“O Haddad deveria, sim, acabar com as OSs”

A campanha de José Serra transformou o modelo de gestão da saúde na capital paulista por entidades privadas em “fetiche”, opina Paulo Spina, do Fórum Popular de Saúde de São Paulo. Segundo ele, as OSs fragmentam o sistema de saúde na cidade e servem para atender a fortes interesses econômicos. “A população já está se colocando contra as privatizações, tanto que a saúde é a principal reclamação.”

Igor Ojeda – Carta Maior

Para os moradores de São Paulo, o maior problema da cidade é a saúde, segundo pesquisa do Datafolha de julho deste ano. Mas o candidato a prefeito José Serra (PSDB) insiste em listar as maravilhas do modelo de gestão do setor implementado por ele quando prefeito e consolidado por Gilberto Kassab (PSD). E o candidato petista Fernando Haddad parece ter “comprado” essa ideia.

O tucano “alerta” para o risco de o petista acabar com a administração das Organizações Sociais (OSs) na saúde, se eleito. E o petista se defende garantindo que isso não vai acontecer e se dizendo mais aberto que o próprio partido, historicamente contrário à iniciativa. De acordo com a pesquisa, a saúde é a área mais problemática de São Paulo para 29% dos entrevistados. Oito anos antes, quando ainda não havia OSs no setor e a petista Marta Suplicy tentava a reeleição e foi derrotada por Serra, o índice era de 16%.

“O Haddad deveria, sim, acabar com as OSs”, defende Paulo Spina, do Fórum Popular de Saúde de São Paulo. Em entrevista à Carta Maior, ele rechaça a hipótese propagada pelo tucano de que o fim da gestão mista ocasionaria graves prejuízos aos paulistanos. “O Haddad deveria iniciar um processo de passar a gestão do Sistema Único de Saúde para a gestão pública. Isso não vai ser o caos. Pelo contrário, traria racionalidade para o sistema, uma gestão pública efetiva que melhoraria a saúde do usuário.”

Para Spina, a atuação de mais de 30 OSs na cidade causa a fragmentação do sistema de saúde e serve para atender fortes interesses econômicos em detrimento da prioridade ao bem-estar do paciente. Além disso, relata, o modelo traz como consequência a precarização das condições de trabalho no setor. Confira a entrevista a seguir:

Carta Maior – A campanha eleitoral do Serra vem insistindo que o Haddad, se eleito, acabará com a gestão das OSs na saúde, o que, segundo ele, seria um desastre para a cidade. Qual sua avaliação sobre esse tipo de gestão? É tão fundamental e benéfico como o Serra diz?

Paulo Spina – Nós do Fórum Popular de Saúde somos inteiramente contrários a essa política de OSs, que, no nosso olhar, é uma política de privatização que traz vários problemas para a saúde no município.

CM – Por exemplo?

PS – As OSs contratam sem licitação, é quase uma quarteirização. Hoje são mais de 30 OSs em São Paulo, o que fragmenta todo o sistema de saúde, porque há organizações ligadas a interesses diversos. Nem sempre o interesse do paciente é colocado como prioridade. Além disso, há o interesse econômico. Por exemplo, uma das maiores OSs de São Paulo é a SPDM [Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina], que está entre as cem maiores empresas do Brasil. Ela não vem administrar o sistema público de saúde porque é boazinha, vem porque tem interesse econômico. Então, o governo drena recursos do SUS [Sistema Único de Saúde] para essas OSs que têm empresas por trás.

Há também um processo de precarização do trabalho, que faz o trabalhador da saúde ficar numa situação de assédio moral. O funcionário não consegue defender o usuário. Existem alguns casos de demissão política, como a que ocorreu no Jabaquara. Nessa região caiu muito o número de psiquiatras na atenção básica. Isso por conta do fato de o governo ter parado de investir na gestão pública para investir nas OSs. E a OS de lá [a SPDM] não contrata mais psiquiatras. O número passou de 12 em 2008 para dois em 2012.

Então, o Fórum Popular de Saúde começou uma movimentação em favor da saúde mental. Um dos trabalhadores da OS e que é do Fórum foi demitido. Então, o processo de sucateamento do trabalho é grande. O Haddad, para nós, deveria, sim, acabar com as OSs. Deveria pôr em execução um processo de passar a gestão do Sistema Único de Saúde para a gestão pública. Isso não vai ser o caos. Pelo contrário, traria racionalidade para o sistema, uma gestão pública efetiva que melhoraria a saúde do usuário.

CM – Os defensores desse modelo falam em redução de custos e melhorias na gestão. Isso não é verdade?

PS – O que eles trazem como principal argumento é: como podem contratar e demitir mais rapidamente e podem contratar serviços sem licitação, isso traria agilidade e eficiência. Em nossa avaliação, para se ter eficiência não é preciso haver esses mecanismos, que são uma forma de ir para cima dos trabalhadores. Temos muitos casos de agentes comunitários de saúde que estão adoecendo por causa dessa situação. Se você perguntar para as OSs, elas vão mostrar algumas pesquisas que falam que são eficientes e que diminuem gastos. Mas outros estudos mostram justamente o contrário, que a gestão pública é que economiza mais recursos. É uma disputa que está colocada academicamente. Há estudos dos dois lados. Até porque inclusive algumas OSs têm interesse acadêmico. A SPDM tem como vice-presidente o Ronaldo Laranjeira, pesquisador que defende um tipo de psiquiatria. Então, há o interesse pela pesquisa, mas por apenas um tipo de pesquisa. E nesse contexto vão se produzindo estudos que comprovariam que as OSs são boas, mas a gente duvida da fidedignidade dessas pesquisas.

