Por um SUS pra valer: plano de carreira e recursos garantidos
De Ana Maria Costa(1)
As recentes manifestações de insatisfação popular com os serviços públicos, que deve ser celebrada como aprofundamento da democracia nacional, como explicitado em Nota do Cebes (2), trouxe a saúde para a agenda central dos governos, particularmente o federal. Na opinião de Silvio Fernandes (3) estas manifestações populares fizeram com que a saúde e o SUS saíssem da crônica condição de assunto de agenda setorial e contra hegemônica que sempre foi levada à reboque dos interesses da política macro econômica.
A precariedade da assistência medica – ambulatorial ou de emergência – não está restrita a pequenas cidades ou regiões especificas, mas constitui problema sério em todo o país e a população sofre as consequências disso. Pressionado pelos prefeitos, o Governo apresentou a proposta de ampliação do numero de médicos com vistas a suprir a constatada deficiência destes profissionais em municípios pobres, menores, sem qualquer recurso de saúde. Dispor de equipes de saúde, com todos os profissionais em todos os municípios brasileiros, é um antigo desafio para o SUS e para o estado brasileiro, cuja Constituição promete o direito universal à saúde sob a responsabilidade pública.
Rigorosamente não se pode falar de escassez de médicos no país, entretanto a falta de médicos se configura como grave problema pela persistente má distribuição destes profissionais. Ela está caracterizada pelas enormes lacunas territoriais com ausência de médicos. Esta situação de desigualdade no acesso à assistência a saúde é intolerável e sua solução é responsabilidade da sociedade e dos governos. A concentração de médicos nas grandes cidades, aqui e em todo o mundo, decorre de uma tendência dos profissionais de saúde em se fixarem em áreas onde existem mais recursos tecnológicos e econômico-financeiros.
O problema da distribuição de médicos e demais profissionais de saúde também tem sido objeto da preocupação dos países e das organizações internacionais. A migração destes em busca de melhores condições de vida tem ocasionado um perverso desprovimento nos países de origem.
O desafio é transformar em prática efetiva as recomendações formuladas para a solução do problema da falta de médicos de demais profissionais de saúde. Sob um ponto de vista pragmático das políticas de saúde, já existem acúmulos suficientes para uma intervenção eficaz. Mas estas intervenções devem contar com o espírito de compromisso e responsabilidade social, prevalecimento dos interesses públicos de toda sociedade brasileira, incluindo a categoria médica.
Para Henrique Botelho (4), uma atitude corporativista fechada por parte de instituições médicas brasileiras não contribui para solucionar o problema. Ele relata que “aqui em Portugal já experimentamos comportamentos semelhantes. Felizmente que actualmente a Ordem dos Médicos e os sindicatos têm evoluído no sentido de saberem harmonizar os interesses de classe com os direitos dos cidadãos e a defesa do nosso serviço universalista de saúde. Talvez porque o nosso SNS esteja a ser fortemente atacado pelas políticas neoliberais que desgraçadamente estão a comprometer o denominado modelo social europeu”.
Os caminhos e alternativas para a interiorização dos profissionais de saúde são sobejamente conhecidos e, nesse sentido, Ligia Giovanella (5) lembrou um seminário (6) realizado no Equador em 2008, com a participação de 13 países da América Latina e Europa, que debateu e apresentou diversas estratégias e incentivos empregados para fixar profissionais de saúde em áreas desfavorecidas e/ou remotas.
Uma destas estratégias para a fixação de profissionais de saúde é a criação de uma carreira profissional nacional para a atuação na Atenção Primária à Saúde (APS), que incluísse incentivos para a permanência dos profissionais de APS em zonas desfavorecidas, com estabilidade de vínculo de trabalho e salário escalonado conforme e vulnerabilidade social e incluindo a rotação por antiguidade.
Outra medida proposta pelos especialistas diz respeito ao fortalecimento da formação de profissionais da APS com oferta de programas de desenvolvimento profissional continuo; educação permanente, residência, especialização para profissionais de APS de zonas desfavorecidas e Tele-saúde, como ocorre na Espanha, Inglaterra, Suécia.
A proposta do exercício obrigatório das profissões de saúde em zonas desfavorecidas, internato rural obrigatório e serviço civil há muitos anos constam de recomendações deste grupo de especialistas e está presente em documentos de organismos e fóruns nacionais e internacionais, que tratam da questão dos recursos humanos de saúde.
Outro aspecto recomendado é a necessidade de estabelecer processo de remuneração diferenciado do pessoal de APS em áreas remotas e, ao mesmo tempo, promover melhorias da infraestrutura e das condições de trabalho para estes profissionais. A oferta de boas condições de vida e de trabalho para os profissionais que trabalham em áreas desfavorecidas deve ser considerada questão imprescindível para compor as iniciativas governamentais.
Segundo Giovanella, o principal problema da atual iniciativa governamental é a inexistência de carreira e a precariedade do vínculo por meio de bolsa: “todas as críticas sensatas ao programa, críticas de quem de fato está preocupado com a garantia do direito universal de acesso aos serviços de saúde e a concretização do SUS, salientam que, para atrair e fixar profissionais em áreas remotas, e no SUS como um todo, é necessário, ademais de salário razoável, o que já está contemplado no Mais Médicos: um vínculo estável e estabelecer uma carreira com diretrizes nacionais e aplicação estadual.
Nesta mesma direção o Cebes se manifestou em nota e também estão alinhados entidades e integrantes do movimento da reforma sanitária. Gastão Wagner (7) em artigo de opinião divulgado recentemente (8) analisa que “as contratações precárias são um dos principais problemas do SUS hoje” Nesse sentido ele propõe a criação de uma carreira para os médicos da atenção básica:-Uma carreira do SUS, com co-financiamento da União, estados e municípios. Fazer concursos por estado da federação. Criar um interstício de cinco anos em que o médico estaria obrigado a permanecer no posto. Depois, antes de outro concurso, ele poderia escolher outra localidade ou outro posto. Como ocorre com juízes e promotores. Há município sem juiz?, interroga Gastão.
