Os múltiplos caminhos da privatização da saúde na América Latina

artigo de José Antonio de Freitas Sestelo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos de Saúde Coletiva, Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde Henry Jouval Jr., Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

O livro Privados de la salud: las políticas de privatización de los sistemas de salud en Argentina, Brasil, Chile y Colombia, publicado pela Hucitec em 2018, de autoria de Maria José Luzuriaga, é uma análise comparada de políticas de saúde que toma o dinâmico e contraditório processo de privatização da assistência em países selecionados da América Latina como objeto central.

Ao proceder a sua análise, a autora não recorre a modelos apriorísticos e homogeneizadores baseados nos desenvolvimentos teóricos do welfare pós-1945, mas coloca em perspectiva, tanto quanto possível, a complexidade das relações políticas e institucionais entre agentes públicos e privados, eventualmente envolvidos na constituição de uma ‘política das políticas’ com resultante privatista, segregacionista ou concentradora de recursos.

Por este motivo, a leitura atenta da primeira parte da obra é um passo imprescindível para que os dados sobre os países selecionados dispostos na segunda parte possam ser adequadamente interpretados e os limites e possibilidades da análise apresentada na terceira parte possam ser compreendidos.

Um breve capítulo introdutório apresenta as justificativas do estudo e deixa evidente a validade da hipótese de trabalho apresentada, que assume uma perspectiva comparada em que é possível visualizar padrões e articulações não alcançáveis por um estudo de caso individual, avançando além das explicações locais.

De fato, não seria possível levar adiante uma investigação desta natureza caso se tomasse a dimensão pública e a dimensão privada dos sistemas de saúde como compartimentos impermeáveis nos quais se produzem realidades paralelas e dicotômicas. O arsenal teórico e conceitual de autores como Paul Starr (1982), Hans Maarse (2004), Maureen Mackintosh (2016) e especialmente Theodore Marmor (1983) é apresentado como referência fundamental para que o leitor possa transitar com segurança pela zona nebulosa da fronteira entre o público e o privado na assistência.

A pesada carga ideológica presente nos debates sobre o tema, especialmente desde os anos 1990, solicita um esforço adicional, levado adiante pela autora, no desenvolvimento de definições instrumentais mais precisas sobre a natureza das práticas privatistas, seu lugar na assistência, e sobre as mudanças operadas no interior das instituições públicas em decorrência dos processos em curso.

A opção de analisar os processos de privatização segundo uma abordagem pragmática, que contemple simultaneamente diferentes perspectivas, permite a delimitação de um quadro mais completo que, não obstante, comporta variações, ou seja, trata-se de um elenco múltiplo e sincrônico de processos privatizantes nos quais é possível visualizar matizes e contradições, avanços e retrocessos condicionados pela ação política.

A primeira parte da obra se completa com um capítulo que explora a natureza das organizações que comercializam planos e seguros de saúde nos países selecionados e com um capítulo final que trata dos limites do uso de tipologias para o estudo comparado de sistemas ou de políticas de saúde.

A autora deixa claro que, assim como não é possível tratar dos processos privatizantes desde de uma definição única e totalizante, também para tratar especificamente dos esquemas de intermediação assistencial existentes, não é suficiente a aplicação de uma matriz teórica unificada. Entretanto, considera válido atribuir lugar de destaque à miríade de esquemas de intermediação assistencial privativa existentes, tomados como proxy dos processos privatizantes, dado o seu papel estratégico na disseminação da lógica de modulação do acesso mediante a capacidade de pagamento do usuário, não importando a forma de conveniência adotada pelas organizações atuantes.

Quanto ao capítulo dedicado aos limites no uso de tipologias clássicas para o estudo de políticas e sistemas de saúde, há um elenco variado de referências críticas como Theodore Marmor, Claus Wendt, Clare Bambra e Ben Fine que são colocadas em perspectiva.

Entre as principais limitações relacionadas com o uso acrítico, em países periféricos, de tipologias eurocêntricas/weberianas baseadas no grau de desmercantilização da força de trabalho, ou outras, baseadas na tríade cobertura, financiamento e propriedade da estrutura de serviços, formuladas no âmbito da escala de relações comerciais ampliadas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a autora aponta como ponto crítico o problema do grau de comparabilidade entre os objetos selecionados.

Além disso, aponta que a vinculação de determinado sistema a um tipo ideal, segundo critérios organizacionais e financeiros mais amplos, pode servir como uma barreira cognitiva que impede a análise da dinâmica de mudanças observadas em tempo real e os avanços e retrocessos de políticas específicas. No limite, há o risco de induzir que um determinado rótulo permaneça por tempo indeterminado, ainda que não seja mais apropriado.

O risco de submissão acrítica a algum tipo de imperialismo conceitual eurocêntrico é grande na periferia do sistema e, não raro, pode levar a um descasamento entre a informação empírica disponível e os seus elementos de sustentação teórica.

A segunda parte da obra apresenta os dados de países selecionados, coligidos segundo os parâmetros apresentados pela autora no início de cada um dos capítulos.

