O câncer de mama e o senso comum

Por Luiz Antônio Santini* e Ronaldo Silva**/ publicado na Folha de São Paulo

“Câncer de mama: a chance de cura é de até 95% se a doença for descoberta cedo.” Será mesmo?

Cura significa a erradicação de todas as células cancerígenas e que o câncer nunca mais retornará. Remissão significa que os sinais e sintomas do câncer diminuíram ou desapareceram, mas não garante que todas as células foram erradicadas.No Brasil, é improvável que alguém não tenha lido ou ouvido a frase acima em uma das dezenas de campanhas sobre o câncer de mama. Ela acabou por se transformar em senso comum. Neste texto, pretendemos esclarecer alguns conceitos e apresentar à população os possíveis problemas de se repetir, sem análise crítica, essa informação.

No final do século 19, muitas pacientes com câncer de mama apresentavam-se com doença avançada no diagnóstico. O tempo médio de acompanhamento não superava o primeiro ano ou, no máximo, o quinto ano após o tratamento. Ao fim do século 20, tornou-se prática realizar o seguimento por períodos mais longos. Isso permitiu observar recidivas após cinco, dez ou 20 anos em mulheres antes consideradas curadas.

Países com registros de casos de câncer dispõem de dados de sobrevida. Na Inglaterra, a sobrevida em um e cinco anos para os cânceres de mama diagnosticados entre 2005 e 2009 é de 95,8% e 85,1%, respectivamente. Os dados de mulheres cuja doença foi descoberta “cedo” (estágio inicial) são diferentes. Nos Estados Unidos, entre 2003 e 2009, a sobrevida em cinco anos para tumores localizados foi 98,6%, para tumores localmente avançados 84,4% e para tumores metastáticos 24,3%.

Além do estágio do tumor, outros fatores estão relacionados com o prognóstico e a resposta ao tratamento, como o tipo de câncer, seu grau histológico e suas características genéticas e biológicas, mais a idade e as condições clínicas do paciente. Logo, o tamanho do tumor é apenas um dos elementos que determinam a sobrevida e a probabilidade de cura.

A frase inicial deste artigo pode ser considerada uma meia verdade, uma vez que não foram esclarecidas questões como cura versus remissão, probabilidades (que dependem do contexto e da população estudada) e o descobrimento precoce (uma entre outras variáveis que interferem na sobrevida e na resposta ao tratamento).

A utilização de frases como essa em campanhas de incentivo à mamografia, em especial para mulheres com 40 anos ou mais, pode transmitir a falsa ideia de que todas as pacientes que fazem mamografia e descobrem um câncer estarão curadas. Isso não corresponde à realidade, uma vez que algumas mulheres que descobrem o câncer por meio de uma mamografia de rastreamento morrem da doença e muitas que descobrem por meio de sinais e sintomas permanecem vivas muitas décadas após o diagnóstico.

Vários pesquisadores acreditam que entre as milhares de mulheres que permanecem sem doença após tratarem um câncer de mama descoberto por uma mamografia de rastreamento (mulheres assintomáticas), menos de 10% tiveram suas vidas salvas pelo exame. Cerca de 60% permaneceriam sem evidência de doença caso fossem diagnosticadas aos primeiros sinais e sintomas da doença e uma parcela considerável –cerca de 30%– corresponderiam aos cânceres de mama que jamais se tornariam clinicamente aparentes se não fosse pela realização da mamografia de rastreamento (“overdiagnosis” em inglês).

Todas essas questões fogem ao senso comum e, por esse motivo, deveriam ser debatidas e publicizadas. A boa notícia é que os veículos de comunicação de massa (mídia impressa principalmente) já começam a dar sinais de abertura para essas questões.

 

*Luiz Antônio Santini é médico e diretor-geral do Inca (Instituto Nacional de Câncer)

**Ronaldo Silva é oncologista clínico do Inca