“O golpe foi contra a inclusão e a democracia”

Nos 60 anos do golpe de 1964, o historiador e presidente do Cebes Carlos Fidelis analisa as mazelas sociais deixadas pela ditadura. Texto de Glauber Tiburtino publicado originalmente no portal da revista Radis.

No marco de seis décadas do golpe civil-militar – ou empresarial-militar –, Radis entrevista o historiador, mestre em Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e doutor em Políticas Públicas e Estratégias de Desenvolvimento (IE/UFRJ), Carlos Fidelis Ponte, atual presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). 

Estudioso da ditadura e outros temas de impacto social, ele fala à Radis sobre as mudanças no modelo e nas políticas de saúde do país ao longo do tempo. E destaca como o regime militar impactou o campo da saúde pública e acentuou desigualdades: “O golpe empresarial-militar de 1964 foi um golpe contra a inclusão e a democracia”.

O historiador tece ainda uma análise conjuntural sobre como o Brasil se tornou solo fértil para governos autoritários e aborda alguns motivos pelos quais a jovem democracia brasileira está constantemente sob ameaça. Ele pontua de que forma a gestão da pandemia de covid-19 trouxe à memória a negligência dos militares com a epidemia de meningite, na década de 1970. “Em geral, as autoridades, pressionadas por outros interesses que não a saúde da população, costumam negar a existência de epidemias”, afirma.

Segundo Carlos Fidelis, no contexto atual, não somente o presente e o futuro estão em disputa, mas também a forma de lembrar o passado. E ele se orgulha de seu posicionamento na luta e militância por um país mais justo, equânime e democrático: “Darcy Ribeiro costumava dizer que sentia orgulho das derrotas que experimentou, pois detestaria estar ao lado dos vitoriosos, tão nocivos que foram ao país”. Confira a entrevista completa que Radis preparou para recordar os 60 anos do golpe de 1964.

O golpe civil-militar de 1964 está completando seis décadas. Em sua análise, o que precisamos lembrar para não se repetir, com relação ao regime autoritário que durou 21 anos?

Vivemos um período em que não somente o presente e o futuro estão em disputa, mas também o passado. Hoje convivemos com gente que diz que a Terra é plana, que o nazismo era um regime de esquerda, e que o golpe de 1964 salvou a democracia. Hoje ainda é preciso lutar pela verdade histórica e pela ciência.

Não podemos esquecer toda sorte de atrocidades cometidas pela ditadura que comandou o país de 1964 até 1985. Não dá para fechar os olhos para as torturas, os assassinatos, as violações de direitos fundamentais, passar por cima de tragédias familiares, da orfandade, da desesperança, da concentração de renda; fingir que os cofres públicos não foram dilapidados, que a corrupção não se alastrou, assim como a impunidade. 

Não se pode esquecer da violência policial nos porões de uma ditadura que gerou figuras repugnantes, como Sérgio Paranhos Fleury ou Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro. Não se pode apagar o terrorismo de Estado, a exemplo do atentado frustrado do Rio Centro ou da bomba na OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], que matou dona Lyda Monteiro. O autoritarismo, a estupidez e a deformação ética e moral que emanava do poder ditatorial deixou graves sequelas para o país. 

O golpe de 1964 foi um ataque violentíssimo à luta por direitos básicos como acesso à terra, à organização sindical, à organização política, à saúde e à educação. Ele destruiu sonhos e projetos de uma geração que queria construir um país melhor do que aquele que herdaram de seus pais.

Carlos Fidelis discursa em encontro do Cebes em João Pessoa (PB), em 2023. — Foto: Comunicação/Cebes.

O que a sociedade deveria refletir e debater mais em relação ao golpe?

Mais do que lembrar, precisamos compreender as linhas de força que levaram ao golpe, entender o golpe em seu contexto mais amplo. Me refiro, por exemplo, ao fato de nossa formação social ter raízes profundas no colonialismo e, principalmente, na escravidão, o que se reflete no caráter extremamente autocrático e subalterno de nossas elites dirigentes, sempre dispostas a impor a ferro e fogo os seus privilégios de classe ao mesmo tempo em que se curva cordatamente aos interesses econômicos externos a que estão associadas. São elas o maior empecilho interno à construção de um país soberano e democrático. 

