‘Nunca fui tão bem tratada’, diz mineira que largou plano por SUS

Por Camila Costa.
Cintia Vieira Leal, de 29 anos, começou a frequentar o Posto de Saúde da FamÃlia (PSF) de seu bairro em Uberlândia (MG) apenas “enquanto o novo convênio não ficava pronto”. Ao descobrir uma doença durante a gravidez, no entanto, decidiu abandonar o tratamento privado em favor do SUS. “Nunca fui tão bem tratada”, disse à BBC Brasil.
Apesar dos problemas na implantação do modelo de atenção básica no Brasil, médicos de famÃlia e comunidade – os especialistas que atuam na atenção básica – entrevistados pela BBC Brasil dizem que histórias de pacientes que trocaram o plano de saúde pelo acompanhamento com equipes de Saúde da FamÃlia são mais comuns do que parecem, quando o modelo funciona bem em um municÃpio.
Nos postos de saúde e unidades básicas, uma equipe de médicos, enfermeiros e agentes comunitários deve acompanhar até quatro mil pessoas – desde crianças até idosos. O bom funcionamento do modelo, que também é adotado por paÃses como Reino Unido, Canadá e Austrália, ajudaria a evitar a superlotação de emergências e hospitais, um dos principais gargalos do atendimento médico no paÃs.
Na maior parte das unidades, no entanto, pacientes e profissionais sofrem com a infraestrutura precária e a dificuldade de completar equipes de profissionais, especialmente em municÃpios menores e mais distantes das capitais.
O desconhecimento da população sobre o funcionamento do sistema de saúde também faz com que muitos pacientes procurem diretamente as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou hospitais.
“Eu tinha ido poucas vezes nessas unidades do SUS, porque tudo costuma ser mais rápido pelo convênio. Mas minha vizinha fazia o atendimento lá e resolvi começar o pré-natal”, disse Cintia, que trabalha como porteira, à BBC Brasil.
Quando seu novo plano de saúde ficou pronto, ela chegou ir a consultas com outro médico, mas decidiu deixar o atendimento privado e concluir a gestação com o acompanhamento da equipe do posto de saúde.
“Na minha outra gravidez fui atendida pelo convênio, mas o atendimento era superficial. O médico não me perguntava muito sobre mim e eu não sentia a oportunidade de perguntar para ele. No posto de saúde, gostei de como a equipe me acolheu. Pareciam ter interesse em me ajudar, tirar minhas dúvidas”, diz.
Durante a gestação, a equipe diagnosticou Cintia com toxoplasmose – uma infecção que oferece sério risco ao bebê. “Meu convênio não me dava segurança de que teria cobertura para o que precisasse e a doutora me convenceu a ficar no SUS.”
‘Outro tipo de complexidade’
A médica que atendeu Cintia, Natália Ferreira, afirma que parte do preconceito com relação aos médicos de famÃlia parte de acreditar que o trabalho nos postos de saúde é “simples”.
“Os recém-formados acham que ir para a atenção básica até passar em uma residência é mais fácil do que ir para uma urgência, onde os problemas são mais agudos e é preciso ter mais experiência. Mas não é tão fácil assim, é outro tipo de complexidade”, disse à BBC Brasil.
“Na atenção básica você não precisa tanto da tecnologia, dos exames complexos. Mas nós lidamos com a situação do indivÃduo e com a complexidade clÃnica. Se um sujeito é hipertenso e eu fosse um cardiologista, meu foco seria na doença dele. Quando eu, médica de famÃlia, recebo um hipertenso, eu considero que ele é idoso, que tem outras doenças associadas. É como se eu montasse o quebra-cabeça das especialidades.”
Mesmo encaminhando o paciente para um especialista, segundo Natália, o médico da famÃlia deve, idealmente, continuar fazendo o controle da sua situação. “Somos nós que lidamos com a dificuldade de a famÃlia cuidar dele, de ele não saber entender a receita, de não querer tomar o remédio”, afirma.
A médica de 29 anos, que hoje orienta recém-formados na residência de medicina da famÃlia e comunidade da Universidade Federal de Uberlândia, diz que os novatos “se espantam com a quantidade e com o tipo” de pacientes que procuram o posto de saúde.
“Quando eu, médica de famÃlia, recebo um hipertenso, eu considero que ele é idoso, que tem outras doenças associadas. É como se eu montasse o quebra-cabeça das especialidades”. Natália Ferreira, médica de famÃlia em MG
Um médico de famÃlia divide sua carga horária semanal em atendimentos no posto ou unidade básica de saúde – que ocupam a maior parte do seu tempo – e visitas à s casas dos pacientes quando é necessário. Em alguns casos, um trabalho de investigação chega a ser necessário para solucionar problemas que atingem pacientes de um bairro ou comunidade.
Há cerca de três meses, Natália e outras médicas de seu posto de saúde foram até uma creche em Uberlândia descobrir por que três crianças atendidas por elas permaneciam abaixo do peso normal.
“Descobrimos que a creche servia as refeições à s crianças com um intervalo muito pequeno entre uma e outra e não controlava se elas comiam”, diz.
