NT° 61 do IPEA sobre o gasto federal com Vigilância em Saúde na última década e necessidade de reforço do orçamento do Ministério da Saúde para enfrentamento à pandemia pelo coronavírus

por Fabiola Sulpino Vieira e o cebiano Rodrigo Pucci de Sá e Benevides

O objetivo desta nota técnica é apresentar o gasto federal com vigilância em saúde no período de 2010 a 2019 e discutir a necessidade de reforço do orçamento do Ministério da Saúde (MS) para esta área, considerando a centralidade do papel deste ministério não só para a coordenação do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE), mas também para todas as ações e serviços de vigilância em saúde.

A vigilância em saúde está relacionada à realização de “ações de vigilância, prevenção e controle de doenças transmissíveis, pela vigilância de fatores de risco para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, saúde ambiental e do trabalhador, e também pela análise de situação de saúde da população”. Em resumo, é constituída por ações de vigilância epidemiológica, ambiental, sanitária e saúde do trabalhador.

A vigilância em saúde é uma das onze funções essenciais de saúde pública, as quais constituem um conjunto indispensável de ações, sob a responsabilidade primária do Estado, que são fundamentais para melhorar, promover, proteger e recuperar a saúde da população por meio de ações coletivas.

(…)

Por meio do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE), o MS articula instituições públicas e privadas, que notificam a ocorrência de doenças e de agravos à saúde, e orienta condutas a serem tomadas por estas instituições, em uma complexa rede envolvendo as três esferas de governo.

Dessa forma, dada a complexidade das atividades de vigilância em saúde que são desempenhadas pelo MS, na sua condição de dirigente nacional do SUS, e as exigências atuais por maior coordenação dessas atividades frente à pandemia causada pelo coronavírus, busca-se, com esta nota técnica, contribuir com a identificação de medida relevante cuja decisão de implementação esteja sob a governabilidade do governo federal. Para subsidiar tal decisão, apresenta-se o gasto do MS com vigilância em saúde de 2010 a 2019, a fim de subsidiar a discussão sobre a necessidade de ampliar a alocação de recursos para esta área.

Gasto do Ministério da Saúde com Vigilância em Saúde (2010-2019)

No gráfico 1, apresentam-se as despesas liquidadas e a soma das despesas do exercício pagas e dos restos a pagar pagos no exercício. Nota-se redução das despesas com vigilância sanitária e manutenção no mesmo patamar das despesas liquidadas com vigilância epidemiológica entre 2010 e 2019, que passaram de R$ 2.516 milhões para R$ 2.504 milhões a preços constantes. Ressalta-se o volume elevado de pagamento de despesas com vigilância epidemiológica em 2010. Em 2009, o Brasil enfrentou a pandemia pelo vírus Influenza (H1N1), o que contribuiu para gerar um volume expressivo de despesas inscritas em restos a pagar, as quais foram pagas em 2010.

Gasto do Ministério da Saúde com Insumos

Destaca-se das despesas com imunobiológicos, os gastos com a aquisição, o acondicionamento e a distribuição de insumos para prevenção e controle de doenças (gráfico 2). Esses gastos incluem a compra de larvicidas, inseticidas, preservativos, gel lubrificante e kits diagnóstico. Pelo orçamento, não é possível distinguir as despesas realizadas com a compra de kits diagnósticos. O que se pode dizer é que os recursos que foram utilizados para tanto até 2019, foram necessários à aquisição de insumos para a prevenção e o controle de outras doenças que não a Covid-19, tais como, sífilis, hepatites virais, HIV/Aids, malária, tuberculose, hanseníase, entre outras doenças. Portanto, estão relacionados a doenças endêmicas e não endêmicas no Brasil, mas com pouca probabilidade de redução de sua incidência e prevalência no curto prazo, o que deve, no mínimo, manter a demanda por insumos no seu manejo.

Gasto do Ministério da Saúde com Vigilância Epidemiológica por modalidade de aplicação

No gráfico 3, detalha-se a despesa federal com vigilância epidemiológica, basicamente com ações e serviços nesta área, por modalidade de aplicação.

