Ofensivas antigênero

artigo escrito por Maria Clara de Mendonça Maia, mestranda em Ciência Política pela UFMG e militante da Marcha Mundial das Mulheres, originalmente publicado no site A Terra é Redonda

O direito ao aborto no centro da disputa democrática

Desde 1990, durante o 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, realizado na Argentina, o dia 28 de Setembro foi estabelecido como o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (2017), 25 milhões de abortos induzidos ocorrem anualmente. Na América Latina, 75% dos abortos realizados seriam inseguros.

Apesar disso, no Brasil, o aborto provocado é crime contra a vida previsto no Código Penal Brasileiro de 1940, nos artigos 124 a 127, exceto em casos de risco de vida para a mulher e de gravidez resultante de estupro, devendo ser praticado por médicos, conforme artigo 128. Desde 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizou aborto provocado em caso de feto anencéfalo.

Estando a um mês da celebração dos 30 anos do início do Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe, o Ministério da Saúde Brasileiro publicou a Portaria Nº 2.282, que “Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”. A referida Portaria estabelece, em seu Art. 1º, a obrigatoriedade pelo médico e demais profissionais da saúde notificarem à autoridade policial; em seu Art. 6º, o esclarecimento da mulher sobre os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde; em seu Art. 8º, a disponibilização pela equipe médica da mulher visualizar o feto ou embrião por meio de ultrassonografia.

Essa Portaria significa um retrocesso em relação à garantia do aborto legal em caso de estupro, como mais uma tentativa de constranger as equipes médicas, desencorajar as mulheres vítimas de violência a tomar decisões de forma segura, desrespeitar os princípios legais previstos no Código Brasileiro e violentar o direito de autonomia das mulheres.

Na última semana, ficou na agenda do debate nacional a realização do aborto legal de uma criança de 10 anos, estuprada pelo tio desde os 6, resultando em uma gravidez de risco. Apesar do aborto em caso de estupro ser legal no País desde 1940 e não exigir Boletim de Ocorrência desde 2005, o procedimento precisou ser autorizado pela justiça brasileira e, ainda assim, o atendimento foi negado pelo hospital da capital do estado onde vive a criança. Para realizar o procedimento com segurança a menina e a vó precisaram viajar até Recife, onde houve mobilizações de grupos fundamentalistas religiosos e conservadores, após uma militante da extrema-direita divulgar o nome e endereço da criança, além do hospital em que o procedimento seria realizado e o nome do médico.

Cabe ressaltar que, antes disso, a equipe da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos visitou o domicílio da criança para convencê-la a não abortar.

Esses dois recentes fatos exemplificam a explícita ofensiva antigênero em curso no Brasil, com a retirada de direitos e o aumento da violência em relação aos aspectos de gênero e sexualidade, em que as principais pautas articuladoras são a questão do aborto e da ideologia de gênero, resultado de uma agenda transnacional neoconservadora (CORRÊA e PARKER, 2019), possibilitada pelos efeitos desdemocratizantes do neoliberalismo, conforme discutido por Wendy Brown (2006 e 2019)

A discussão sobre o aborto é uma questão fundamental para a democracia e a cidadania porque é condição necessária ao acesso pleno à esfera política e à autonomia individual e coletiva e, por isso, trata-se também de uma questão política.  O principal desafio da luta pelo direito ao aborto é o de afirmar esse direito como fundamental para a autonomia e a igualdade, com liberdade nas escolhas sexuais e reprodutivas (BARSTED, 1992; SILVEIRA, et al, 2018).  Para Lamas (2013), o direito ao aborto passa por pontos fundamentais: a decisão sobre o próprio corpo; sobre o próprio plano de vida; o cuidado com a saúde; a preservação da integridade física e mental; e a igualdade de oportunidades; e a criminalização da prática violenta, portanto, os direitos de autonomia, de liberdade, de dignidade e de igualdade.