É verdade que, nas últimas décadas, o neoliberalismo vem reagindo no mundo inteiro contra as conquistas democráticas e anticoloniais da segunda metade do século XX, fortalecendo extremismos de direita cada vez mais próximos do fascismo. Claro que aspectos conjunturais mais recentes importam, mas estes deitam raízes profundas em estruturas sociais seculares de opressão. Em grande medida, é possível argumentar, que o próprio neoliberalismo é um projeto de regressão autoritária e recolonização dos povos em benefício de uma casta transnacional que deseja se ver livre de todo aparato regulatório estatal.

Mas quero me referir também a traços mais estruturais presentes nos contextos de ameaça à democracia. 

“Nosso país tem um passado brutal. Nossa história é muito violenta.”

Poderia explicar melhor?

Nosso país tem um passado brutal. Nossa história é muito violenta. O Brasil surge para os europeus como elemento da empresa colonial que agregou a escravidão aos seus negócios. O nome do país está ligado a essa perspectiva. Nesse sentido, como diz o amigo José Noronha [José Carvalho de Noronha, médico da Fundação Oswaldo Cruz, ex-secretário de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (1988-90) e ex-secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde (2007-08)] foi, e continua sendo, um empreendimento de sucesso. O que não seguiu adiante foi Pindorama. Somos a atualização desse passado colonial e escravagista. Após quase 400 anos da escravidão, o país não se livrou das feridas que moldam a sua alma. 

A mudança na base produtiva e nas relações de trabalho não foram suficientes para solucionar os males decorrentes da escravidão e do modelo extrativista e agroexportador, parasitário e predatório. Ainda estão abertas as chagas da injustiça, da exploração, da crueldade e do preconceito. A conformação das estruturas fundiárias e urbanas, as relações sociais, o arcabouço institucional e as interações com o ambiente são marcas de uma sociedade extremamente desigual, destrutiva e sem projeto para além da exaustão dos recursos disponíveis, incluindo aí as pessoas reduzidas à categoria de peças de uma grande engrenagem que moe vidas, paisagens, sonhos e afetos.

De fato, ainda estão entre nós, bastante vivas, figuras execráveis como a do capitão do mato e do bandeirante. Vamos lembrar do horror que o incêndio da estátua de Borba Gato, em São Paulo [2021], causou em alguns segmentos de nossa sociedade e na mídia tradicional. Vale mencionar ainda os ataques a Marielle Franco que tentam justificar o seu assassinato e de seu motorista, Anderson Gomes. Isso porque, os poderes materiais e simbólicos que operavam a manutenção de uma ordem oligárquica e patrimonialista, não obstante o verniz de uma frágil democracia, permanecem intocados e resistentes ao avanço de uma democracia de fato. 

Nossas elites econômicas, alimentadas pela exploração e mantidas por um forte aparato repressivo e ideológico, se distinguem pelo autoritarismo. Mas não só. Trazem consigo as marcas do parasitismo, da predação e da falta de compromisso com os interesses nacionais. Grilagem, clientelismo e violência são instrumentos constitutivos da imensa parcela dos segmentos da nossa classe dominante. Uma doença que contamina o tecido social. Um sintoma materializado nas dependências de empregadas nos apartamentos de classe média, como que reproduzindo a divisão da casa grande e da senzala. 

Vivemos em uma sociedade que tolera e, até mesmo, aplaude as violentas e mortais incursões das forças policiais nas comunidades pobres. Vejamos as recentes declarações do governador de São Paulo sobre as ações da Polícia Militar na Baixada Santista. Estamos diante de um elemento constitutivo de nossa sociedade que ganhou expressão política institucional nos partidos e nas casas legislativas. 

Não é à toa, por exemplo, que o assassino de Chico Mendes, Darci Alves Pereira, assumiu a presidência do Partido Liberal (PL), o partido do ex-presidente da República, em Medicilândia, município do sudoeste do Pará. Podemos lembrar também a pepita de ouro encontrada na casa de Valdemar Costa Neto e o envolvimento dos deputados e membros do Partido Liberal e de outros partidos do campo conservador com o garimpo ilegal.

O país que não integrou aqueles que foram escravizados e seus descendentes nos marcos da cidadania é o mesmo que, apesar das dimensões continentais, negou, e ainda nega, terra a quem nela trabalha. O Brasil que bate recordes de produção de grãos e proteína animal é o mesmo que convive com o espetáculo dantesco da fome. O país da democracia racial e do homem cordial é o mesmo que mata mais pretos, pobres, mulheres e aqueles com orientação sexual fora dos padrões heteronormativos e patriarcais.