Essa abertura da despesa liquidada revela que no período analisado houve ampliação dos recursos transferidos aos municípios e redução dos repasses para os estados e o Distrito Federal. O valor mais alto de transferência aos estados em 2010 pode ser explicado ainda pela necessidade de implementação de ações e serviços para enfrentamento à pandemia causada pelo Influenza, já mencionada. Entre 2011 e 2019, as transferências se mantiveram praticamente no mesmo patamar para os entes estaduais e são ampliadas para os municipais. Por sua vez, as aplicações diretas do MS apresentaram redução entre 2010 e 2019, o que revela queda dos investimentos diretos do órgão na realização de ações e oferta de serviços, o que pode até, em certa medida, dificultar a coordenação do SNVE por parte do MS. Em 2019, a despesa liquidada, executada diretamente pelo MS, foi de R$ 42 milhões.

Testagem para o Covid-19

Como tem sido amplamente divulgado, uma das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) no enfrentamento à Covid-19 é a testagem de pessoas com sintomas da infecção pelo coronavírus. Segundo a OMS, a decisão de testagem deve ser baseada em fatores clínicos e epidemiológicos e estar relacionada com a avaliação da probabilidade de infecção. A organização continua recomendando que qualquer caso suspeito seja testado.

No Brasil, em protocolo de manejo clínico da Covid-19 na atenção primária, publicado em março de 2020, o MS informa que se pode avaliar o quadro da doença de maneira clínica e laboratorial e, considerando a fase atual de mitigação da epidemia, já com transmissão comunitária, que o “diagnóstico etiológico só será realizado em casos de síndrome respiratória aguda grave, junto a serviços de urgência/emergência ou hospitalares”. Ou seja, recomendou a realização de teste laboratorial para o coronavírus somente nos casos de pacientes com sintomas graves.

Até recentemente, o MS vinha se manifestando no sentido de não ampliar a testagem para pessoas com sintomas leves. Representantes do governo federal falaram da escassez de testes,19 mas nos últimos dias anunciaram o aumento da oferta de exames e da testagem para todos os profissionais de saúde em contato com a doença e para as pessoas que procurem as unidades básicas de saúde (UBS) com síndromes gripais.

Tal decisão pode estar relacionada ao aumento da oferta de kits de diagnóstico e da capacidade de os laboratórios públicos realizarem o exame laboratorial, mas também não pode ser descartada a possibilidade de que não contasse com recursos financeiros suficientes antes de ter tomado a decisão de ampliação da testagem. O próprio Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e, consequentemente, ao MS, desenvolveu um kit para teste do coronavírus. Ademais, o SUS conta com uma importante rede de laboratórios de saúde pública, sendo o MS responsável pelo assessoramento e pela cooperação técnica para a implementação dessa rede, em cooperação com os estados e o Distrito Federal. Segundo o MS, os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacen) dos 26 estados e do Distrito Federal se tornaram aptos a realizarem exames para o coronavírus a partir do dia 18 de março. Assim, amplia-se a capacidade do SUS na realização da testagem para a doença, mas é preciso, ainda, ampliar a oferta de kits diagnóstico.

O órgão anunciou recentemente a publicação de um chamamento público para compra de matéria-prima para produção de testes para o coronavírus e informou que a Fiocruz já disponibilizou 30 mil kits de diagnóstico e encomendou mais 40 mil kits para entrega em abril, os quais serão distribuídos aos Lacen.

Considerando as informações apresentadas nesta nota técnica, na próxima seção, apresentam-se as considerações e a recomendação ao Ministério da Economia.

Considerações e Recomendação ao Ministério da Economia

Até o dia 27 de março de 2020, o governo anunciou as seguintes medidas emergenciais para o enfrentamento da pandemia do coronavírus:

  • i) destinação do saldo do fundo do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) – R$ 4,5 bilhões – por medida provisória (MP) ainda não disponível;
  • ii) redução a zero das alíquotas do Imposto sobre os Produtos Industrializados (IPI) para bens produzidos internamente ou importados, que sejam necessários ao combate da Covid-19 – por decreto presidencial ainda não disponível;
  • iii) realocação de R$ 261 milhões da educação básica para os hospitais de ensino do Ministério da Educação (MEC), via crédito extraordinário, para o combate ao coronavírus, e realocação de R$ 4,84 bilhões que estavam destinados ao incremento do Piso de Atenção Básica (PAB) e do teto de média e alta complexidade (MAC) para uma ação orçamentária específica de combate ao coronavírus – ação 21C0 (MP nº 924/2020);
  • iv) redução a zero das alíquotas de importação de produtos de uso médico-hospitalar (luvas, máscaras, álcool etílico e respiradores, entre outros produtos) por decreto presidencial ainda não disponível;
  • v) estabelecimento de novos procedimentos para simplificar e agilizar as compras públicas destinadas ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (dispensa a licitação para aquisição de bens, serviços – inclusive de engenharia – e insumos de saúde destinados ao combate à pandemia de Covid-19)

