Qualquer vida vale a pena: razão para uma saúde antiproibicionista.

por  Rosimeire Silva*

Quando convidada a escrever sobre a descriminalização das drogas na perspectiva da saúde, um elenco de razões me veio à memória. Lembrei-me, inicialmente, de alguns fatos conhecidos, cuja gravidade, por si só, justificariam a tomada de posição. Ou melhor, a decisão de uma tomada de posição, pelo campo sanitário, sem meios termos pela recusa à proibição das drogas, como solução para embaraços possíveis, que alguns cidadãos podem vir a encontrar nesta relação.

O percurso proibicionista já demonstrou seu fracasso. Ao contrário do que se intentou, não houve, desde a proclamação da malfada “guerra às drogas”, redução do consumo, nem tampouco da produção e do comércio de substâncias psicoativas. E por outro lado, resta, igualmente evidente, o dano social expresso no número de vidas perdidas. Perdidas para o tráfico – no caso brasileiro não podemos ignorar ser esta, ainda hoje, uma triste saída encontrada por jovens pobres–, mas, também, perdidas na guerra ao tráfico. O combate às drogas produz mortes e, até onde sabemos, a imensa maioria dos corpos abatidos, nesta estúpida guerra, não sucumbiu em função do consumo. O encontro com a morte se produziu na fronteira tráfico/violência. E isto, a saúde não pode ignorar. É do SIM (irônica sigla do registro das mortes), de um dos bancos de dados do SUS, que essa realidade se torna conhecida, pública. Em 2011, o “Mapa da violência 2013: homicídios e juventude no Brasil” revela que foram assassinados 18.436 jovens brasileiros, com idade entre 15 e 24 anos. Este mesmo estudo aponta que a taxa de homicídios juvenis foi o dobro da taxa de mortalidade geral, no mesmo ano. E mais: este coeficiente nos coloca acima da taxa de homicídios considerada epidêmica.

Podemos dizer, infelizmente, que se há uma epidemia, no País, relacionada às drogas, esta não é de consumo de nenhuma droga, mas da nossa capacidade de matar e de expor ao risco de morte, uma parcela da população. Situação que convoca o campo sanitário, certamente, à reflexão crítica e à tomada de posição.

Outra razão para abandonarmos qualquer constrangimento ou inibição, neste debate, nos é dada pela realidade carcerária. Luciana Boiteux e João Pedro Pádua definiram de modo preciso a questão, quando adjetivaram, como vertiginoso, o crescimento do encarceramento no País. Aqui também, a droga se articula à produção de uma realidade. Ou, melhor dizendo: à produção de tragédias. A droga – proibida, maldita e nem por isto recusada por muitos – tem funcionado como álibi e conduzido ao cárcere, jovens tão pobres e negros, quanto os das mortes registradas pelo SIM. Entre os anos de 2005 e 2012, passamos do assustador número de 32.880 presos por tráfico, no primeiro ano deste período, para 138.198, no último. Vista de perto, a cifra se torna ainda mais cruel, pois revela que a maioria destes sujeitos é réu primário e não resistiu com violência à prisão. São usuários e nanotraficantes inseridos na ponta da rede de comércio ilícito e aprisionados pela armadilha da indefinição de um texto legislativo. Indistinção que contribui para a reverberação do preconceito social e racial que faz de meninos pobres e negros, traficantes e de filhos das demais classes sociais, usuários, que receberão outra resposta da justiça e da sociedade.

Se a morte é o limite da prática sanitária e a prisão não integra nosso cotidiano, outra razão, e, esta, absolutamente sanitária, nos convoca a mudar de posição. A proibição das drogas constitui-se como forte obstáculo que nos coloca à distância dos usuários e seus dilemas. Ou seja, este interdito ergue um muro invisível e poderoso que dificulta o encontro entre os que necessitam de cuidado e os que devem cuidar. Esta afirmativa, ilustra, hoje, e de modo contundente, a realidade expressa nas cenas públicas de consumo de drogas. Ali, seguramente, a face do estado, que se faz presente, não é ainda, em sua maioria, a da saúde, nem de outras políticas sociais. Mas, a da segurança pública que não protege, apenas reprime, e perpetua o autoritarismo e a violência que marcam nossa história.

Em recente pesquisa sobre consumo de crack, realizada pela Fiocruz, em todas as capitais e cidades das regiões metropolitanas, detecta-se que, entre os usuários de crack, a prevalência de HIV e hepatites é oito vezes maior que na população em geral. Uma razão para a descriminalização que toca a saúde. Esta realidade nos diz respeito e pede que a respondamos sem moralismos, nem prescrições autoritárias. Mas, que saibamos convidar a viver, a se proteger, a proteger o outro e a cidade. Esta é a lógica da redução de danos, estratégia adotada com êxito na política de drogas em outros países e já assumida como orientador da política de saúde mental brasileira, desde 2007, na abordagem aos usuários de drogas.

