP – 05/10/2023 

A Constituição Federal Brasileira sob ameaça dos gabinetes, dos porões e da hermenêutica – Trechos 

“Produto da Assembleia Constituinte mais democrática que já tivemos, o texto final foi impactado pela participação de movimentos sociais.” “O texto previu motores para implementação de direitos. O SUS e o sistema de educação pública, subfinanciados, foram as maiores conquistas civilizatórias, ao lado da proteção ambiental, das comunidades indígenas e quilombolas.” “A sociedade que se pretendia fraterna, pluralista e sem preconceitos, mata como nunca. Os homicídios chegam a 50 mil por ano, quase 80% de pessoas negras, a polícia matou 7 mil em 2022, com morte de 161 policiais, e somos vice-campeões de assassinatos de ambientalistas.” “Os encarcerados cresceram 20% nos últimos 5 anos e as prisões são centros de treinamento do crime organizado.” “A CF/1988 ainda busca operadores que lhe façam justiça.”