CM – Por que o Haddad nega que acabará com a gestão das OSs na saúde se já declarou ser contra essa política?

PS – Uma possibilidade é que as propagandas do Serra tornaram as OSs quase um fetiche. Como se o paciente do SUS fosse realmente atendido pelo Hospital Albert Einstein, pelo Sírio-Libanês. Na verdade é atendido por um trabalhador de uma unidade administrada por esses hospitais. O atendimento é incomparável. Acho que esse fetiche está colocado muito fortemente na propaganda do Serra. Realmente hoje são muitos trabalhadores que estão sendo contratados por OSs, porque o investimento na gestão pública parou, e há muito tempo não tem concurso. Então é o dilema: “se eu for contra isso, primeiro estarei indo contra essa ideia que parece estar disseminada na população e, depois, contra esses trabalhadores”. É como se fosse acabar com o emprego dessas pessoas.

Essa preocupação é um erro, pois a população está percebendo que ser atendida por alguém com uniforme do Albert Einsten não é a mesma coisa que estar no hospital particular. A população já está se colocando contra as privatizações, tanto que o sistema de saúde é a principal reclamação na cidade de São Paulo. O Haddad deveria explicar que os funcionários das OSs não seriam demitidos, que esse modelo não vai acabar de uma hora da outra, que se criaria um processo para esses trabalhadores passarem para uma gestão pública efetiva.

Outra possibilidade que explicaria por que o Haddad está recuando nesse ponto é o fato de existir setores do PT que têm defendido essa política e aplicado em outros locais do Brasil, às vezes com nomes diferentes. Acho que é uma disputa que está dentro do PT.

CM – Mas aqui em São Paulo o PT sempre foi contra. Pelo menos a bancada do partido na Câmara dos Vereadores sempre votou contra as leis que estabeleceram esse modelo. Acredita que isso pode mudar numa gestão Haddad ou acha que seu discurso é puramente eleitoral?

PS – Com o Haddad dizendo na TV que não vai acabar com as OSs, indo fazer eventos com as marcelinas, imagino que vai haver intervenções para controlar mais. Mas isso é impossível. A lei, como está agora, escancara. Eles podem quarteirizar.

CM – Mas a bancada do PT na Câmara e a base do partido em São Paulo vão aceitar? Acha que pode se criar uma tensão entre esses setores e o Haddad?

PS – Acho que vai ter certa tensão sim. Claro, uma boa parte da militância do PT se coloca contra as OSs. Mas acho que os vereadores se dividem. Talvez alguns possam ir mais para o lado do pragmatismo. Mas tenho convicção de que uma vereadora como a Juliana Cardoso, que foi a segunda mais votada [do PT], vai ser contra. Especulando, é possível que o Haddad traga a São Paulo a alternativa privatista do PT, a chamada Fundação Estatal de Direito Privado. Tem em São Bernardo, na Bahia… É uma forma de privatização diferente. Também a consideramos uma forma de privatização, mas traz algumas melhorias se compararmos com as OSs. Por exemplo, impede a quarteirização e prevê um pouco mais de controle da gestão pública.

No entanto, mantém o vínculo com o interesse privado. É possível acontecer o mesmo em São Paulo. Mas veja como não muda muito: o mesmo grupo econômico que controlava as OSs em São Bernardo do Campo se qualificou como fundação e assumiu a administração, com outros critérios. Não se mexe na ética que está por trás do modelo, pois os interesses continuam.

CM – Como poderia ser feita a transferência da gestão das OSs para o poder público novamente?

PS – Tem de ser uma substituição gradual, para não deixar o usuário sem serviço. Por exemplo, à medida que os contratos forem vencendo, ir substituindo. No primeiro ano de gestão, pode ser realizado um grande concurso para contratar trabalhadores públicos, para passar os trabalhadores das OSs para os cargos públicos. Nesse caso, teria que haver um enfrentamento com a Lei de Responsabilidade Fiscal, pois se você contrata um trabalhador por concurso ele entra na conta da lei – quando é terceirizado, não.

CM – A campanha de Serra afirma que Haddad encerraria o trabalho de entidades respeitáveis no setor. Qual o perfil dessas entidades que gerem unidades de saúde em São Paulo?

PS – Uma das características das OSs que estão na cidade de São Paulo é que por trás delas estão grandes empresas. São grandes potências econômicas. Algumas têm ligação com a universidade, com o a Fundação Faculdade de Medicina, ligada à USP, e a SPDM, ligada à Escola Paulista de Medicina. Essa situação atrela as pesquisas nesses locais. Hoje, por exemplo, há uma proposta do governo do estado de São Paulo que a gente vê com muito cuidado, com muita restrição: a AME-Psiquiatria. Do nosso ponto de vista, vai contra a Reforma Psiquiátrica, que é uma grande conquista do movimento de luta antimanicomial. E é uma proposta orquestrada pela SPDM, que implementou esse modelo na Vila Maria e quer implementar no Butantã. É um modelo que serve a uma ideia de pesquisa contrária ao que está colocado na Lei do SUS e na Lei da Reforma Psiquiátrica.

Uma aberração é o caso da Seconci [Serviço Social da Indústria da Construção Civil], que protagonizou um dos maiores escândalos recentes. A entidade estava recebendo dinheiro para administrar 31 UBS [Unidades Básicas de Saúde], mas na prática, por conta de problemas jurídicos, estavam administrando só 14. O Tribunal de Contas do Município investigou e descobriu que o dinheiro das outras 17 estava sendo investido no mercado financeiro em nome da Seconci. Isso caracteriza um mau uso de dinheiro público.