O SUS para todos e construído por todos: participação da sociedade em tempos de ataques à democracia
por Livia Angeli Silva, vice-presidente do Cebes, professora adjunta da Escola de Enfermagem da UFBA, doutora em Saúde Pública ISC/UFBA
O SUS não é o maior sistema universal de saúde do mundo apenas pela dimensão continental do território pelo qual ele se responsabiliza, pela sua ampla oferta de ações e serviços ou pelos recursos que mobiliza, mas também por ser um sistema que envolveu, ao longo de sua história, um número significativo de sujeitos na sua construção, tornando possível traduzir a realidade de um país tão diverso.
A participação popular/comunitária foi assumida como uma diretriz e como princípio, sendo também considerada como elemento intrínseco a outros princípios do sistema. Essa participação, que pode ser exercida de diversas formas pela sociedade civil organizada, ganhou caráter institucional por meio das conferências e conselhos de saúde nas várias esferas de governo, espaços nos quais usuários e trabalhadores da saúde têm papel fundamental, uma vez que juntos conformam a maioria desses colegiados.
Esse ponto de partida da participação popular e dos trabalhadores na criação do SUS, que desde o primeiro momento sofreu duras resistências, seguiu ao longo dos anos apresentando lacunas, sendo revisitado e aperfeiçoado, não de maneira linear, mas numa dinâmica da luta social que envolveu sujeitos diversos e blocos heterogêneos, nos contornos da jovem democracia brasileira.
A partir das necessidades identificadas e pressões exercidas, políticas foram conquistadas, tanto no sentido de dar voz a grupos negligenciados e potencializar articulações advindas dos movimentos de vários segmentos, como de evidenciar saberes populares. Também foi instituída uma gestão do trabalho na saúde que considera o trabalhador do SUS como sujeito ativo e constituinte da sua prática, envolvendo-o formalmente nos espaços de decisão e com possibilidade de negociação com os gestores e garantia de seus direitos. Entretanto, promover a democratização de processos decisórios e favorecer a gestão participativa não é tarefa simples em um cenário de forte interesse do mercado e um sistema político cheio de vícios, como acontece no Brasil.
Os contextos políticos e econômicos que o recém-criado sistema enfrentou exigiu das organizações populares e de trabalhadores uma intensa atuação para garantia do “SUS constitucional”. Primeiro, conviveu com a implantação de políticas neoliberais dos anos 1990, depois, as contradições oriundas dos governos do campo democrático-popular com as políticas de conciliação de classes nos anos 2000. Nessa perspectiva, o SUS vivenciou uma arena de disputas que contou com atores representando interesses conflitantes e a participação dos movimentos sociais e das organizações de trabalhadores conseguiram, em momentos cruciais, promover alguns avanços ou mesmo impedir derrotas. Contudo, não teve força para impulsionar reformas estruturantes que o setor saúde precisava e, menos ainda, aquelas que retirasse o Brasil da lista dos mais socialmente desiguais. Apesar dos avanços setoriais, não se conseguiu colocar o direito à saúde na agenda prioritária da luta social. A concepção de saúde como consumo de serviços ainda prevaleceu na agenda de muitos movimentos, a exemplo do movimento sindical, mesmo com o forte debate da determinação social no interior do campo da saúde.
Mas a mudança no cenário político do país coloca a luta pelo direito à saúde em outro patamar. Com a crise, que começou a se intensificar em 2013 e ganhou proporções maiores após 2016, chegamos a uma polarização extrema da sociedade ao longo dos últimos anos. As elites passaram a expressar abertamente o que antes estava velado, quanto ao desejo de acabar com direitos sociais como saúde, previdência, educação e outros.
A participação popular como sustentáculo da defesa de um sistema universal público e gratuito sofre nesse momento ataques em duas dimensões importantes. De um lado, como formas de ataques diretos, está a fragilidade provocada nas organizações da sociedade civil e criminalização de movimentos sociais. Do outro, do ponto de vista da disputa ideológica, dentro de um debate mais amplo de justificativas econômicas para a redução de direitos, é fortemente disseminada a negação do público. Esta segunda dimensão faz com que, embora a saúde seja apontada como preocupação e principal demanda de brasileiros nas pesquisas de opinião, ela seja defendida na lógica do privado por parte importante dessa população.
