Propriedade intelectual, ferramenta do colonialismo

A crença de que o conhecimento pode ser um bem privado serve unicamente a um mundo eurocêntrico. É preciso recusá-la desde sua origem, se quisermos garantir saúde abundante para todos os povos e construir o Comum. Esse texto de Luciana M. N. Lopes faz parte da iniciativa Saúde é Democracia, uma parceria do Cebes com o portal Outra Saúde.

A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história. (KRENAK, 2019, p.11)

No trecho acima, Ailton Krenak aponta para o papel-chave da existência de uma “verdade” para a legitimação de uma configuração social específica. É nesse sentido que, para pensarmos caminhos em direção a uma revolução social profunda do mundo, com saúde para todos os povos, precisamos enfrentar a colonialidade do saber.

A colonialidade aponta para o vivo legado do colonialismo, já que a invasão e a dominação não aconteceram apenas por meio da força e da violência, mas também via criação e expansão de lógicas coloniais de controle e administração da vida e do mundo que sobreviveram à independência jurídica e política das colônias. Para Mignolo, a colonialidade é o lado mais perverso e ocultado da modernidade: a celebração da civilização ocidental moderna esconde dominação e exploração, sem as quais ela não seria possível.

A colonialidade do saber diz sobre o papel da produção do conhecimento na reprodução de regimes de pensamentos coloniais. Autores decoloniais latino-americanos apontam como a invasão da América, associada ao genocídio/epistemicídio dos povos conquistados, criou as condições políticas, econômicas, históricas e culturais para o famoso “penso, logo existo” de Descartes, que influenciaria fortemente a conformação das estruturas modernas de produção de conhecimento. Dois elementos centrais da filosofia cartesiana são: 1) a separação da mente (razão) e do corpo, sendo aquela não condicionada por esse e capaz, portanto, de um conhecimento descorporificado universal; e 2) a reflexão individual como caminho para alcançar a certeza do conhecimento, implicando em um rompimento com a produção coletiva do saber.

Para Maldonado-Torres, o outro lado da moeda da certeza do sujeito pensante é a dúvida sobre o conhecimento e a humanidade do outro: se eu penso e, portanto, existo, outros não devem pensar e, portanto, não existem. Apesar da criação do mito de um conhecimento universal, importa destacar que o “Eu” que pode alcançá-lo não é universal, mas específico: o homem europeu. O eurocentrismo é, assim, a racionalidade racista/sexista que sustenta o saber hegemônico da modernidade. Sua aceitação foi imposta como condição para se alcançar a “civilização”, em cujo ápice a Europa se colocou, passando a ser o centro do mundo, da história e a linha de chegada do tempo: aqueles que adotassem essa racionalidade poderiam deixar de ser pré-civilizados (primitivos, subdesenvolvidos) para se tornarem civilizados, desenvolvidos – como os europeus.

O eurocentrismo contribui para a naturalização da ciência ocidental como modalidade única de saber – o conhecimento verdadeiro e universal, divino. Não é à toa que muitos de nós nos sentimos racionais e superiores ao adotar a ciência como crença. Mas o que é a ciência? A quem ela serve?

A ciência moderna foi construída sobre a negação da racionalidade de outras formas de conhecimento que não seguem seus princípios e métodos, tidos como a fonte de sua “força”. Contudo, pensadores decoloniais advertem que a “força” da ciência está em sua cumplicidade com a economia capitalista. A invenção da Idade Média como um período bárbaro, por exemplo, foi essencial para atribuir às revoluções burguesas europeias e estadunidense o caráter de civilizatórias e naturalizar a sociedade liberal capitalista como a experiência mais “avançada” de civilização.

A partir de pressupostos eurocêntrico-científicos alinhados ao capitalismo, define-se as carências e necessidades do mundo. Cria-se a ideia de que a ciência e a tecnologia avançam de forma ascendente a estágios cada vez mais avançados e ilimitados para a “transformação útil” da natureza. Mas enquanto a natureza estaria no Sul Global, o conhecimento para transformá-la estaria no Norte. O “atraso” do Sul não teria nenhuma relação com a experiência colonial/imperial, mas com a falta de suficiente desenvolvimento capitalista. Ao longo da modernidade, a missão civilizatória europeia do século XVI vai sendo atualizada, transformando-se, com o avanço da ciência e tecnologia, na missão do “desenvolvimento”.