“O golpe empresarial-militar de 1964 foi um golpe contra a inclusão e a democracia.”

Como essa conformação se relaciona com o golpe?

O golpe de 1964, assim como outros em nossa história, tem essas marcas de nascença.  O golpe empresarial-militar de 1964 foi um golpe contra a inclusão e a democracia. Uma ação contra uma perspectiva soberana que debatia um projeto inclusivo e democrático para o país. Foi um golpe contra a população, principalmente contra as suas parcelas mais pobres e vulnerabilizadas. O fantasma do comunismo, o combate à corrupção e o bordão “Deus, Pátria e Família” foram utilizados, como em outras oportunidades, para encobrir o verdadeiro sentido do golpe: a manutenção da desigualdade, a concentração de renda e o alinhamento com interesses externos representados, então, pelos Estados Unidos em um período marcado pela Guerra Fria. 

É notória a vocação golpista de nossas elites. O golpe de 2016 foi mais uma manifestação nesse sentido. Trocamos uma democracia de baixo impacto, com avanços importantes, ainda que tímidos e insuficientes na área social, pela exclusão completa e pelo fanatismo obtuso e autoritário. Substituímos o estímulo à educação, à cultura, à ciência e à tecnologia pelo culto às armas, ao preconceito e à intolerância. Foi assim também na frustrada tentativa do dia 8 de janeiro [de 2023]. Um movimento que estava, como mostram as investigações, nas pretensões de parte das Forças Armadas. 

Um amálgama de oportunistas e criminosos de todo o tipo que, lamentavelmente, contou com o apoio, ignorante, preconceituoso e iludido, de setores expressivos das classes médias, ciosas por preservar seus privilégios e seu status, e mesmo de parcela significativa da população mais pobre, incensada por fundamentalistas religiosos e bombardeada diariamente por campanhas de desinformação nas redes sociais e nas mídias monopolistas tradicionais. Estes últimos, com tudo a perder e nada a ganhar.

Esse tem sido o caminho penoso que temos trilhado: avanços tímidos seguidos de retrocessos pesados e bastante nocivos. Retrocessos que contam com a sustentação ativa de interesses estrangeiros associados a segmentos ligados à tradição extrativista-exportadora nada compromissada com o atendimento das demandas populares ou com o futuro do país. Nossa história é marcada pelo modelo extrativista e agroexportador que alguns economistas chamam de fazendão.  

Foi assim desde a Colônia com o pau-brasil, a cana-de-açúcar, o ouro, os diamantes e depois com o café, no fim do Império, e nas primeiras décadas da República. Continua assim com a soja, a carne, a mineração, entre outros. Atividades que produzem poucos empregos de qualidade e não participam como deveriam da redistribuição de renda, guiando-se, em vez disso, pelo lucro fácil e predatório.  Ao lado disso, temos o setor rentista que nada produz e tampouco emprega, mas drena igualmente os recursos nacionais, o que faz com que alguns analistas, a exemplo de Ladislau Dowbor, classifiquem-no também de improdutivo e extrativista. 

Trata-se, portanto, de segmentos que travam o desenvolvimento inclusivo, sustentável e soberano do país e que atuam fortemente contra a democracia e os projetos nacionais civilizatórios. O resultado é a transformação dos sonhos de gerações na concretude imoral da fome, das doenças, das mortes e da falta de perspectivas.

E tudo isso fragiliza nossa democracia.

Darcy Ribeiro nos alertava que a ignorância da população não era, e não é, fruto de uma crise na educação, mas sim resultante de um projeto. Nessa perspectiva é preciso reconhecer o que significou o golpe de 1964. Estamos falando de um golpe antinacional, antidemocrático perpetrado contra o povo mais pobre. Um golpe que também atingiu segmentos da classe média, que teve alguns de seus filhos mortos ao lado daqueles filhos das classes mais atingidas pela desigualdade e injustiça social. Promoveu também uma minoria raivosa de indivíduos incapazes de exercer a solidariedade. 