Diante da atual pandemia causada pelo coronavírus, faz-se necessário ampliar os recursos destinados às ações e aos serviços de assistência à saúde e de vigilância em saúde. No tocante à vigilância, destaca-se a importância de aumentar a capacidade financeira do MS para o exercício de seu papel de coordenador do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde, assim como dos estados e dos municípios, para fortalecimento das ações e serviços de vigilância em saúde.

A investigação de casos suspeitos de doenças transmissíveis é uma das principais atividades desenvolvidas pelas coordenações de vigilância em saúde. Considerando a pandemia atual, este trabalho é feito para identificar rapidamente os casos de Covid-19 e reduzir a transmissão de pessoa para pessoa, evitando ou retardando, assim, a disseminação da doença. As equipes de vigilância em saúde que entrevistam pessoas com suspeita de Covid-19 são responsáveis pela triagem dos casos e pelo contato com as unidades de saúde, dependendo da condição clínica do paciente; pela coleta de amostras do trato respiratório; e pela recomendação e implementação de medidas para prevenir a continuidade da transmissão da doença. Considerando as dimensões do Brasil, a execução dessas atividades demanda a disponibilidade de recursos para reforço das equipes de vigilância e financiamento das despesas geradas com o deslocamento dos profissionais. Portanto, é preciso que o MS aloque recursos para o financiamento dessas atividades realizadas por seu próprio quadro de pessoal, bem como amplie os repasses para as secretarias de saúde dos estados e dos municípios para esta finalidade.

Em consulta ao orçamento do MS em 22 de março de 2020, por meio do Siga Brasil, o que se verifica é que foi autorizada a execução de R$ 287,2 milhões em vigilância sanitária, R$ 4,9 bilhões para imunobiológicos e de quase R$ 3 bilhões para vigilância epidemiológica. Dos recursos a serem alocados em vigilância epidemiológica, a previsão é de que R$ 622,8 milhões sejam repassados aos estados e ao Distrito Federal; R$ 2,1 bilhão transferidos aos municípios; R$ 131,4 milhões sejam aplicados diretamente pelo governo federal; R$ 102,2 milhões sejam transferidos ao exterior; e R$ 1 milhão repassado para instituições privadas sem fins lucrativos. Destaca-se o aumento dos valores autorizados para aplicação direta em 2020 (R$ 131,1 milhões) em relação ao ano anterior (R$ 42 milhões). Quanto aos recursos para compra de insumos, dos R$ 4,9 bilhões autorizados para a aquisição de imunobiológicos, R$ 559,7 milhões são para os insumos utilizados na prevenção e no controle de doenças. Em relação ao valor autorizado para esta finalidade em 2019 (R$ 430,5 milhões), observa-se incremento. Todavia, diante das atuais estimativas de crescimento dos casos da doença no Brasil, a autorização adicional desses recursos parece ser insuficiente para o atendimento da necessidade de oferta de bens, ações e serviços de vigilância em saúde neste momento.

Recentemente, recursos adicionais para o enfrentamento da pandemia foram autorizados e remanejados para a ação orçamentária 21C0, subfunção 122, do orçamento do MS (R$ 4,8 bilhões). Ainda não está claro qual parcela desses recursos será utilizada para financiar o atendimento dos doentes e qual será utilizada para as ações e serviços de vigilância em saúde. Vale ressaltar que, neste momento, é central o papel do MS na coordenação das atividades de vigilância em saúde em todo o país.

As necessidades de financiamento para essa área poderão ser estimadas com a realização de estudos específicos sobre os custos para a oferta dos serviços, equipamentos e produtos para a saúde. Assim, recomenda-se fortemente ao Ministério da Economia que as equipes técnicas do MS, especialmente da área de vigilância em saúde, sejam convidadas a participar da elaboração de projeções sobre necessidades de financiamento para esta área, considerando como horizontes as próximas semanas e meses, e que sejam garantidos os recursos necessários para o enfrentamento desta pandemia, não só para assistência aos doentes, mas também para o fortalecimento do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica.