Pesquisa inédita problematiza a assistência suplementar de servidores públicos civis e militares no sistema de saúde no Brasil
Os servidores públicos e suas instituições conformam um dos importantes núcleos de organização de demandas e ofertas de esquemas assistenciais de saúde no Brasil. Mesmo após a Constituição de 1988, que instituiu o sistema público de saúde, vêm sendo estabelecidos de modo crescente marcos institucionais e regulatórios e normas políticas, que criaram modelos cumulativos públicos de atenção à saúde e esquemas suplementares destinados a esse público.
O estudo inédito realizado por Carlos Leonardo Figueiredo Cunha, sob orientação da Pesquisadora Ligia Bahia e coorientação do Pesquisador Ronir Raggio Luiz, resultou na tese de doutorado intitulada ” Assistência Suplementar aos Servidores Públicos e Militares no Brasil: dos esquemas corporativos tradicionais ao mercado subsidiado”.
Apesar que a Constituição de 1988 assegure a Saúde como um direito constitucional, a incoerência da burocracia pública, conservou a distinção de atendimento aos servidores.
Nesse contexto, o Regime Jurídico Único (RJU) anunciou a modernização da burocracia pública, mas conservou a distinção do atendimento aos servidores. Ironicamente, o RJU pretendeu ser único no que concerne ao regime de contratação e a fortalecer os direitos de servidores para trabalhar em um sistema de saúde não único. A interpretação do capítulo da seguridade da Constituição de 1998 resultou na seguinte redação:
Art. 230: A assistência à saúde do servidor, ativo ou inativo, e de sua família compreende assistência médica, hospitalar, odontológica, psicológica e farmacêutica, prestada pelo Sistema Único de Saúde ou diretamente pelo órgão ou entidade ao qual estiver vinculado o servidor, ou, ainda, mediante convênio, na forma estabelecida em regulamento (BRASIL, 1990, não paginado).
Na versão original do RJU, o SUS é consignado como a primeira opção para atenção à saúde do servidor. Mas a concepção de saúde expressa no documento é disciplinar – discrimina a assistência médica, odontológica, psicológica e farmacêutica – e não supera os marcos previdenciários tradicionais da organização privada da oferta.
A hipótese que orientou esta tese é a de que a assistência suplementar à saúde de servidores públicos civis e militares no Brasil constitui-se, simultaneamente, como um importante vetor para privatização e organização de demandas e ofertas de planos privados de saúde no Brasil segundo um gradiente de maior ou menor proximidade às formas tradicionais de seguro comercial. Ou seja, a diversidade de esquemas assistenciais, arranjos institucionais, modalidades de oferta e prestação de assistência suplementar para o funcionalismo representam, por um lado, a fragilidade e a incoerência da burocracia pública e, por outro, a resistência à adesão aos formatos menos mutualistas, baseados em cálculos de risco individualizados.
Para responder a essas indagações buscou-se sistematizar a evolução histórica e identificar os principais marcos da oferta de esquemas assistenciais aos servidores públicos e militares e, a seguir, situar a assistência suplementar de servidores públicos civis e militares no mercado de planos privados de saúde, ação realizada mediante revisão bibliográfica, entrevista e compilação e análise da legislação. Esses esforços permitiram elaborar um quadro sinótico, contendo a descrição dos principais esquemas assistenciais e dos arranjos institucionais e políticos que dinamizam a assistência suplementar à saúde de servidores públicos civis e militares no Brasil.
Observa-se que, entre 1990 e 2007, as normas legais que regulamentam a atenção à saúde dos servidores públicos da União incorporam termos utilizados pelo mercado privado de planos de saúde, como: autogestão, contratos e operadoras. A expansão das coberturas dos servidores públicos por planos privados implicou mudanças na legislação. De um padrão convenial passou-se aos contratos privados, realizados, inicialmente, fundamentados nas modalidades mutualistas (desconto em folha e pagamento pelo empregador), para as da individualização do risco (pagamento de valores definidos pelo governo) e para a adesão a planos comercializados por empresas privadas.
No que tange à saúde, o status dos servidores públicos foi alterado. De aliados e construtores do SUS, transformaram-se oficialmente em consumidores individuais de planos de saúde.
Esses processos de mudança afetaram não apenas o funcionamento cotidiano de sindicatos e associações de servidores públicos (muitos dos quais criaram diretorias de assistência à saúde e sediam atividades de corretagem de planos privados de saúde), mas também a manutenção das instituições hospitalares erigidas pelos institutos de previdência de servidores estaduais.
As tensões, portanto, não se resumem à oposição entre o SUS e os esquemas assistenciais privados, mas também entre os últimos e as modalidades mutualistas. Nesse sentido, observam-se nuances distintivas entre as autogestões das empresas estatais e a Geap. Enquanto as das estatais conservaram as formas de financiamento originais (forte participação da empresa e desconto igual para os empregados – pagamento proporcional ao salário), a GEAP adotou parte dos critérios dos cálculos individualizados do risco, como a cobrança diferenciada por faixa etária. A perenidade das autogestões, especialmente de estatais, contrasta com anúncios de insolvência e encerramento de algumas empresas comerciais e reafirma a lógica mutualista.
No Brasil, o fato de os planos de saúde para trabalhadores de determinadas estatais serem mais abrangentes do que a maioria dos comerciais impõe tensões adicionais, tanto aos servidores públicos que passam a dispor de benefícios assistenciais muito diferenciados, quanto para a concorrência no setor. A diferenciação dos benefícios que envolvem atenção à saúde para servidores públicos pode ocorrer no interior de cada instituição, mediante a compra de planos privados ou a oferta pela própria empresa empregadora ou sindicatos/associações de planos diferenciados por preços e abrangência da rede credenciada ou entre órgãos públicos. Os esquemas assistenciais à saúde dos servidores de órgãos do Legislativo e Judiciário são muito mais generosos do que aqueles ofertados para os do Poder Executivo. Magistrados e membros do Congresso Nacional têm acesso a hospitais privados considerados de alta excelência, por meio de contratos próprios ou repasses elevados para pagamento de planos de saúde caros. A prodigalidade dos esquemas assistenciais para os servidores de órgãos do Poder Legislativo e Judiciário não se estende às instituições do Poder Executivo, mas as fontes de financiamento são as mesmas. Esse padrão de diferenciação e financiamento multiplica-se em estados e municípios.
Certamente, as demandas por atenção à saúde de servidores públicos, encaradas como mercado para planos de saúde, foram canalizadas para determinadas empresas, que por seu turno expandiram-se ao atendê-las. Essas articulações que podem envolver partidos políticos, entidades sindicais, corretoras e empresas de planos de saúde politizam a atividade de compra e venda de planos de saúde. A aproximação entre proprietários de empresas do setor privado assistencial e autoridades governamentais é notória.
Entre as empresas que se destacam no atendimento às demandas por planos de saúde para servidores públicos desponta a Caixa Saúde. A comercialização de planos de saúde por um banco público para servidores públicos vem sendo apresentada como mais uma atividade de apoio ao funcionalismo, análoga aos créditos consignados e empréstimos para a aquisição de automóveis e casa própria. A conformação de um circuito financeiro público-público, totalmente apartado das necessidades de saúde e da rede assistencial pública envolvendo a saúde, sinaliza a perspectiva da sinergia entre órgãos públicos e privatização.
O presente estudo joga luzes sobre as relações entre o público e o privado, por um lado mais explícitas do que aquelas já mapeadas por pesquisas sobre deduções e isenções fiscais e ressarcimento ao SUS e, por outro, menos decantadas. Os esforços para mapear os esquemas assistenciais para agentes públicos permitiram vislumbrar um mercado com dimensões significativas e conexões políticas extra-mercado exuberantes. Seu principal mérito é o de ter delineado um panorama extenso das coberturas assistenciais para servidores públicos. No entanto, os esforços para processar informações dispersas e as poucas referências sobre o tema em uma reflexão, que dialogue com o conhecimento nacional e internacional, ainda não foram realizados. O reconhecimento desses limites acompanha um compromisso de conferir, a esta tese, o caráter de ponto de partida, e de seguir aprimorando a reflexão sobre o tema.
Mais informações com o autor pelo email leocunhama@gmail.com