A via institucional da participação no SUS torna-se um espaço limitado nesse contexto de governo autoritário. Há uma explícita desconsideração das instâncias de controle social no SUS para a definição de políticas e ações governamentais. Para alimentar a base de apoio, o governo utiliza toda sua logística comunicativa para desqualificar as instâncias constituídas e as formas de representação da sociedade civil, numa clássica ação populista. Outro aspecto é o desmonte de dispositivos que garantiam a gestão do trabalho, que além de implicar na qualidade da atenção à saúde, implica diretamente nas formas de participação do trabalhador nos processos decisórios e controle social, sobretudo pela perseguição político-ideológica.
E enquanto os embates vão se dando entre os atores políticos, as medidas vão sendo tomadas pelo governo, conduzindo o país a uma situação na qual o Estado brasileiro passa a desmontar as bases do sistema público de saúde, ao tempo em que adota medidas que pioram as condições de vida das pessoas e do meio ambiente, que resultará em impactos negativos na saúde e maior demanda por assistência. Somado a isso, pela redução de recursos e privatização por dentro do sistema, materializa-se a fragilização dos demais âmbitos da atenção à saúde que envolve o monitoramento de bens essenciais como água, solo, segurança alimentar, dentre outros.
Desta forma, o horizonte que existia antes para a luta popular, de identificar as limitações do sistema para avançar, dá lugar a uma necessidade máxima de mobilização de atores para sustentar o que foi conquistado, mesmo com todas as suas limitações, em meio à conjuntura adversa. Uma clara necessidade de recuo, mas não paralisante. Apenas um movimento cauteloso, para atuar em um cenário no qual somam-se antigos desafios com os atuais, num enfrentamento de adversários com táticas propositalmente confusas, que usam armas que o movimento social brasileiro não conhecia e ainda não sabe claramente como lidar.
Uma organização como o CEBES, assim como o foi na construção do SUS, tem um papel estratégico. Se no processo de redemocratização do país, atuou como “útero generoso”, articulando movimentos diversos em torno do direito à saúde para atender àquela conjuntura, tem nesse momento a necessidade de pensar caminhos para o desafio que está posto, em que as estratégias não estão dadas.
O desafio que um dia foi de propor um sistema universal, agora é de demonstrar que ele continua sendo viável. Evidenciar que não se trata de um país pobre, e sim, de um país que reduz suas receitas em uma política econômica suicida. Assim, a produção e difusão de conhecimento passa a ser essencial para a articulação da luta cotidiana.
Mas cabe ainda reconhecer que tal tarefa é mais complexa, na medida em que se convive com uma disseminação indiscriminada de informações falsas com o objetivo de confundir a população. Situação ainda mais grave, porque não somente elas circulam pelas diversas redes de comunicação informal, mas os conteúdos dessas fakenews passaram a compor o discurso oficial do atual governo brasileiro.
Possíveis questões a serem colocadas são: como potencializar a participação popular diante desse cenário, com uma disputa desigual e acirramento da polarização da sociedade brasileira? como convergir a capacidade de luta cada vez mais reduzida pelo aumento do número de pessoas em condição de vulnerabilidade e luta árdua pela sobrevivência?
Os desafios são enormes e perpassam pela estratégia de comunicação, capacidade organizativa e de convergência de interesses. Não cabe disputa por protagonismo nesse momento, mas sim, ampla unidade para vencer um adversário poderoso, sendo necessário reconhecer que a via de participação institucional, que o setor saúde depositou muita energia, nesse momento é a mais limitada. Mas também não dá para reproduzir a forma de organicidade do momento pré-SUS, uma vez que a dinâmica da sociedade é outra e as formas de viver, lutar e se comunicar ganharam novos elementos.
Também há que considerar as mudanças de tática dos adversários. Prevalece uma aglutinação pelo ódio e intolerância, que tenta manter falsos contornos de democracia, com apoio de setores populares, com uso exacerbado das mídias digitais.
Não temos ainda o desenho de nossa ação, mas teremos que ter capacidade de luta, sensibilidade para perceber as sutilezas, coragem para enfrentar a dureza do momento, criatividade para nos reinventar, solidariedade e unidade para retomarmos os rumos de uma democracia participativa. Afinal, saúde é democracia!