Vale lembrar que a extrema-direita é bastante eficiente no sentido de mobilizar preconceitos e sentimentos como frustração, raiva, mágoa, ódio ou rancor para canalizá-los para o moinho do fascismo. Gente oprimida e em sofrimento pode virar presa fácil para os discursos de ódio. O bolsonarismo é expressão recente desse fenômeno. Nosso Congresso é, em grande medida, um exemplo da presença do oportunismo a que me refiro. Ao lado do surrado apelo patriótico contra uma fantasiosa ameaça comunista e do uso demagógico do combate à corrupção, as políticas de ajuste fiscal e o mecanismo do teto de gastos encobrem outros objetivos não explicitados e pouco debatidos. 

Termos pomposos, com ares de responsabilidade e bom senso, como austeridade e equilíbrio das contas públicas, têm sido largamente empregados para esconder um amplo e profundo processo de drenagem de recursos públicos, das poupanças coletivamente produzidas e destruição das nossas capacidades de reagir a crises e de construir um presente e um futuro melhor para todos. 

Isso tudo continua agindo contra a democracia e canalizando a revolta proporcionada pelas políticas que eles mesmo criam. Desse modo, o opressor ganha o apoio do oprimido que adere, por exemplo, às noções de empreendedorismo e meritocracia ao mesmo tempo em que se volta contra as políticas inclusivas. Sem mencionar as fake news e manipulação da mídia tradicional. É preciso acordar as consciências, varrer o ódio e valorizar a solidariedade, a inclusão e a tolerância. Precisamos de políticas públicas de inclusão que gerem pertencimento para afastar essa ameaça que marca a nossa história. Para tanto, é preciso também punir todos, sem exceções, aqueles que agiram contra a democracia.

Carlos Fidelis. — Foto: Comunicação/Cebes.

Trazendo essa discussão para a temática das políticas públicas de saúde, o pesquisador Jairnilson Paim ressalta em suas obras que a ditadura privilegiou um modelo individualista em detrimento das práticas coletivas de saúde, ao investir na expansão da assistência médico-hospitalar e desprestigiando a saúde pública. A seu ver, por que razão os militares optaram por concentrar esforços em ações de atenção individualizada? 

Como disse antes, os golpes perpetrados no Brasil contra a democracia serviram a interesses distantes das necessidades do país e da sociedade. Nesse caso não foi diferente. Os militares atenderam as reivindicações de um setor que vinha crescendo no país. Me refiro às empresas privadas de medicina que foram altamente beneficiadas durante o período da ditadura.

Os estudos de Jairnilson Paim mostram esse movimento do setor privado que alcançou sucesso na instalação de um verdadeiro dreno de recursos públicos para benefício próprio em detrimento das necessidades da maioria da população. No manifesto A Questão Democrática na Área da Saúde, escrito em 1976, e que está na origem do Movimento de Reforma Sanitária, seus autores ao se referirem às causas da degradação da saúde a partir dos anos 1960 não tiveram dúvidas em denunciar a mercantilização da saúde promovida pelos governos militares. Uma política que avaliaram como concentradora, privatizante e antipopular.

A história da atenção à saúde e da previdência social em nosso país é marcada por duas linhas que permaneceram paralelas até se encontrarem na criação do SUS, após a Constituição de 1988. 

A primeira delas está associada à assistência médica individual proporcionada por instituições de ajuda mútua criadas pelos trabalhadores como defesa para casos de doença, invalidez ou morte. São as irmandades, os montepios, as caixas e institutos de aposentadorias e pensões. Instituições que estão na origem do que chamamos de medicina previdenciária que, por sua vez, foi organizada mais tarde em instituições públicas, como o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, reorganizada, no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). 

A segunda está relacionada à necessidade de combater as doenças transmissíveis que, transformadas em epidemias, ameaçavam a sociedade como um todo, muitas vezes desafiando a ordem estabelecida, comprometendo também atividades econômicas e a imagem do país no exterior, como aconteceu no final do século 19 e início do século 20 no Brasil.

A linha ligada à assistência médica individual gerou arranjos políticos e econômicos bastante fortes. Foram constituídos fundos resultantes das contribuições de trabalhadores e empregadores. Tais fundos eram geridos formalmente por um colegiado composto por patrões e empregados, sendo que a participação efetiva dos empregados na gestão dos recursos arrecadados de modo compulsório era ínfima, correspondendo, na maioria das vezes, à assimetria de poder que marcava as posições de classe ali envolvidas. Posteriormente o Estado passou a participar da administração de tais fundos. Surgia assim a previdência social, que se responsabilizava pela assistência médica mediante contribuição trabalhista regulamentada por lei. 

