O Debate sobre a “Diferença de Classe” no SUS
Por Alethele de Oliveira Santos1, Fernando Passos Cupertino de Barros2 e Silvia Badim Marques3
O fenômeno da “Judicialização das Políticas de Saúde” ganhou importância teórica e prática, na medida em que há debates pungentes entre acadêmicos, operadores do direito, gestores públicos e sociedade civil. Trouxe para o centro dessa arena a atuação do Poder Judiciário em relação à garantia do direito social à saúde que demanda, para a sua garantia, políticas públicas de prestação de serviços de saúde por parte do Estado.
Discute-se, nas mais diversas ações judiciais que tramitam em nossos Tribunais, a amplitude do direito à saúde, bem como as mais diversas implicações na operacionalização deste direito e na construção do Sistema Único de Saúde (SUS).
No Brasil o direito à saúde decorre da leitura expressa da Constituição Federal, principalmente dos artigos 196 a 200. Todavia a interpretação do artigo 196 exprime teses antagônicas que põe em confronto, em geral, o “mínimo existencial”], a “reserva do possível”5 e a “proibição do retrocesso social”6, além de discutir os limites financeiros e operacionais para a garantia deste direito. Isto porque o direito à saúde, para ser exercido, depende da existência de uma ampla gama de políticas e serviços estatais, que por sua vez dependem de uma série de fatores políticos e financeiros para serem efetivados.
Portanto, de um lado o direito à saúde erigido do ordenamento jurídico como um direito integral e universal, de aplicabilidade imediata, que deve garantir aos cidadãos todos os cuidados que necessitam para a proteção, promoção e recuperação de sua saúde. De outro, os limites intrínsecos a um direito que demanda organização política, recursos e bens públicos para a sua garantia.
Isso evidencia que a complexidade das questões que envolvem a garantia do direito à saúde extrapola o próprio contorno do sistema jurídico, levando o órgão central desse sistema, o Poder Judiciário, a reconhecer que o mero exame do arcabouço legal, através das técnicas de interpretação e aplicação do direito posto, não se revelam capazes de solucionar as demandas sanitárias que lhes são submetidas.
O Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta instância do Poder Judiciário em nosso país, vem se manifestando sobre diversos temas que envolvem a garantia do direito à saúde. E, para formar seu convencimento e fundamentar as suas decisões, vem se utilizando das audiências públicas para ouvir os mais diversos interessados e especialistas nos temas sob julgamento.
Em maio de 2014, mediante convocação do Ministro Dias Toffoli, foi realizada audiência pública para a oitiva de especialistas, no que foi denominado “diferença de classe”no SUS, por este tema apresentar relevância jurídica e social, envolver debates jurídicos importantes, reclamar análise que ultrapassa limites do estritamente jurídico, por envolver abordagens técnicas sobre seu impacto administrativo e econômico, quanto aos seus efeitos nos procedimentos de triagem e no acesso ao SUS.
A discussão da “diferença de classe”, no âmbito do STF, decorre do Recurso Extraordinário (RE) 581488 interposto pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) em face da decisão do Tribunal Regional Federal da 4ªRegião (TRF –4ª) em favor do município de Canela (RS), cujo fundamento éque esse tipo de pagamento, mesmo sem aparente ônus para o Estado, confere tratamento diferenciado aos pacientes dentro do SUS, um sistema que se pretende universal e igualitário e tem como objetivo a redução das desigualdades sociais em saúde.
O STF reconheceu a repercussão geral – instrumento processual cuja análise de mérito da questão apresentada gera decisão que passa a ser utilizada nos casos idênticos por instâncias inferiores –no mencionado recurso e ao analisar os pronunciamentos da audiência pública, entende-se que o Ministro Dias Tofolli deve perseguir as perguntas: (i) élícito o poder público instituir dentro do SUS co-pagamento para que determinados cidadãos, que podem arcar com estes valores, possam ter acesso diferenciado a bens e serviços de saúde? (ii) A inserção de co-pagamento élegal, de acordo com os preceitos constitucionais que regem nosso Sistema Único de Saúde? (iii) ou o co-pagamento, que diferencia o acesso àsaúde, feriria o princípio constitucional da igualdade e equidade de acesso ao SUS, bem como a gratuidade das prestações de saúde previstas na lei complementar 141/12 e no artigo 43 da Lei 8080/90?
A temática da “diferença de classe” persegue mais que a garantia do direito à saúde. Persegue, na verdade, o modelo de sistema de saúde universal e igualitário estruturado no Brasil com a Constituição Federal de 1988, bem como a forma pela qual este modelo oferece ações e serviços de atenção à saúde, à população brasileira, incluída a assistência médica e hospitalar.
Na tentativa de dirimir tais controvérsias, é preciso buscar os posicionamentos da Corte Constitucional Brasileira sobre o direito à saúde. Para o STF, conforme se apreende da decisão da Suspensão de Tutela Antecipada (STA) 175, a CF/88 prevê a existência de direitos fundamentais sociais, especifica seu conteúdo e forma de prestação, não faz distinção entre os direitos e deveres individuais e coletivos e os direitos sociais, e estabelece que os direitos e garantias fundamentais tenham aplicação imediata.