“Algumas não tinham fome na hora da refeição e tomavam só leite o dia inteiro. Por isso não estavam ganhando peso”. A solução provisória encontrada foi negociar o acompanhamento especial das três crianças pela professora, mas as médicas questionaram junto à s autoridades o cardápio das creches do municÃpio e aguardam resposta.
‘Deveria ser assim’
Mesmo satisfeita com o atendimento que teve na equipe de Natália durante a gravidez, Cintia Leal diz que nem tudo funcionava tão bem. “Eu tinha medo de perder a consulta e ter que pegar a fila de novo no posto, era desgastante. O ultrassom lá também é muito demorado. Eu não consegui nenhum, fiz todos pelo plano de saúde.”
O bebê nasceu há cerca de um mês e ela diz que pretende continuar frequentando o PSF. “Não sei se esse projeto é só aqui ou se foi só o jeito dela (da médica) mesmo. Mas acho que deveria ser assim em todos os lugares”, diz.
Apesar de trabalhar em uma unidade de referência em sua cidade, Natália reconhece que a infraestrutura é um dos principais problema dos profissionais na atenção básica – e um fator que afasta os pacientes.
“Muitas vezes falta o básico: macas, tensiômetros, medicamentos. E temos dificuldades ao encaminhar os pacientes para os especialistas e os hospitais. Pegamos pacientes graves, cujos casos não conseguimos resolver porque falta ambulância, falta leito no hospital”, diz.
“Às vezes tenho um paciente com uma condição que não é tão aguda, mas que eu não consigo resolver porque encaminho para o especialista e a consulta demora quatro ou cinco meses.”
A dificuldade para conseguir realizar exames mais complexos também contribui para a dificuldade dos médicos de famÃlia para resolverem uma quantidade maior de problemas de pacientes, segundo a profissional.
“Temos um número de exames de cada tipo que podemos fazer e um número de vagas em cada especialidade, definidos pelo municÃpio, mas em muitos lugares essa conta não fecha. Aà a fila fica enorme e os exames demoram meses pra sair. A minha fila de ultrassom hoje é de sete meses, no mÃnimo. No caso das gestantes e de pacientes muito graves eu faço um pedido de prioridade”, diz.
Em entrevista à BBC Brasil, o secretário de saúde de Uberlândia, Almir Fontes, afirmou que o número de equipes de Saúde da FamÃlia na cidade aumentou de 50 para 70 em um ano e meio de gestão, na tentativa de impedir a sobrecarga do atendimento.
Fontes afirmou também que a prefeitura reformulou o sistema de entrega de medicamentos e o controle da compra dos materiais, mas fala de “problemas logÃsticos” e burocracia que causam atrasos na distribuição.
“Parte dos medicamentos da atenção básica é distribuÃda pelo Estado e recentemente houve uma demora por conta de um problema logÃstico. Reestruturamos a nossa central de farmácia e nesse momento estamos sem problema de falta de medicamentos. Mas isso também é dinâmico, há questões logÃsticas que à s vezes não dependem de nós”, afirmou.
Ainda de acordo com o secretário, um médico cardiologista, a demora na realização de exames como o ultrassom se deve, em parte, a um excesso de pedidos por parte dos profissionais. “O profissional hoje é mais voltado para a tecnologia do que para o exame, a conversa com o paciente. Por causa de uma cultura de formação, à s vezes ele pede exames que não seriam realmente necessários após o exame clÃnico. Conseguimos reduzir as filas até para exames mais complexos, como a ressonância, mas a demanda do ultrassom de fato continua grande.”
VÃnculo
Apesar dos atrasos e filas, o atendimento pode fazer a diferença na hora de “conquistar” os pacientes. Durante a residência os médicos de famÃlia e comunidade são encorajados a estabelecer vÃnculos com as pessoas que acompanham – algo que nem sempre é comum em profissionais sem essa especialidade.
“Por sermos uma especialidade com menos prestÃgio, a abordagem da medicina de famÃlia ainda é desconhecida por muitos médicos que atuam na atenção básica”, diz Natália Ferreira.

A dona de casa Irene Gonçalves da Silva, de 50 anos, também se disse “convertida” ao SUS pelo acolhimento da equipe. “Natália não me obriga a nada, mas conversa muito comigo. Desde então estou com ela e não pretendo mudar”, disse à BBC Brasil.
Irene chegou à equipe do mesmo PSF com sintomas de descontrole de sua diabetes. “Eu nunca tinha feito atendimento no Posto de Saúde. Quando comecei com o problema de diabetes eu tinha convênio, então eu ia a um endocrinologista há três anos.”
Após perder o convênio quando seu marido mudou de empresa, Irene continuou pagando consultas, mas sua saúde deteriorou. “Comecei a inchar, ter dores de cabeça, tinha dificuldade de enxergar. Quando Natália me atendeu e pediu os exames, descobriu que eu já estáva com insuficiência renal crônica. Aà ela trocou meus medicamentos e eu fui melhorando.”
“Pra te falar a verdade, eu não achava que ia ter esse atendimento no SUS. Ela tira um tempo assim para te ligar, para saber o que está acontecendo. Isso eu nunca tive, nem no convênio”, afirma.
Fonte: BBC Brasil