Mas esse modelo excluía parte da população.

Importa ressaltar que o caráter fragmentário e corporativo da previdência social, ao vincular a prestação de serviços médicos a contribuição do beneficiário, deixava de fora uma grande parcela da população que não tinha acesso a uma carteira de trabalho a exemplo dos trabalhadores rurais, das empregadas domésticas e das donas de casa. Um arranjo que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “cidadania regulada” e que, em certa medida, encontra continuidade nos planos de saúde oferecidos pelas empresas aos seus empregados e por instituições públicas aos seus servidores. Nessa perspectiva, a saúde não é um direito da cidadania, mas um bem a ser adquirido no mercado.

Paralelamente vamos assistir a um decréscimo de investimento na estrutura pública de atenção à saúde individual que se intensificou após o golpe de 1964. Intensificaram-se também a realização de convênios entre a Previdência e as empresas privadas de prestação de serviços médicos. O decréscimo da participação direta do Estado, no atendimento à população e sua consequente substituição pela rede privada, torna-se mais visível quando verificamos que estudos clássicos apontam o fato de que as internações nos hospitais próprios da Previdência Social caíram, dos reduzidos 4,2% do total de internações em 1970, para 2,6% em 1976, enquanto que os hospitais particulares passaram a responder por 98% desse serviço, conforme apontaram estudos como os realizados por Hésio Cordeiro, no início da década de 1980, sobre as políticas públicas de saúde no Brasil. 

Essas afirmações são corroboradas por outros estudos como os levantamentos realizados por Celia Almeida e Raquel Pego, no início dos anos 80, que demonstraram que os 41 hospitais pertencentes ao Inamps em 1978 eram responsáveis por apenas 253 mil internações de um total estimado em aproximadamente 6,3 milhões. O que significa que, naquele período, cerca de 96% das internações ficavam sob a responsabilidade de empresas de saúde contratadas pelo Ministério da Previdência e Assistência Social. As pesquisadoras apontaram que desenvolvimento semelhante ocorreu com os serviços ambulatoriais, uma vez que, do total de consultas médicas pagas pelo Inamps em 1978, 53% foram realizadas pela rede contratada e conveniada. 

Como se pode constatar, a saúde virou um negócio altamente lucrativo e um dreno dos recursos públicos para o setor privado. Um setor que foi ampla e magnanimamente financiado por fundos públicos constituídos pelo esforço coletivo. Vejamos um exemplo que não deixa margens a dúvidas: os governos militares criaram, em 1974, o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). 

A partir de então, as empresas privadas de medicina passaram a contar com uma nova fonte de financiamento para construção, ampliação e compra de equipamentos. De acordo com pesquisa realizada por Hésio Cordeiro, 70% dos recursos desembolsados pelo fundo até 1979 foram destinados a hospitais particulares situados no eixo Rio-São Paulo. Uma situação que se intensificou e que permanece até hoje. 

Que consequências essa política de privilégios ao setor privado e negligenciamento da saúde pública acarretaram ao Brasil nos anos que se sucederam ao golpe?

Nessa perspectiva, a prioridade conferida à medicina curativa, o financiamento público e o crescimento dos grupos privados no setor saúde constituem-se em engrenagens de um processo em que a capitalização e a expansão da rede privada, por um lado, e a degradação dos serviços públicos e a sangria dos recursos do Estado, por outro, são faces da mesma moeda. Em termos financeiros, esta divisão entre as duas linhas mencionadas é, evidentemente, materializada em um forte desnível em favor da medicina curativa levada a cabo pela estrutura privada, conveniada à Previdência Social.

Por outro lado, para além dos problemas propiciados pela dicotomia básica entre as ações preventivas e curativas levadas a efeito respectivamente pelo Ministério da Saúde e pela Previdência Social, a área da saúde coletiva, por ter seus programas distribuídos por vários ministérios, era também prejudicada pela grande pulverização de recursos e pela falta de coordenação que acompanhava tal fragmentação. Importa mencionar, por exemplo, que atividades como saneamento básico encontravam-se sob a responsabilidade exclusiva do Ministério do Interior, a quem cabia também a administração do orçamento previsto para aquela rubrica do gasto federal.

