Porque o Brasil não deve dar meia volta no seu sistema de saúde
Pallavi Gupta* | No Global Health Check
O Brasil tem sido invejado pelo mundo por causa dos sucessos na redução da desigualdade na saúde. Mesmo assim, acontecimentos recentes ameaçam suas realizações na saúde. Este blog observa o impacto potencial das políticas recentemente anunciadas para o sistema de saúde pública no Brasil por meio da análise do desempenho de políticas semelhantes adotadas pelo sistema de saúde da Índia.
Brasil: sucesso e ameaças
Em resposta a seu compromisso com a declaração “saúde para todos”, de Alma-Ata de 1978, a constituição do Brasil consagra, em 1988, a saúde como um direito de todos os cidadãos, determinando a obrigatoriedade do Estado em fornecer acesso universal e igual aos serviços de saúde para sua população [1]. Uma longa luta política e o Movimento da Reforma Sanitária Brasileiro levaram ao estabelecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) [2]. O SUS descentralizado e o acesso universalizado aos cuidados com saúde, onde os municípios prestam esses cuidados de forma abrangente e gratuita, financiados pelos estados e pelo governo federal [1]. A atenção primária à saúde (APS) tem sido a chave para a estratégia da reforma da saúde no Brasil. A APS integra os cuidados médicos à promoção da saúde e a ações públicas de saúde. As equipes de saúde da família são compostas por um médico, um enfermeiro, um enfermeiro auxiliar, e de quatro a seis trabalhadores de saúde comunitários, atendendo entre 600 e 1000 famílias [2]. Apesar da oposição do setor privado de saúde e de ser subfinanciado, o SUS conseguiu melhorar enormemente o acesso aos cuidados primários e de emergência, alcançar a cobertura universal de vacinação e pré-natal e investir na expansão dos recursos humanos e de tecnologia, incluindo a produção de medicamentos essenciais [2]. Desde 2000, o governo tem investido de 3 a 4% do PIB em saúde [3]. Consequentemente, as taxas de fertilidade no Brasil se reduziram de 5,8 filhos por mulher em 1970 para 1,9 em 2008 e a mortalidade infantil reduziu-se de 114 por 1000 nascidos vivos em 1970 para 19,3 por 1000 nascidos em 2007 [2].
Ademais, em resposta aos protestos de brasileiros por melhor acesso aos médicos, o Brasil lançou mão de médicos do país e de Cuba como parte de seu programa ‘Mais Médicos’, introduzido em 2013 pelo governo de Dilma Rousseff. Essa força de trabalho adicional beneficiou 63 milhões de brasileiros que vivem em áreas remotas e vulneráveis, onde costumam conviver com a escassez de profissionais de saúde [4]. Hoje, entre 70% e 80% do país, mais de 190 milhões de pessoas, dependem do SUS para suas necessidades de saúde [2], [4].
Entretanto, as medidas de austeridade propostas pelo novo governo após o impeachment de 31 de agosto de 2016, aprovadas pelo Senado em dezembro de 2016, incluem o controle dos gastos públicos por 20 anos, o que impactará a educação pública e os serviços de saúde pública. Outra medida controversa desde o governo provisório (de maio a agosto de 2016) é a criação de um plano para incentivar as pessoas a procurar cuidados de saúde fornecidos por prestadores privados em vez de demandá-los do sistema de saúde pública do país; simultaneamente, o governo está encerrando o monitoramento do setor privado de saúde. Existem também tentativas de reduzir o papel do cuidado com saúde pública, evidenciadas pelos cortes de pessoal no Sistema Único de Saúde. Há, ainda, a possibilidade de redução do número de profissionais estrangeiros no programa ‘Mais Médicos’ [4].
