O que a experiência de São Paulo pode ensinar sobre a intervenção setor privado no SUS

Em parceria com APSP e Outra Saúde, Cebes promove debate sobre a atuação das OSS e o enfraquecimento da capacidade de gestão pública das secretarias e o fortalecimento do modelo privado 

Existe OSS do “bem“? Um dos grandes desafios na área da saúde é a desconstrução de um modelo de gestão, que teoricamente é sem fins lucrativos, mas que invade a gestão pública dentro da lógica do mercado. O modelo de Organização Social de Saúde (OSS) e sua atuação no Sistema Único de Saúde (SUS) é uma prática que precisa ser encarada pelo campo progressista e se revela um enorme desafio da atualidade no Brasil. 

A série de debates “O futuro do SUS em São Paulo“, organizada numa parceria entre o Cebes, Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) e Outra Saúde, trouxe nesta segunda-feira (29) algumas possibilidades e desafios que deverão ser enfrentados. Atualmente no município de São Paulo mais de 70% dos trabalhadores da saúde são geridos por OSS. “São Paulo é precursor nesse modelo e ele expandiu rapidamente. Não necessariamente esse modelo garante a qualidade da assistência à população do nosso município”, comentou Tatiana Anéis, coordenadora da APSP. 

O encontro contou com a participação de Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde e presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), e José Alexandre Weller, biomédico, doutor em Economia Política da Saúde e assessor de Planejamento da Ebserh. 

Chioro destacou a relevância do tema para este ano de eleições municipais. O processo histórico de implantação das OSS também foi explicado através de um panorama que demonstrou o avanço do modelo até o estágio atual. “É inquestionável a adesão que se fez ao modelo das OSS no âmbito dos municípios, talvez de maneira mais acentuada, acelerada e mais desregulamentada que aconteceu em relação aos governos estaduais”. 

A proliferação das OSS aconteceu de forma tão desregulada que ainda hoje não se sabe o número de organizações em operação no país. Um dos grandes desafios é que ao longo dos anos o modelo se consolidou como uma alternativa legal. “Podemos discordar, mas alegar sua inconstitucionalidade ou ilegalidade não faz mais sentido”, apontou Chioro. “Ela está inserida no arcabouço jurídico institucional e isso é um complicador para quem se depara com essa realidade”. 

Impactos – As Organizações Sociais de Saúde enfraquecem e fragilizam desde a participação social até as relações de trabalho. Neste encontro, o debate em torno da realidade São Paulo serve para todo o país, já que a cidade caracteriza o que há de mais estabelecido em termos de gestão de OSS. 

A pergunta que abriu este texto, foi descrita por Arthur Chioro como uma frase ouvida por ele a partir de uma dirigente de hospital gerido por uma organização social; “ainda bem que nós somos uma OSS do bem”. “Essa frase me impactou tanto que a utilizei em artigos depois, porque imagine uma administração pública depender de uma instituição que se caracteriza como do bem ou do mal”, relatou. 

Para ele, a realidade em São Paulo é o avanço no processo de entrega de hospitais, redes de Atenção Primárias, UPAs e serviços de saúde mental. Outra grande questão é a vinculação que estas organizações possuem, como políticos e secretários. “Mais recentemente, aquilo que já se percebe, segundo informações, há pelo menos cinco ou sete anos, de uma certa inserção do crime organizado nas Organizações Sociais”. 

Embora considere que existem organizações que atuam de maneira diferenciada, Chioro elencou uma série de situações que costumam estar presentes na atuação delas, como problemas administrativos, custo que não se justificam, resistência a se submeterem a regulação do gestor do SUS (estado ou município), resistência a mecanismos de controle social constitucionais, presença de interesses privados (políticos, corporativos ou empresariais) e contratos que primam pela escolha do tipo de pacientes que pretendem atender. 

Outra questão que vem ocorrendo a partir da presença das OSS é a gestão de serviços que deveriam ser de competência exclusiva do sistema de saúde. Essa prática estimula ainda mais o desinvestimento em formulação políticas para atenção básica, hospitalar, especializada, urgência e emergência, vigilância em saúde e outras. 

A prática das OSS – Por definição, Organizações Sociais de Saúde são entidades consideradas filantrópicas do terceiro setor. Elas surgiram no Brasil como uma modalidade de provisão de serviços de saúde a partir dos anos 1994/1995, com o chamado Plano Bresser (Reforma do Aparelho do Estado) que previu a flexibilização em serviços de administração pública. 

Na prática, elas representam o modelo privatista de gestão, onde até mesmo os profissionais são contratados via CLT. Para José Alexandre Weiller, há um “incômodo” em imaginar o serviço público sendo organizado por uma instituição privada. “A instituição privada parte de princípios que não necessariamente são os princípios públicos. Então, de saída, a natureza dela é privada, que obviamente é constituída por interesses com um arcabouço de relações que são privadas que não necessariamente são interesse que culminam numa melhor produção de saúde e construção do SUS”. 

Para Weiller é necessário ter a compreensão sobre quais grupos políticos estão operando por trás das organizações. “Além de achar que ela é só um aparato administrativo operacional, entender que ela também guarda uma relação política e ideológica”, aponta. “A lógica administrativa e por vezes produtivista de uma OSS entra em rota de colisão de qualquer forma de pensar a produção de saúde de forma integral”.  

Na prática, estamos falando da terceirização de um serviço que é de responsabilidade do Estado, inclusive nas relações de trabalho. “Aumentando o grau de terceirização, as responsabilidades vão sendo passadas para frente”. Nesta lógica temos um aparato de precarização do trabalho. 

Weiller lembrou que quando se discute a desconstrução do modelo de OSS não se trata de afetar o trabalho no SUS. “O trabalho no SUS existe antes e vai existir depois das OSS”. Nesse aspecto, qualquer estratégia de transição deve ser realizada de maneira segura tanto para os trabalhadores quanto para a população. “Temos que fazer um esforço lógico e material para construir essa mudança, porque é preciso entender que serviços públicos têm que ser produzidos por gestão pública, com responsabilidade pública”. 

Possíveis caminhos – Esta série de debates faz parte de um esforço das organizações envolvidas para promover as discussões necessárias tanto para o período eleitoral que teremos este ano, quanto para futuras ações que envolvem a correlação de forças políticas. 

Para o diretor do Cebes, Matheus Falcão, é preciso ampliar o debate em torno dos problemas do Estado com a perspectiva de melhorias que realmente garantam o provimento de serviços de qualidade para a população. “A ideia dessa discussão é a gente começar a pensar a gestão pública do serviço de saúde a partir do marco do direito à saúde. E também largar essa concepção da sociedade, mas tão sem fundamento de que paras as coisas funcionarem, elas precisam ser privatizadas”.