Carente de recursos, precariamente estruturado e subordinado a lógicas e prioridades de outros setores, o Ministério da Saúde detinha reduzida margem de manobra e pouca capacidade de planejamento para equacionar e enfrentar com eficácia os problemas colocados sob sua esfera de competência. Vale notar que em 1973, no auge do chamado milagre econômico, os recursos destinados ao ministério correspondiam a apenas 1% do orçamento da União, enquanto ao Ministério dos Transportes e às Forças Armadas eram reservados 12% e 18%, respectivamente.

Esse quadro começa a mudar com o intenso processo de urbanização observado a partir da década de 1960. Nesse período podemos observar um intenso êxodo rural, no qual migrantes, expulsos de suas terras ou à procura de melhores condições de vida, foram engrossar as periferias das grandes cidades ou tentar a sorte nos projetos de expansão da fronteira econômica interna, incentivados pelo governo na Amazônia e no Centro-Oeste. Uma situação que incide, de modo decisivo, sobre a conformação dos quadros epidemiológicos e sanitários do país, gerando problemas agudos que passaram a pressionar os governos militares. 

Nas periferias das grandes cidades, por exemplo, doenças como o sarampo matavam crianças em uma proporção bem maior do que a mortalidade verificada em países inteiros do Primeiro Mundo. Na primeira metade da década de 1970, para citar mais um caso, o país enfrentou uma epidemia de meningite que a ditadura, ao censurar, contribuiu para alastrá-la. Essa e outras questões levaram à necessidade de reorganização da estrutura de atenção à saúde pública que, como vimos, existia em paralelo à estrutura da medicina previdenciária. 

Evidentemente, a morte de crianças por doenças imunopreveníveis ou devido à falta de saneamento básico estão entre as consequências terríveis de opções políticas destinadas a beneficiar segmentos privilegiados em detrimento da maioria da população. 

Em termos de organização da estrutura de atenção à saúde, estamos diante de uma questão com diversas faces. Por um lado, assistimos à drástica redução e degradação da oferta de leitos públicos. Não houve investimentos de peso na construção de hospitais públicos capazes de atender a uma demanda crescente, por exemplo. Nessa mesma direção se pode observar o avanço do setor privado para áreas da atenção primária que, até então, não despertavam interesses dos empresários da saúde. Por outro, vimos surgir programas como o Programa Nacional de Imunizações (PNI) datado de 1973 e a intensificação das campanhas de vacinação. 

Carlos Fidelis em atividade pelo Cebes no Rio de Janeiro(2023). — Foto: Francisco Barbosa.

Como você avalia o papel e a atuação do Movimento da Reforma Sanitária durante a ditadura, que mais tarde levaria à criação do SUS?

Em resposta a uma pergunta anterior eu mencionei o manifesto A questão democrática na área da saúde. Escrito em 1976, o documento — depois de analisado por diversos sanitaristas cujas ideias foram incorporadas pelos autores na redação final — foi apresentado pelo Cebes, em outubro de 1979, no primeiro Simpósio sobre Política Nacional de Saúde da Câmara Federal. Nesse manifesto, seus autores (Hésio Cordeiro, José Luís Fiori e Reinaldo Guimarães) apontavam a correlação direta entre a opressão da ditadura que se abatia sobre a população, principalmente a sua parcela mais pobre, com o quadro calamitoso observado na saúde dos brasileiros, com ênfase nas comunidades mais vulnerabilizadas. Para eles, o arrocho salarial, a corrupção, a degradação dos serviços públicos e o privilégio conferido ao setor privado de assistência médica contribuía de modo decisivo para as péssimas condições de saúde observadas, principalmente, nas periferias dos grandes centros urbanos.  

Bem diferente do conceito biomédico, o conceito de saúde adotado pelo Movimento da Reforma Sanitária — e pelas entidades que, a exemplo do Cebes, estiveram na origem desse movimento — compreende a saúde como condicionada por elementos capazes de prover uma boa qualidade de vida. A saúde não é, nessa concepção, apenas a ausência de doença, mas, como disse Arouca na 8ª Conferência Nacional de Saúde [1986], a ausência do medo. Do medo do desemprego, do medo do futuro, do medo de uma elite e de um governo que se volta contra o seu povo. Saúde é educação, trabalho digno, lazer, acesso à cultura e aos benefícios da ciência e tecnologia. Saúde é o direito à cidade. É o direto a um ambiente ecologicamente equilibrado. Direito à moradia, ao transporte coletivo confortável, à alimentação saudável, à segurança. É direito a um serviço público de qualidade. É o direito a envelhecer, viver e morrer de forma digna.

