O Programa Mais Médicos e as mensagens do corporativismo
Portal Vermelho – 13 de agosto de 2013
Paulo Vinícius*
As mudanças sociais profundas demandam uma grande luta, cuja expressão na forma dos valores é decisiva. Em muitas batalhas, até para além de campos políticos, os valores humanistas, a solidariedade e o compromisso com o povo e o país fazem toda a diferença. E, claro, a opção que fazemos define quem somos.
Infelizmente, a sociedade burguesa mercantiliza tudo. E as nossas vidas, a nossa dor, a nossa saúde, e de nossos entes mais queridos também submergem nesse rodamoinho do capital. É assustadora a nossa fragilidade diante desse escândalo.
Nem sempre a juventude é avançada. Como categoria policlassista, tem embutida em si a divisão que caracteriza as sociedades marcadas pela exploração dos seres humanos pelos seres humanos através dos interesses de classe. Assim, e por isso mesmo, a militância de esquerda na juventude, em especial se revolucionária, busca aproveitar essa fase de transição na vida para marcá-la indelevelmente com os valores do humanismo, da solidariedade, da indignação contra a injustiça, do amor pelos oprimidos. As forças dominantes tem uma enormidade de meios que se somam para incorporar a juventude ao discurso da ordem: é a juventude após o fim do socialismo europeu, marcada pela negação da política como projeto coletivo, pelo individualismo, o hedonismo, o consumismo, a negação das organizações coletivas como partidos e sindicatos.
Para além de manter acesas na juventude as chamas da revolução, é preciso mostrar-lhe a opção pela sua classe na sua constituição como adultos. Quando essa força juvenil se encontra com o povo, a sua contribuição poderá brilhar e aquecer por toda a vida. E, dentre todas as profissões, qual poderia fazê-lo com o poder da medicina?
Nos últimos meses, creio que tem havido uma batalha quanto ao sentido da saúde e da medicina, em torno do programa Mais Médicos. Penso que a questão central no debate não pode ser obnubilada pelas críticas: é preciso ter médicos em todas as unidades públicas, em todo o país, para democratizar a saúde, em especial para os mais pobres.
Diante dessa consigna, no entanto, foram tantos óbices e oposições que o tema central parece ter perdido importância. Mas não. E, a despeito das pretensões iluminadas da nossa classe mérdia, a população entende-o perfeitamente. As mães e pais com seus filhos o entendem, e também os filhos, com seus pais idosos e doentes. O povo sabe o que é a dor sem remédio. O descuido no atendimento que limita para sempre. O trabalhador sabe o que é a insensibilidade do perito médico. O povo sabe o que é perder um ente querido por não haver remédio, atendimento, nem consolo, nem dignidade.
Por isso, acredito que as ações dos sindicatos e conselhos – não todos, espero, mas duvido – de Medicina e o impacto sobre a sua base da mobilização contra o programa Mais Médicos, foram imenso desserviço à categoria. Acho que eles não entendem isso. Não percebem, mas o povo os olha de modo distinto daquela sacralidade atribuída ao médico, a quem se confia tanto sobre nossas vidas, e muitas vezes com tantas decepções. Acho que a categoria entrou num beco sem saída quanto aos valores que tradicionalmente encarna diante da opinião pública.
Dos problemas da saúde o povo já sabe. Talvez não soubesse do extremo corporativismo, da insensibilidade social, do sentido de elite e do conluio com a medicina privada. No fim das contas, o que fica é que a Dilma tentou levar os médicos aos mais pobres e necessitados, e a maioria da juventude formada nas escolas de medicina com o dinheiro público e seus mestres, em vez de se somar a esse esforço, propor melhoras que cumprissem o que o povo demanda, acabaram fazendo o pior:
1) Disseram claramente, “o problema da saúde não é nosso”. Invista, mude tudo e depois a gente conversa. Poderiam, ao inverso, ser parte da mudança, mas não. Curiosamente, nem uma palavra sobre o comércio da vida e da saúde, e o impacto dos interesses econômicos. Curioso.
