Prevenção em segundo plano

Especialistas criticam falta de prioridade com atenção básica; ministério pede mais verba

Roberto Maltchik
A articulação pela volta da CPMF, liderada pelos governadores e respaldada pela presidente eleita, Dilma Rousseff, esconde um dos mais gritantes dilemas do Sistema Único de Saúde (SUS): ao investir em saúde o mínimo – ou até menos – do que prevê a Constituição, o governo prioriza o atendimento dos serviços de alta e média complexidade em detrimento dos gastos com proteção e prevenção, a chamada atenção básica. Especialistas ouvidos pelo GLOBO asseguram que essa é uma das principais armadilhas do sistema, que pode criar uma bomba relógio para o próximo governo. O Ministério da Saúde admite que há distorções e alega que, para resolver o problema, é preciso criar uma nova fonte de receita, como o ressurgimento da CPMF.
Dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do governo federal (Siafi) apontam que, no Orçamento deste ano, os gastos com atenção básica em saúde devem alcançar R$ 10 bilhões. Entretanto, para pagar procedimentos hospitalares e ambulatoriais de média e alta complexidade a despesa chega a R$ 31 bilhões.
Apresentação feita pelo Ministério da Saúde ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), este mês, mostra que os gastos com procedimentos de média e alta complexidade sextuplicaram entre 1998 e 2010. No mesmo período, os recursos para atenção básica apenas triplicaram.
O resultado dessa distorção aparece no cotidiano dos brasileiros, que observam índices a cada ano mais alarmantes de doenças que poderiam ser prevenidas e que já poderiam estar sob controle.
É o caso da dengue, cujo número de casos aumentou quase 100% entre 2009 e 2010, segundo dados divulgados na última quinta-feira pelo Ministério da Saúde. O número de infectados este ano já chega a quase um milhão de pessoas.
Tamanha discrepância, de acordo com o pediatra Gilson Carvalho, especialista no financiamento público da saúde, é provocada pela negligência dos gestores e pela pressão tanto da sociedade quanto da indústria médico-hospitalar: – A média e alta complexidade têm pressão permanente dos cidadãos, dos profissionais e dos prestadores (deserviços).
Quando me pedem para calcular recursos a mais para essa área, eu digo: não se preocupem que no fim do ano aparece esse dinheiro de qualquer outro lugar, inclusive de áreas neglicenciadas, para as quais se nega gasto durante o ano e depois se abocanham os recursos – afirma Carvalho.
O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Batista Junior, defende uma mudança radical no cálculo dos gastos com saúde.
Para ele, o sistema universal e de atenção integral só vai funcionar corretamente quando a atenção básica tiver mais recursos do que a média e a alta complexidade.
– Quando falta dinheiro para prevenir você estimula a indústria da doença. Cria-se um ciclo vicioso que, em última análise, encarece profundamente o preço do Sistema Único de Saúde. Não basta ter mais dinheiro, é preciso que se invista muito melhor – avalia.
De acordo com o presidente do CNS, a fórmula para pagar os serviços complexos, como hemodiálise e transplantes, alimenta as distorções.
Ele defende que o orçamento desses serviços seja definido previamente, considerando o planejamento das ações em determinado município por um período mínimo de três anos. Atualmente, os pagamentos são feitos por cada procedimento ou pela chamada Autorização de Internação Hospitalar (AIH).
A secretária-executiva do Ministério da Saúde, Marcia Bassit, admite que o reforço dos investimentos em atenção básica é um dos mais antigos e sensíveis dilemas do SUS. Ela culpa as gestões anteriores à do ministro José Gomes Temporão pela consolidação das distorções entre saúde básica e a de média e alta complexidade.
– Não houve preocupação com a prevenção. Já há uma demanda curativa, que não diminui.
Não podemos pensar só em números.
A pressão não é só da indústria, a população também demanda cada vez mais os métodos sofisticados de diagnóstico – diz Bassit.
Assim que venceu a eleição, a presidente eleita, Dilma Rousseff, afirmou que segurança e saúde são os dois maiores desafios para o começo de seu governo. Entretanto, de acordo com a secretária-executiva do Ministério da Saúde, é praticamente impossível melhorar o sistema, oferecendo à atenção básica mais recursos, sem a criação de uma nova fonte de recursos, como a CPMF: – Eu acredito que não há como melhorar sem pensar em outra fonte de financiamento. Não é a CPMF, o retorno. Acredito que poderemos encontrar uma solução no conjunto de uma reforma tributária – afirma ela.
Desde o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, passando pelos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, a reforma tributária é chamada de prioridade.
Entretanto, até hoje não foi aprovada pelo Congresso Nacional.
Entre os especialistas, porém, aumentar os recursos para a saúde não significa garantia de melhora no sistema.
– Com mais recursos, imediatamente teremos uma melhoria no atendimento das demandas.
No entanto, os benefícios tendem a desaparecer a médio e longo prazo, se não houver uma revisão completa na forma de aplicação do dinheiro – analisa o presidente do CNS.
Segundo o Ministério da Saúde, o orçamento da pasta neste ano deve alcançar R$ 62,9 bilhões.
Com isso, o governo apenas atende, no limite, o piso previsto pela Constituição – o orçamento e o crescimento nominal do Produto Interno Bruto (PIB) do ano anterior. Para 2011, a previsão é de gastos de R$ 68,5 bilhões.
De acordo com estudo do professor Gilson Carvalho, esse valor precisaria de um incremento de pelo menos R$ 12,5 bilhões para assegurar o “mínimo atendimento” a todos os usuários do SUS. Para um atendimento ideal, segundo o especialista, o orçamento deveria receber outros R$ 100 bilhões.

Fonte: O GLOBO