Assim, a um conceito que restringia a saúde ao seu componente biomédico, o movimento contrapôs um conceito mais abrangente que denunciava, a um só tempo, a impossibilidade de se alcançar uma saúde de qualidade para a população nos marcos de um regime opressor e de uma concepção bastante restrita. O foco dos empresários da saúde beneficiados pela ditadura estava na medicina curativa. O foco do Movimento de Reforma Sanitária estava na promoção das condições de vida digna e saudável para todos. Essa foi a mensagem que percorreu a 8ª Conferência Nacional de Saúde, desaguou no processo constituinte e culminou com a criação do SUS.

Conforme registros históricos, uma das consequências mais nocivas do governo militar à saúde coletiva foi a epidemia de meningite nos primeiros anos da década de 1970, inicialmente abafada pelo Estado até sua omissão se tornar insustentável. Essa conduta agravou a situação e só com extinção da censura, em 1975, a crise foi assumida e medidas tomadas, como a campanha de vacinação da população. Gostaria que o senhor comentasse este fato, que ilustra o obscurantismo desse período na história da saúde pública brasileira.

Sem dúvida alguma a censura da ditadura sobre a ocorrência de uma epidemia de meningite contribuiu de modo decisivo para que a epidemia se espalhasse e fizesse mais vítimas. Com a censura, as pessoas não sabiam que estavam em perigo e, portanto, não buscavam se prevenir ou ficar vigilantes. 

Por outro lado, a máquina pública também tinha dificuldades de dimensionar o verdadeiro tamanho do problema, a sua distribuição no território e os recursos que seriam necessários utilizar. Sem informações, a máquina pública de atenção à saúde não se preparou. Quero ressaltar também que a censura silenciou os melhores quadros, aqueles que perceberam que o problema era grave. 

“Ocorreu o que é comum nas ditaduras: um emburrecimento da estrutura pública de atenção à saúde.” – Carlos Fidelis

Ocorreu, assim, o que é comum nas ditaduras: um emburrecimento da estrutura pública de atenção à saúde. Uma estrutura hierárquica muito forte pode servir para um exército em situação de guerra, mas é extremamente nociva para outras organizações.

Você enxerga semelhanças entre aquela conduta e a postura do ex-presidente Jair Bolsonaro ao negar a gravidade da pandemia de covid-19 e depois levantar suspeitas sobre os efeitos da vacina e até mesmo boicotar a campanha de imunização contra o coronavírus? 

Sem sombra de dúvidas que sim. Tem sido assim. Em geral, as autoridades, pressionadas por outros interesses que não a saúde da população, costumam negar a existência de epidemias. Entretanto, há que se distinguir entre dois posicionamentos. O primeiro, uma ação condenável, motivada pela tentativa de esconder uma situação que é negativa para um governo e que, com o tempo, é revertida pela impossibilidade de negação. Outra coisa é uma ação criminosa, deliberada e contínua de governos contra suas populações, como são as políticas situadas no escopo daquilo que Achille Mbembe [intelectual camaronês] conceituou como necropolíticas, ou seja, ações pensadas contra uma população ou contra parcelas dela. O caso de Bolsonaro, pelo que se revelou na CPI da covid-19 e pelas atitudes e declarações dele, está, no meu modo de ver, na segunda opção. 

Bolsonaro desde o início negou a gravidade da situação. E foi além. Atacou as autoridades sanitárias, pesquisadores e instituições científicas que alertavam para um perigo reconhecido mundialmente. Mais do que isso, ao rejeitar o isolamento e o uso de máscaras, Bolsonaro pretendia expor a população ao vírus, mesmo sabendo, como está claro a partir de suas inúmeras declarações, que haveria muitas mortes, principalmente entre os mais vulneráveis.  

Ao facilitar a circulação do vírus, Bolsonaro facilitou também o surgimento de variantes que poderiam ter escapado da faixa de proteção das vacinas e causado mais mortes e sequelas do que o imenso número de vítimas que tivemos. Se não bastasse, Bolsonaro fez campanha aberta contra a vacina, lançando desconfiança sobre um dos instrumentos mais eficazes de saúde pública do mundo. Isso sem mencionar os atrasos propositais na aquisição de imunizantes e a corrupção que se instalou no Ministério da Saúde. Paralelamente, Bolsonaro indicava cloroquina como uma panaceia mágica, estimulando as pessoas a consumir um medicamento sem necessidade e com contraindicações.

