Paulo Amarante: A arte de quebrar preconceitos

Em setembro de 2009, ocorreu na sede da Caixa Cultural, no Rio de Janeiro, o Prêmio ‘Loucos pela Diversidade – edição Austregésilo Carrano’, voltado para iniciativas culturais que atuam na interface saúde mental e cultura. O caminho para chegar ali foi longo. E quem conta essa história é um dos seus idealizadores o médico psiquiatra Paulo Amarante,  que inaugura o espaço “Entrevista” no site do Cebes. Na conversa, o pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz) destaca a importância da arte para quebrar preconceitos. “Uma das melhores estratégias para mudar algo é através da cultura porque ela fala na alma, no espírito das coisas, onde as coisas estão mais condensadas, mais arraigadas”, diz.

Como surgiu a ideia do prêmio Loucos pela Diversidade?
Há alguns anos, nós do LAPS – Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz) – trabalhamos com a questão cultural na reforma psiquiátrica. Acreditamos que a reforma não pode ficar restrita à ideia de reforma de serviços, pois não se trata apenas de mudança no âmbito do modelo assistencial, embora esta mudança seja fundamental e inadiável, uma vez que ainda tem uma predominância do manicômio, do asilo, do hospital psiquiátrico, do isolamento, etc. E precisamos redirecionar este modelo para a atenção psicossocial, que é centrada na comunidade, no território, na pessoa que se trata em liberdade, mantendo os seus vínculos sociais familiares. Isso tem ocorrido e é muito importante. No entanto, nossa preocupação é que a reforma não se reduza a este aspecto.

Por quê?
Boa parte da demanda vinda da internação hospitalar da pessoa em sofrimento psíquico, seja partindo da família, seja da sociedade em geral, é consequência de uma construção social histórica. Foi constituída ao longo de quase três séculos de práticas psiquiátricas equivocadas, que consideravam que a pessoa com transtorno mental seria incapaz de partilhar da sociedade ou representaria um risco para a sociedade. Não existe relação direta entre transtorno mental e periculosidade, a não ser pela construção social equivocada de associar “doença mental” à periculosidade. Para mudar essa concepção, era preciso trabalhar a questão da cultura. Por isso, quando fazemos conferências, palestras, por exemplo, nós já começamos dizendo que essa concepção arcaica de doença mental mudou. É preciso mostrar que a pessoa com transtorno mental não é irracional, não é incapaz de estudar, conviver, trabalhar. As pessoas ficam surpresas ao ver que pessoas com diagnóstico psiquiátrico dos mais graves podem compor, pintar, participar da vida comum.
Além disso, a ideia de buscar na arte e na cultura uma forma de mostrar para a sociedade que certas concepções estão equivocadas nos faz reconhecer a importância da arte também para as pessoas de forma geral. Não queremos reduzir a arte à terapia. O terapêutico pode dar um sentido de uma indicação médica, psicológica, clínica. E a arte não é só isso, por mais importante que seja esta dimensão. A arte é constituinte do sujeito. Ela produz linguagem, subjetividade, diferentes visões do mundo. Através dela, as pessoas conseguem ressignificar a vida porque canta, porque pinta, porque faz poesia. É um sentido especial à vida, que caracteriza o humano.

Pensando na arte produzida pelas pessoas com transtorno mental?
Uma das melhores estratégias para mudar algo é através da cultura porque ela fala na alma, no espírito das coisas, onde as coisas estão mais condensadas, mais arraigadas. Nas concepções das pessoas, é onde a música, o teatro, a poesia, a pintura conseguem tocar fundo.
E ainda mais interessante é falar sobre loucura com a linguagem da cultura das pessoas que passaram ou passam por essas experiências. Pessoas que estiveram num manicômio, caso clássico do livro “O canto dos malditos”, de Austregésilo Carrano, que deu origem ao filme “Bicho de Sete Cabeças”. Ou do clássico “Diário do hospício”, de Lima Barreto, ou ainda, “Os últimos dias de paupéria”, de Torquato Neto, e assim por diante. São as próprias pessoas com falando através da arte, das suas experiências, da violência a que foram submetidas, do constrangimento, da discriminação no dia a dia.

E como foi conseguir parceiros para o projeto?
A gente começou em 2005. Fiz um evento no Centro Cultural Banco do Brasil “Cultura e Loucura”. Começamos a reunir pessoas com essa mesma concepção, talvez não muito organizadas. Começamos a trabalhar nesse viés – cultura e loucura – já nas edições do Fórum Social Mundial com alguns militantes da luta antimanicomial de Porto Alegre, onde fizemos algumas intervenções nesse sentido. Conseguimos fazer uma oficina sobre Hip Hop e saúde mental, identificando grupos que falavam da exclusão, em geral, e da exclusão das pessoas em sofrimento psíquico. Nós convidamos o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, que compareceu na oficina. Foi importante a sua presença. O grupo que trabalhava na gestão do ex-ministro, que participava dos eventos do Fórum Social, e que continua lá, em especial, a Patrícia Dornelles e o Ricardo Lima, com o apoio do Ministro e do então secretário da Identidade e da Diversidade Cultural, Sérgio Mamberti, sugeriu criarmos uma política de cultura para esse segmento social. Seria uma atividade para dar estímulo a essas pessoas, dar visibilidade aos trabalhos delas. E assim surgiu a ideia da oficina “Loucos pela Diversidade”, realizada na Escola Nacional de Saúde Pública(Ensp/Fiocruz).

E que o surgiu de novo dali?
No Ministério da Cultura (MinC), havia uma proposta do Ministro Gil de reunir os próprios atores interessados para elaborar as políticas públicas para seus segmentos. Assim deve ser com as populações indígenas, com os ciganos, com os quilombolas e outros. E não é interessante e revolucionário você pensar “os loucos” envolvidos na construção de numa política nacional? A partir daí, identificamos grupos e pessoas no Brasil inteiro. Descobrimos iniciativas culturais importantes. Trouxemos essas pessoas. Todo mundo falou, problematizou pensando políticas de patrimônio, de difusão e de fomento. Criamos três grandes tópicos de ideias e aí começamos já com essa política elaborada. Iniciamos alguns trabalhos para registrar o evento. E procurando ser co