O aborto é visto, pelos movimentos feministas, como uma questão também da problemática das esferas pública e privada, uma vez que grau de liberdade na esfera privada reflete o grau de politização da temática na esfera pública. Faz-se necessário retornar à discussão da divisão sexual do trabalho, apresentada por Pateman (1988), que defende que o contrato social discutido por teóricos contratualistas clássicos é, na verdade, um contrato social e sexual. Para a autora, o contrato social é uma história de liberdade que oculta a dimensão sexual, que é de dominação. No contrato original, a liberdade civil não é universal, é exclusiva dos homens, porque cria o direito político dos homens sobre as mulheres, e origina a esfera pública, da legislação civil, da liberdade, das igualdades civis, do político e do econômico, e a esfera privada, da sujeição e da dominação. O indivíduo universal tratado pelos contratualistas de forma abstrata, quando corporificado, é o corpo masculino. As mulheres, seus corpos e a reprodução são a personificação do espaço privado, da vida doméstica e da maternidade.

Embora o aborto seja uma prática frequente na esfera privada, é fortemente condenado no imaginário da opinião pública, o que refletiria a lógica da dominação em relação à temática do aborto na esfera pública (BOLTANSKI, 2012). A questão posta, portanto, não é a realização do aborto, mas quem decide e em quais circunstâncias sobre sua realização, evidenciando também os aspectos de classe e raça, amplamente pautados pelos movimentos feministas nos países periféricos, uma vez que as maiores vítimas de sequelas de abortamento inseguro são mulheres pobres e negras (BIROLI, 2014; BARSTED, 1992).

A criminalização e precarização do aborto clandestino é um desafio histórico para os direitos humanos, sobretudo nos países pobres. A ilegalidade inibe a procura de serviços de saúde, com o aumento das mortes e complicações. A criminalização do aborto escancara a relação entre gênero, raça e classe, uma vez que, de maneira geral, mulheres de classes médias e altas, e geralmente brancas, têm acessos a opções mais seguras para realização do aborto, embora também sofram com a clandestinidade e a precarização, enquanto as mulheres de classes mais baixas, e geralmente negras, são as que têm consequências mais graves ou morrem pela realização do abortamento inseguro.

Apesar da relevância social, política e acadêmica da discussão sobre a legalização do aborto, os avanços conceituais e de direitos internacionais sobre o tema repercutem pouco no debate político e jurídico Brasil.  Na atual conjuntura, torna-se ainda mais nítido como os direitos das mulheres colocam-se no centro da disputa democrática, com o avanço das ofensivas antigênero à nível social, político e institucional, para a consolidação de um projeto neoliberal, conservador, patriarcal, racista e profundamente antidemocrático. Entretanto, há um descompromisso histórico dos setores progressistas com a defesa da legalização do aborto de maneira crítica e emancipatória, que se faz ainda mais necessária agora, como um aspecto crucial para a reconstrução democrática e a consolidação de direitos.

Referências

BARSTED, L. de A. L. Legalização e descriminalização: 10 anos de luta feminista. Estudos Feministas, Rio de Janeiro: Ciec/ECO/UFRJ, v. 0, n. 0, p. 104-130, 1992.

BIROLI, F. Autonomia e justiça no debate sobre aborto: implicações teóricas e políticas. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 15, p. 37-68, set./dez. 2014.

BOLTANSKI, L. As dimensões antropológicas do aborto. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 7, p. 205-245, jan.-abr. 2012.

Brasil. Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.282/2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.282-de-27-de-agosto-de-2020-274644814.

BROWN, Wendy. “The American Nightmare, Neoliberalism, Neoconservatism and De-democratization”, Political Theory, Vol. 34, No. 6, pp. 690-714. 2006.

BROWN, Wendy. Nas Ruínas do Neoliberalismo: a Ascensão da Política Antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 256 p. 2019.

CORREA, S. PARKER, R. Prefacio. In: Corrêa,Sonia & Kalil, Isabela. Políticas Antigénero en América Latina: Brasil –¿La Catástrofe Perfecta?, G&PAL, ABIA -Asociación Brasilera Interdisciplinar de SIDA SPW -Observatorio de Sexualidad y Política. 2019

LAMAS, M. La batalla por el aborto. IN: LAMAS, Marta (org.). Cuerpo, sexo y política, Editorial Océano de México: México D.F., 2014. pp. 93-116.

PATEMAN, C. The sexual contract. Stanford: Stanford University. 1989.

SILVEIRA, L. S. FARIA, N. MORENO, R. VITÓRIA, C. COELHO, S. Direito ao aborto, autonomia e igualdade. Sempreviva Organização Feminista, São Paulo, 62 p. 2018.