Testemunhamos naquele período um verdadeiro show de horrores. Cenas horripilantes de covas comuns sendo abertas diariamente. Todos nós temos um parente, um vizinho ou colega de trabalho que foi duramente atingido pela covid-19. Faltou medicamentos e anestésicos para intubação, um procedimento muito doloroso. Acompanhamos tristes e perplexos a tragédia de Manaus que nos mostrou a morte de pacientes por falta de oxigênio. Enquanto isso, o presidente zombava das pessoas morrendo asfixiadas. Em nenhum momento, Bolsonaro mostrou solidariedade ou tristeza pelo que ocorria no país. “Quer que eu faça o que? Não sou coveiro”, dizia em alto e bom som.

Tais atitudes estimulavam uma horda de fanáticos incapazes de empatia. Gente que invadiu hospitais, que atacou aqueles que pacificamente protestavam contra o abandono a que a população foi submetida. Lembro aqui da agressão contra as enfermeiras que protestavam pacificamente na Praça dos Três Poderes ou um senhor que arrancou as cruzes colocadas na praia de Copacabana para lembrar os mortos e alertar a população para a letalidade do vírus. Podemos lembrar ainda os escândalos da Prevent Senior, empresa privada de saúde que usou pacientes idosos como cobaias de experimentos macabros.  

Podemos dizer que houve uma verdadeira orquestração política contra aqueles que combatiam a pandemia, buscavam salvar vidas e deter o avanço da covid-19. Orquestração liderada por Bolsonaro contra a saúde da população, notadamente aquelas parcelas mais pobres. A coisa se passou como se fosse possível e desejável descartar pessoas. O país pagou um preço alto em vidas que poderiam ter sido preservadas [Leia Radis 249].

Ainda em relação ao negacionismo e à perseguição a cientistas, o senhor também escreveu ao Ciência Hoje sobre a perseguição e a interdição de importantes cientistas brasileiros na repressão militar, como no episódio enfrentado pela Fiocruz e conhecido como o Massacre de Manguinhos. Que consequências ações como essa podem ter gerado para o avanço científico no país ontem e hoje?

A cassação dos direitos políticos [e aposentadoria compulsória] de dez cientistas da Fiocruz, episódio conhecido como o Massacre de Manguinhos, teve um impacto negativo tremendo para a instituição e para o país. Projetos e linhas de pesquisa foram descontinuados e o recrutamento de jovens cientistas também foi afetado. A Fiocruz mergulhou em um dos piores períodos de sua história de 124 anos. A situação se deteriorou tanto que o ministro da Saúde de Geisel [Paulo de Almeida Machado] se referiu a Manguinhos, em 1975, como um cadáver insepulto. Reconhecia assim o estrago feito pela ditadura.

Para finalizar, é possível ter saúde sem democracia?

Aqui estamos falando de saúde das populações e não de indivíduos. Como disse, nosso conceito de saúde ultrapassa o biomédico e engloba os determinantes sociais, políticos, econômicos e culturais que conformam um quadro capaz de proporcionar uma vida saudável para a população. Isso significa justiça social e reconhecimento de direitos sociais inalienáveis como saúde, educação, emprego digno, lazer, acesso à cultura, à ciência e à tecnologia. Um quadro em que o medo da opressão e do abandono não esteja presente, em que haja de fato democracia e cidadania. 

É possível uma vida digna e saudável para todos nos marcos do neoliberalismo ou do fascismo? Não creio. Acredito, sim, na construção de um país democrático, inclusivo, soberano e sustentável. Acredito e luto por isso. Do contrário, ainda vamos viver em meio à miséria material e moral de uma sociedade desigual. Darcy Ribeiro costumava dizer que sentia orgulho das derrotas que experimentou, pois detestaria estar ao lado dos vitoriosos, tão nocivos que foram ao país. Frei Beto, por sua vez, tem uma frase que serve de exemplo para quem acha que nossa luta é um sonho inalcançável: “Sei que não vou participar da colheita, mas vou morrer plantando”. É isso, o sentido da vida é aquele que você atribui. As eleições municipais estão aí. Vamos dar o nosso melhor.

Acesse na íntegra no portal da revista Radis o texto de Glauber Tiburtino