Sendo a análise das demandas pelo direito à saúde, orientadas a partir do contexto constitucional, compete apresentar a interpretação acerca do artigo 196 da CF/88, exarada pelo STF na decisão jámencionada e que foi fundamentada na audiência pública da saúde. Por “direito de todos”, o STF entendeu tratar-se tanto do direito individual quanto do direito coletivo à saúde, assegurado àgeneralidade das pessoas e que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional, estando legitimado o Poder Judiciário a atuar nas hipóteses em que a Administração Pública descumpra a ordem constitucional.
Acerca da expressão “dever do Estado”o entendimento foi de que há, por parte do Estado Brasileiro, o dever fundamental de prestação de saúde e que o SUS, em sua conformação, descentralizou ações e serviços de saúde e conjugou recursos financeiros dos entes para aumentar, qualificar e garantir o acesso.
Em sendo “direito de todos e dever do Estado”, compreendeu o STF, que este direito deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem àredução do risco de doença e de outros agravos, de forma a evidenciar sua dimensão preventiva. Indicou que a necessidade de formulação de políticas públicas que concretizem o direito à saúde se dápor meio de escolhas alocativas e com a utilização de critérios distributivos.
Quanto à expressão “políticas que visem àredução do risco de doença e de outros agravos” indicou a sua priorização expressa no artigo 198, inciso II, da Constituição. A expressão “políticas que visem acesso universal e igualitário” foi entendida como aquela que se refere à efetivação de políticas públicas para a população como um todo, exequíveis igualmente, livres de preconceitos e privilégios.
Por fim, para a expressão “ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde” estabeleceu que as demandas que versem sobre o direito à saúde devem ser vistas à luz da CF/88, que prevêa existência de direitos fundamentais sociais, especifica conteúdo e forma de prestação, ou seja, mediante ações e serviços de saúde, executados de forma descentralizada, constante de instrumentos de planejamento, acompanhados pelo controle social e segundo financiamento tripartite.
Assim, numa interpretação sistemática do conjunto de itens que compõem o artigo 196 da CF/88 épossível asseverar que o direito à saúde étanto individual quanto coletivo, deve ser suprido pelo Estado, a partir da conjugação de esforços financeiros de todos os entes federados, mediante políticas sociais e econômicas que visem reduzir o risco de doença e outros agravos. Sob a guarda do acesso universal e igualitário –todos devem acessar de forma idêntica a política de saúde da qual necessitam, mediante as formas estabelecidas (ações e serviços de saúde), excluídos discriminação ou privilégio.
A interpretação constitucional do artigo 196 seria suficiente para dirimir as questões relativas àinadmissibilidade da “diferença de classe”no território nacional. Ainda assim, zelando pela boa interpretação normativa, cumpre verificar a intenção do legislador numa análise mais sistemática e não apenas em artigo constitucional específico.
Importa considerar que a igualdade, pretendida constitucionalmente, pode operar-se em dois caminhos distintos: (i) um na formulação da lei; e, (ii) que a imposição de lei jáformulada, não importe em tratamento preconceituoso, seletivo ou discriminatório.
Na hipótese de que os ditames constitucionais não sejam considerados suficientes para o entendimento da impossibilidade da “diferença de classe”no Brasil, interessa, por critério de antiguidade, primeiramente a Lei 8.080/90 –Lei Orgânica da Saúde.
Seu artigo 7º reconhece a necessidade que as ações e serviços públicos de saúde do SUS –quer sejam praticados pela Administração quer por particular (em decorrência de relação contratual), obedeçam aos princípios da universalidade de acesso, com igualdade na assistência. O pleito de que seja acatada possibilidade de pagamento diferenciado por serviços de hotelaria e do profissional médico estáem flagrante confronto com os princípios que regem o direito à saúde. Sua admissibilidade configura a supremacia do interesse privado –no caso, pretendido por categoria profissional – em detrimento do público.
Mais ainda. O artigo 43 da Lei 8.080/90 dispõe expressamente que “A gratuidade das ações e serviços de saúde fica preservada nos serviços públicos contratados”, vedando a cobrança de quaisquer valores para que o usuário acesse o SUS e utilize de seus serviços, sejam eles médicos, de hotelaria, de diagnóstico, de tratamento, etc.
Em tese, a associação dos dispositivos constitucionais aos da legislação ordinária, seriam suficientes para elucidar dúvida existente acerca da inadmissibilidade da “diferença de classe”. Ainda assim, ao considerar que foi tomada de importância significativa a ausência da palavra “gratuidade”para as ações e serviços de saúde, na ordem constitucional, cumpre mencionar a lei complementar 141/12 (LC 141)–que regulamentou o §3o do art. 198 da Constituição Federal, e em seu artigo 2ºestabeleceu que, além dos princípios contidos na lei 8.080/90, somente podem ser considerados como despesas em ações e serviços públicos de saúde, aqueles que sejam de acesso universal e gratuito. Para o debate éde interesse o termo gratuito.