O capítulo dedicado à Argentina analisa os processos de privatização naquele país com base no estudo de duas políticas públicas: a Ley de competencia entre obras sociales – decreto n. 9 de 1993 de Libre elección de Obras Sociales e a Ley n. 26.282 de 2011 que regula as empresas de medicina pré-paga (EMP).

No que se refere ao anunciado objetivo de incremento da competição entre as Obras Sociales, como vetor para melhoria na oferta de serviços, a autora aponta a existência de um consenso sobre o fracasso desta tese. Ao contrário, o que se verificou foi um aumento nas desigualdades de acesso, assim como um aumento na participação do setor privado por meio das empresas de medicina pré-paga no ambiente da seguridade social, resultando na perda parcial do caráter solidário original das Obras Sociales. Quanto à análise dos efeitos da Ley n. 26.282 de 2011, que regula as EMPs, os resultados são inconclusivos, embora haja indícios de reincidência de inconformidades flagrantes não alcançadas pela fiscalização.

O capítulo que trata do Brasil analisa três políticas conexas importantes, e eventualmente contraditórias, praticadas entre a década de 1980 e 2015: a criação do Sistema Único de Saúde (SUS); a Lei Federal 9.656/1998 que trata de planos e seguros de saúde; e as mudanças na Lei Orgânica da Saúde, que permitiram a participação de capital estrangeiro na assistência.

A análise aponta que a extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e o correspondente aumento do poder político do Ministério da Saúde como gestor federal do SUS ampliaram o grau de integração de diversas políticas públicas de assistência, mas não alteraram de forma substantiva o padrão de articulação público-privada vigente de modo a impor limites ao avanço dos esquemas empresariais de intermediação assistencial, nem à abertura do espaço de transações da saúde como locus de acumulação para o capital, representado por fundos transnacionais financeirizados desde os anos 2000.

O caso do Chile é emblemático e tem sido amplamente discutido no meio acadêmico, dada a radicalidade das mudanças políticas praticadas desde o golpe de 1973 e o forte viés ideológico privatizante imposto naquele país. Após mais de quatro décadas, entretanto, é possível identificar a presença de algum revisionismo pragmático no conjunto das políticas analisadas.

A autora analisa cinco políticas públicas: 1) descentralização e regionalização do sistema de saúde; 2) criação das Instituciones de Salud Previsional (ISAPRES); 3) reforma Garantias Explícitas de Salud (GES) ou reforma da reforma; 4) sentença do Tribunal Constitucional de 2010 sobre a inconstitucionalidade da tabela ISAPRES e 5) proposta de reforma da comissão criada pela Presidência em 2014.

Assim como o Chile nas décadas passadas, também a Colômbia tornou-se referência na década de 1990, com a virtual universalização da cobertura promovida pelo Sistema de Seguridad Social Integral. O modelo colombiano de privatização se expandiu por meio do estímulo à atividade de intermediação assistencial financiada pelo orçamento público, e a instância judicial tornou-se recurso recorrente para solução de conflitos provocados pelas exclusões de cobertura dos pacotes pré-estabelecidos de oferta. Isto justifica o estudo da sentença T-760 de 2008, elaborada pela corte constitucional ao lado da mencionada Ley 100 de 1993, e de sua atualização promovida pela Ley Estatutaria de Salud n. 1751, aprovada em 2015.

Por fim, a terceira parte da obra apresenta uma análise, necessariamente provisória, mas que efetivamente ilumina um cenário marcado pela nebulosidade característica da interface na qual se dá a apropriação do público pelo privado. Tratar os processos privatizantes como um vetor, um direcionamento que conforma novos padrões de articulação público/privado sem um ponto de origem ou um destino finalístico específico é uma chave possível para a superação de modelos determinísticos de descrição da realidade nos quais não há espaço para a ação política consequente.

Com todos os limites que se possa atribuir a um estudo desta natureza, que seleciona aspectos relevantes de um processo multifacetado e dinâmico, deixando de fora outros tantos, o que se obtém ao final é um saldo positivo na coleção robusta de dados apresentados, no desenvolvimento teórico e no ajuste da precisão conceitual que trata de múltiplos processos privatizantes incidentes sobre formações sociais distintas, ainda que situadas na mesma região.


Referências

LUZURIAGA, Maria J. Privados de la salud: las políticas políticas de privatización de los sistemas de salud en Argentina, Brasil, Chile y Colombia. São Paulo: Hucitec, 2018. 384 p.

STARR, Paul. The social transformation of american medicine: the rise of a sovereign profession and the making of a vast industry. Cambridge: Basic
Books, 1982.

MAARSE, Hans. The changing balance between public and private in health care: an introduction. In: MAARSE, Hans. Privatization in European healthcare: a comparative analysis in eight countries. MAARSSEN: Elsevier gezondheldszorg, 2004. p. 15-32.

MACKINTOSH, Maureen et al. What is the private sector? Understanding private provision in the health systems of low-income and middle-income countries. The Lancet, v. 388, n. 10.044, p. 596-605, 2016.

MARMOR, Theodore R. Rethinking national health insurance. In: MARMOR, Theodore R. Political analysis and American medical care: essays. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. p. 187-206.