Aprendendo com a Índia
Se olharem para o destino do povo na Índia, os novos Presidente e Ministro da Saúde do Brasil repensarão seu plano? O que o governo brasileiro está planejando desmantelar é exatamente o que as organizações da sociedade civil e os grupos de direitos sobre saúde têm pedido há décadas que seja estabelecido na Índia. Dos cuidados ambulatórios na Índia, 70% advêm do setor privado e quase 60% das despesas com saúde no país são pagas do próprio bolso pelas pessoas quando da utilização do serviço [5]. Uma das razões para isso é o abismo em que se encontra o sistema de saúde pública no país, cujo eterno subfinanciamento tem sido de minguados 1,28% do PIB [5]. A escassez de pessoal de saúde é um desafio enorme enfrentado pela Índia, especialmente nas áreas rurais e tribais. O setor de saúde privado, que vem crescendo aos trancos e barrancos, não é regulamentado e goza de várias isenções de impostos [5]. O governo central aprovou a Lei do Estabelecimento Clínico (Registro e Regulação) de 2010 para regular os serviços médicos privados em todo o país, de forma a que os pacientes possam receber serviços de boa qualidade com algum controle sobre seus custos [6]. Entretanto, a indústria privada de cuidados de saúde como um todo, incluindo a Associação Médica da Índia (uma associação voluntária privada de médicos), tem protestado contra a aplicação da lei, e o setor continua a operar mais ou menos segundo seus próprios termos, deixando os pacientes à sua própria mercê.
A Oxfam Índia apoiou o conjunto de testemunhos de 78 médicos que compartilharam histórias confidenciais sobre como os cuidados de saúde privados agem de ‘modo industrial’ e como os pacientes são frequentemente extorquidos tanto financeiramente como em seu direito à assistência [7]. Por exemplo, um patologista de um hospital de referência em uma cidade da Índia forneceu a falsa declaração de que um paciente era diabético (quando o nível de açúcar no seu sangue era normal) com base no pedido do médico que tinha encaminhado o paciente. Ao fazê-lo, o médico garantiu que cuidava do paciente há muito tempo, o que significava uma fonte de renda contínua. E esse não é um caso pontual.
Os resultados das medidas propostas para o sistema de saúde pública brasileiro podem ser vistos na área de saúde da Índia.
Como diz o ditado, ‘para fazer, é necessária uma vida inteira, mas para destruir, somente um dia’. O tempo de mudanças progressivas na Índia ainda está por vir, mas ‘o tempo de destruição’ no Brasil já chegou. Dado o impacto que testemunhamos, todos os dias, de um sistema fraco de saúde sobre as pessoas, só podemos esperar que o sistema público de saúde brasileiro não adote a curva U e percorra o Caminho da Índia.
Referências
[1] Flawed but fair: Brazil’s health system reaches out to the poor, Bulletin of the World Health Organization, Volume 86, Number 4, April 2008, 241-320. http://www.who.int/bulletin/volumes/86/4/08-030408/en/ (accessed 7 December 2016)
[2] Jairnilson Paim, Claudia Travassos, Celia Almeida, Ligia Bahia, James Macinko. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377: 1778–97
[3] http://apps.who.int/nha/database/ViewData/Indicators/en (accessed 30 November 2016)
[4] Katarzyna Doniec, Rafael Dall’Alba, Lawrence King. Austerity threatens universal health coverage in Brazil. Lancet 2016; 388:687
[5] Vikram Patel, Rachana Parikh, Sunil Nandraj, et al. Assuring health coverage for all in India. Lancet 2015; 386: 2422–35. http://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(15)00955-1.pdf (accessed 30 November 2016)
[6] The Clinical Establishments (Registration and Regulation) Act, 2010, Ministry of Health and Family Welfare, Government of India. http://clinicalestablishments.nic.in/cms/Home.aspx (accessed 30 November 2016)
[7] Voices of Conscience from the Medical Profession. Support for Advocacy and Training to Health Initiatives, Oxfam India 2015.
* Pallavi Gupta é Coordenador do Programa de Saúde da Oxfam India.
Tradução: Lenise Costa