Em revisão da legislação sanitária, pode-se constatar que não háprevisão legal que permita àAdministração Pública pagamento de “parte”de ação ou serviço de saúde público, conforme pretende a “diferença de classe”, o que, consequentemente impede a Administração de fazê-lo.
Tal interpretação encontra fundamento no princípio da legalidade a que estávinculada a Administração Pública, conforme preconiza o artigo 37 da CF/88, ou seja, háuma submissão do Estado àlei em toda a sua atividade funcional, dela não podendo desviar-se ou afastar-se, sob pena de praticar ato inválido e expor-se àresponsabilidade administrativa, civil e criminal, conforme previsto no artigo 2ºda Lei 9.784/99.
Assim sendo, podemos concluir que “diferença de classe”contraria os princípios constitucionais de acesso universal, integralidade e isonomia na consecução do direito à saúde. Também contraria a legislação sanitária –quer seja para a atuação da iniciativa pública, quer seja para a iniciativa privada. Contraria o modelo organizativo do sistema público de saúde, inspirado na solidariedade e que tem na lei, de forma expressa e inequívoca, o tratamento igualitário entre os cidadãos e a gratuidade das ações e serviços de saúde ofertados à população –o que não pode ser posto em dúvida.
Sua admissibilidade, além de confrontar os anseios sociais por serviços públicos de qualidade, oferece ao SUS riscos de enfraquecimento ainda maiores. Neste ponto cabe reconhecer que o SUS tem problemas estruturais a serem enfrentados e neste caso, o nógórdio refere a máremuneração dos serviços profissionais e dos estabelecimentos hospitalares. Todavia, este desafio não pode ser atacado com formas de onerar o cidadão. Importa, sim, propugnar para que o SUS goze de custeio suficiente ao provimento das necessidades sociais, promovendo, por um lado, a assistência médica necessária à promoção, prevenção e recuperação da saúde do cidadão e, de outro, remunere a preços justos os serviços profissionais, de hotelaria, exames e procedimentos médico-hospitalares.
Conclui ao reconhecer o quão éde responsabilidade a posição do STF quando da análise da questão que será, dentro em breve, levada ao Plenário da Casa. Citem-se, por oportuno, as palavras do Ministro Ayres Britto, em seu discurso de posse: “se ao Direito, cabe ditar as regras do jogo da vida social, mormente, as que mais, temerariamente, instabilizam a convivência humana, o Poder Judiciário éque detém o monopólio da interpretação e aplicação final do sistema de normas em que esse Direito consiste”. E, por fim, salienta-se do mesmo discurso que o Poder Judiciário “não pode, nunca, jamais e sob nenhuma hipótese, perder a confiança da coletividade, sob pena de esgarçar o tecido da coesão nacional”.
1Advogada, mestre em Saúde Coletiva pela UNB, Assessora Técnica do Conselho Nacional de Secretários de Saúde-CONASS. alethele@ig.com.br . Declara não possuir nenhum conflito de interesse ao tratar o tema apresentado.
2Médico, mestre em Saúde Coletiva pelo ISC-UFBA e doutorando em Saúde Coletiva FSC-UnB; Professor assistente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás; Assessor técnico do Conselho Nacional de Secretários de Saúde-CONASS. fernandocupertino@gmail.com. Declara não possuir nenhum conflito de interesse ao tratar o tema apresentado.
3Bacharel em Direito, mestre e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo –USP. Professora adjunta da Universidade de Brasília –UnB, Faculdade de Ceilândia. sbadim@gmail.com. Declara não possuir nenhum conflito de interesse ao tratar do tema apresentado.
4Para Barcelos (2001), o mínimo existencial éum precedente do princípio da dignidade da pessoal humana, segundo o qual o Estado deve oferecer aos cidadãos um núcleo básico de prestações e serviços, considerados pela autora como elementos materiais da dignidade, que écomposto de um mínimo existencial, que consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderáafirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade.
5Para a reserva do possível, Barcelos (2001) indica que pode ser fática quando se aproxima da exaustão orçamentária, sendo possível questionar a realidade dessa espécie de circunstância, tendo em vista as formas de arrecadação e a natureza de ingressos públicos e jurídica quando não há propriamente um estado de exaustão; há sim, ausência de autorização para determinado gasto.
6No que se refere à“Proibição do Retrocesso Social”, Cunha (2010) salienta que um dos conceitos mais bem formulados sobre este princípio foi feito por Felipe Derbli que, em sua em sua obra “O Princípio da Proibição de Retrocesso Social na Constituição de 1988”: “diz que o princípio tem teleologicamente a função de garantir o grau de concretização dos direitos fundamentais sociais e, mais que isso, a permanente obrigação constitucional de desenvolver essa concretização, não permitindo, de forma alguma, que se retroceda a um quadro sócio-jurídico jáesgotado, distante do ideal proposto pela Carta Magna” (p. 59).
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