Em tempos de capitalismo cognitivo – quando o peso dos conhecimentos e das informações envolvidos nos processos produtivos torna-se maior do que o peso da matéria e energia –, a inovação científico-tecnológica é tida como o principal caminho para o desenvolvimento. Na etapa anterior (capitalismo industrial), os recursos materiais limitavam os processos produtivos e a propriedade privada regulava o acesso ao produto final, transformando-o, assim, em uma mercadoria. Na fase atual, iniciada nos anos 1970, inaugura-se um dilema: por um lado, a fácil replicação dos conhecimentos e informações envolvidos nos processos produtivos potencializam enormemente os lucros; por outro, essa replicabilidade ameaça a transformação do produto final em mercadoria, já que ele pode ser mais facilmente copiado. Assim, ao garantir monopólio sobre informações e produtos informacionais, bem como sua escassez artificial, a propriedade intelectual (PI) passa a ser uma estrutura central nesta fase do capitalismo.

O sistema global de PI foi imposto ao mundo pelos países e corporações do Norte Global; e lhes rendeu 9 bilionários com as vacinas da covid-19. Aos povos do Sul, a escassez artificial de vacinas rendeu um apartheid biomédico e milhões de mortes evitáveis.

Mas apesar da centralidade da PI no capitalismo atual, a colonialidade contribui para que seu enfrentamento seja marginalizado, inclusive pelos defensores da saúde como direito. Entende-se que o problema não seria a PI, mas o seu abuso. Contudo, não se trata de uma instituição neutra; pelo contrário, ela é construída ancorada no eurocentrismo – na afirmação do conhecimento e humanidade de uns e negação dos Outros.

A ideia de superioridade da mente reforça a narrativa de que sua criação – divina – deve ser protegida. Mas se nem a nos comunicar aprendemos sozinhos, é uma grande arrogância cartesiana acharmos que construímos uma ideia sozinhos. Assim como a modificação do entendimento da terra enquanto um bem comum foi essencial na colonização, o entendimento do conhecimento enquanto um bem privado é essencial nesta fase do sistema mundo moderno/colonial/capitalista.

É por isso que precisamos enfrentar essa lógica e reconstruir o Comum. E para reconstruir o Comum é preciso desconstruir estruturas privatizantes, como a PI, e enfrentar a colonialidade do saber. Mas encarar a colonialidade não é fácil, já que, a partir desse novo olhar, acabamos por estremecer muitas das nossas fundações.

Para nós da saúde coletiva, significa, por exemplo, encarar a reflexão sobre o papel do colonialismo no surgimento dos Estados de Bem-Estar Social e dos sistemas de saúde que adotamos como modelo. Significa questionarmos qual perspectiva adotamos quando falamos em soberania sanitária: a dos povos do Sul Global ou a de Estados que sonham em ser “desenvolvidos”?

Para nós do movimento de acesso a medicamentos, significa encarar a reflexão sobre a limitação de tomarmos como horizonte de luta as flexibilidades de um sistema de PI construído sobre lógicas de exclusão.

Mas Krenak nos convida a não temer a mudança; a sermos água “e viver essa incrível potência que ela tem de tomar diferentes caminhos”. Ele se inspira nos rios – “esses seres que sempre habitaram o mundo em diferentes formas” – para professar que “se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”. Para construir um futuro com saúde abundante para os povos do mundo, libertemos a potente diversidade dos nossos conhecimentos e rompamos as barragens que nos impedem de desaguar em um mar comum.

Veja também no portal Outra Saúde o texto de Luciana M. N. Lopes.

Referências:

GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.80, p.115-147, mar. 2018.

KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras – São Paulo, 2019.

KRENAK, A. Futuro ancestral. Companhia das Letras – São Paulo, 2022.

LANDER, E. Eurocentrismo, saberes modernos y la naturalización del orden global del capital. In [DUBE, S; DUBE, I. B.; MIGNOLO, W. (Coord.). Modernidades coloniales. México: Colegio de México, 2004.

MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidade del ser: contribuiciones al desarollo de un concepto. In – [JORGE; RIVERA] – Antología del pensamiento crítico puertorriqueño contemporáneo. CLACSO, Buenos Aires, 2007. pp.565-610.

MIGNOLO, W. D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade*. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, p. 1–18, 22 jun. 2017.

ZUKERFELD, M. El rol de la propiedad intelectual en la transición hacia el capitalismo cognitivo. Revista de Critica Social, n.9, 2008.