Pesquisas com jovens médicos têm mostrado que vários fatores dificultam a fixação dos profissionais de saúde em áreas remotas e de maior necessidade. Segundo Silvio Fernandes, a remuneração mais atrativa é uma delas, mas não é a única e, em geral, sequer a mais importante: “pesa muito a autoestima profissional, ou seja, uma tendência forte observada na realidade brasileira de associar o médico de atenção básica àquele que ‘não deu certo’ porque não ‘conseguiu’ ser especialista. Para reverter isso é necessário promover uma carreira sólida ao médico de família, com perspectiva de ascensão e continuidade na função”.
Sobre o programa Mais Médicos, Luis Eugenio Portela (9), que acredita que o Programa Mais Médicos contém medidas na direção correta, faz ressalvas: “se sua aplicação for acompanhada da ampliação dos investimentos no SUS, com a melhoria das condições de trabalho nos serviços de saúde, incluindo a adequada supervisão pelas Universidades, provavelmente, seus resultados serão positivos”.
Fernandes, entretanto, analisa que o “Mais Médicos” deve considerar a experiência acumulada acerca da fixação dos profissionais no interior. Nesse sentido, ele comenta: “obviamente o sistema público de saúde não pode conviver com centenas de municípios e milhões de pessoas sem acesso a médicos e contar com milhares a mais. Mesmo que para isso seja preciso complementar com médicos de outros países, é importante e urgente. Questiono, no entanto, a forma de contratação, precária e por tempo determinado. Atualmente a rotatividade dos médicos que atuam na rede básica já é muito elevada e isso tem se mostrado prejudicial para a qualidade do atendimento da população”.
Sobre a ampliação da graduação para dois anos, ação também anunciada pelo governo federal através da MP, Silvio Fernandes não acredita que ela seja a melhor alternativa de integração com o SUS e de reforço à formação: “concordo plenamente com a necessidade de que sejam instituídas formas dos médicos, e também dos demais profissionais de saúde, se integrarem mais com o sistema público. Mas penso que um ano de serviço civil obrigatório, que, no caso dos médicos, poderia ser cumprido associado ou não à residência médica e articulado com as escolas de graduação ou programas de residência, talvez tivesse melhores resultados. Além disso, as estratégias de mudança dos currículos de medicina nessas últimas décadas tem sido tímidas”.
Para Ligia Giovanella, faltou pensamento estratégico e produção de consensos e ampliação da base de apoio social: “a corporação médica declarou ‘guerra’. Mas o programa governamental não é uma declaração de guerra contra os médicos. É uma iniciativa legítima e em boa parte efetiva para enfrentar um problema real”.
“Eu sou médica, e é necessário reconhecer que, inegavelmente, o médico é o profissional nuclear da atenção à saúde individual. Não existe atenção primária efetiva sem atenção individual curativa, como, por vezes, argumentam outras corporações profissionais da área da saúde. É muito positivo que o SUS tenha se tornado um tema de debate político ampliado, sua concretização com garantia de atenção universal tenha entrado na agenda política. Pela primeira vez a corporação médica fala em carreira com trabalho exclusivo no SUS. Este debate é uma grande oportunidade”, finalizou Ligia Giovanella.
Segundo a Laura Tavares Soares (10), a MP foi assumida para atender, de modo emergencial, à pressão das ruas:“autoritária e pouco democrática? Sem dúvida. Como profissionais de saúde, sabemos que as soluções emergenciais são adotadas, em sua maioria, pela ausência de medidas anteriores capazes de resolver, de modo estrutural, os determinantes dos problemas de saúde”. “Nada será possível, no entanto, sem que o financiamento da saúde seja revisto”, concluiu.
Enquanto o debate se acirra no Congresso Nacional onde a MP recebeu mais de 200 emendas e as corporações pressionam pelo fim do “Mais Médicos”, a população espera pelo SUS de qualidade e resolutivo. Paralelo a todo esse debate, mais de 2 milhões de pessoas apoiaram o projeto de lei de iniciativa popular pela destinação de 10% das receitas brutas da União para a Saúde. Este é o verdadeiro caminho que poderá fazer com que o SUS retome seu curso como um sistema de atenção e de cuidado à saúde de acordo às múltiplas e complexas dimensões que o setor exige. O processo subsequente à entrega deste projeto de lei exigido pelo povo será o de garantir sua aprovação pelo Congresso Nacional. E depois de aprovados os recursos estáveis e adequados para o SUS, caberá ainda atuar junto aos governos pela definição de qual SUS é capaz de responder aos anseios populares. Esta sim, uma grande tarefa que precisará, outra vez, do compromisso e esforço de todos nós.
(1) Presidente do Cebes.
(2) https://www.cebes.org.br
(3) Silvio Fernandes, coordenador do Observatório Iberoamericano de Políticas e Sistemas de Saúde.
(4) Médico Geral e Familiar em Portugal, dirigente de associação de classe e colaborador do Observatório IberoAmericano de Saúde.
(5) Ligia Giovanella, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
(6) Em 2008, seminário internacional sobre “FormacióndelProfesional de APS y supermanenciaen zonas desfavorecidas urbanas y rurales” em Guayaquil no Equador, com a participação de 13 países da América Latina e Europa: Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Espanha, Honduras, Itália, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
(7) Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp.
(8) https://cebes.org.br/2013/07/a-saude-o-sus-e-o-programa-mais-medicos
(9) Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
(10) Professora da Universidade Federal do RJ.