2) Explicitaram um padrão profissional que a gente já conhece. Interesses tão claramente privados e de elite que colocam a urgência de democratizar socialmente os cursos de medicina e o currículo. A universidade pública, infelizmente, forma gente com esse nível de compromisso com o Brasil e o povo. Para que formar os filhos da elite, de costas para o povo, na universidade pública?
3) Declararam tão enfaticamente que não podem fazer nada, desmerecendo a sua profissão e também mentindo. Os fatos o provarão, quando os profissionais estrangeiros (que vergonha, né?) chegarem nas periferias e, defrontados com os problemas, darão um mapa ainda mais preciso do que deve ser mudado, e eles mesmos, em contato com o povo, minorarão muita dor e sofrimento, darão esperanças e ajudarão à consciência do direito à saúde que abrirá novos caminhos.
4) Apesar dos médicos (as) bons na sua técnica, faltam aqueles dedicados ao povo, corajosos. O que fica, infelizmente, é essa generalizada percepção da falta de compromisso, da insensibilidade, do individualismo, do carreirismo que tão grotescamente marcou a geração que nasceu sobre o neoliberalismo.
5) Mostraram que estão dispostos à sabotagem, à aliança com a direita e a imprensa golpista, a qualquer coisa, exceto ir atender o povo pobre e isolado. Nem vão, nem querem que se vá. É o cúmulo.
João Carlos Haas Sobrinho, o Doutor Juca, enfrentou clandestinidade, falta de recursos, mas venceu, sendo amado pelo povo do Araguaia por seu exemplo profissional e humano.
É muito triste. Poderia ser outro o quadro. A Dilma tem erros, com certeza, e também o programa. Mas o sentido avançado da iniciativa – levar médicos a todo país acabando com a discriminação social e regional, enfrentar o problema – poderia ter gerado outra reação, uma mobilização de médicos militantes a favor do SUS e por um imenso Projeto Rondon de médicos. Poderiam ter-se Inspirado nos exemplos de um Che, no leprosário de San Pablo, em plena Amazônia peruana. Ou de um João Carlos Haas sobrinho, jovem médico, um menino branco de São Leopoldo-RS, que foi para a Guerrilha do Araguaia, e cujo carinho, atenção, solidariedade e capacidade em enfrentar adversidades marcaram tão profundamente a população, que até hoje rende-lhe homenagens. Pergunto-me, aonde foram parar os profissionais que se inspiram nesse tipo de exemplo. Por que não cumpriram papel nessa realidade?
Oxalá venham muitos médicos de Cuba Socialista. Essa minoria de médicos comprometidos com o povo e o país, brasileiros(as), com certeza precisa de ajuda, e, em especial, necessita-o a população abandonada. Mas o que fica claro é a urgência de mudar não apenas a saúde, o financiamento, mas os cursos, e quem está lá. E a necessidade de mudanças estruturais que coíbam o comércio de vidas que é a saúde privada. Pelo visto, há muitos médicos explorados, trabalhando horas a fio, plantões e plantões, tomando remédios, pirando, e ainda achando que são sócios desse grande negócio.
Bons profissionais num, sentido mais profundo, humanista, solidário, existem. Dedicados, gente de bem, anjos. Mas estão assim como as inscrições do programa Mais Médicos: uma minoria, a enfrentar o elitismo, o corporativismo, a insensibilidade social, os apelos do mercado, as manipulações da imprensa golpista e da direita para sabotar qualquer iniciativa de Dilma. Fica a impressão de claro descompromisso com o que deveria ser o verdadeiro objetivo da medicina, objetivo revolucionário que une salvar vidas e contribuir com o fim das injustiças sociais, um papel de vanguarda nas mudanças da saúde no Brasil cujo potencial revolucionário eles nem entenderam. Ou pior, entenderam sim, e claramente disseram: afasta de mim esse cálice.
*Sociólogo e Bancário, Secretário Nacional de Juventude Trabalhadora da CTB.