Mas, para que a mudança no campo sanitário e da saúde mental produza efeitos, não basta, apenas, mudar a perspectiva de tratamento. Aliás, a parceria entre redução de danos, luta antimanicomial e luta antiproibicionista é uma exigência e uma necessidade destes campos de pensamento e prática. A lógica e o raciocínio simplistas que veem a droga como um mal em si mesmo e o sujeito que usa, por consequência, um pária, um deliquente ou fora da norma, limitam o alcance desses projetos políticos e nenhum deles consegue intervir isoladamente sobre esta questão. É preciso, e urgente, descriminalizar para pôr fim à guerra que afeta a todos, mas também é necessário descriminalizar para que o usuário possa adentrar o campo da saúde sem constrangimentos. E é necessário subverter a perspectiva do tratamento, adotando, sem recuos, a redução de danos como diretriz ética, para estabelecer um vínculo de solidariedade, e não mais de imposição de normas, com o usuário.

Mas, há ainda outra razão para uma saúde antiproibicionista: a razão antimanicomial ou a defesa da liberdade e da responsabilidade.

Em pouco mais de duas décadas, este modo de pensar a loucura tornou possível uma prática de cuidado, com os portadores de sofrimento mental, que em nada se assemelha à velha razão manicomial. Superamos a humilhação e o descrédito, a violência e a anulação, como modos de tratar o sofrimento, e ingressamos em outro tipo de relação entre loucos e médicos: na cidade, em posição de sujeitos iguais em direitos e distintos em sua subjetividade. Abrimos portas, derrubamos muros, destrancamos celas, rompemos grades e ajudamos, a reingressar nas cidades, histórias de vidas anuladas pelo sofrimento psíquico e sujeitos considerados perigosos. A liberdade – direito e recurso terapêutico da clínica antimanicomial – tem na responsabilidade sua medida e ambas delimitam nossa humanidade. Aprendemos isto com os loucos e com a loucura. Não superaríamos o manicômio caso não nos dispuséssemos a romper com o grilhão da invalidez. Suprimir de um sujeito o direito à liberdade ou negá-lo a possibilidade de responder por si, por seus atos e desejos, não constitui boa saída. Não civiliza, desumaniza.

A política proibicionista não civiliza e é correlata do manicômio. Assim como a arcaica instituição, escolhe suprimir o direito à liberdade, a capacidade de decisão quanto aos riscos, à escolha pelo desejo e a assunção da responsabilidade e, ainda, submete, autoritária e coercitivamente, a um interdito que fragiliza quando impede de conhecer, e se reconhecer, limitando as saídas à porta dura da repressão e do castigo.

A Luta Antimanicomial se produziu e gerou outra realidade, sabendo desobedecer uma norma: desobedeceu a lei que predizia o fora da cidadania como condição de vida a ser imposta aos não inscritos no campo da racionalidade. Interpelou a lei que ditava tal realidade e produzia mortes e dor, como o fazem todos os antiproibicionsitas, e construiu um patrimônio da saúde pública brasileira: a Reforma Psiquiátrica.

Pode-se objetar não ser competência da saúde a resposta aos delitos. Lembramos, antes, que uma conduta considerada delito é sempre uma construção histórica. O que hoje é delito, amanhã, pode não sê-lo e vive-versa.

Mas, ainda que a resposta aos delitos não seja responsabilidade do campo sanitário, a saúde não pode permanecer alheia à realidade, nem tão pouco às condições de vida socialmente produzidas, às contradições próprias ao seu tempo e às causas de adoecimento e morte e, muito particularmente, quando a morte é um evento improvável como,por exemplo, a mortalidade juvenil. E, sobretudo, a saúde não pode alienar-se de tal modo que a única opção que lhe reste seja, apenas, cuidar dos ferimentos, das marcas no corpo deixadas pela violência, ou pela guerra, quando a vida não encontrou seu ponto final. Parece-me cada vez mais claro que em tal contexto de guerra, o lugar atribuído à saúde é o de funcionar como um hospital de campanha. Na trincheira, acanhada, tão amedrontada e afetada pela guerra, quanto toda a sociedade; recolhida à atuação na emergência, escutando o eco dos tiros, o zunir das balas, que cortam o ar, e o som seco dos corpos que tombam sem vida.

Mas, também me parece claro, que nossa escolha e nossa prática podem ser diferentes. Podemos ajudar a desconstruir o muro invisível que deixa à margem, e mais frágeis, sujeitos cujas dores vêm sendo tratadas pela química e pela exclusão social. Sujeitos que, as estatísticas oficiais demonstram, encontram-se mais expostos ao risco de morte, por causas violentas, ou em decorrência de adoecimentos, que o preconceito nos impede de reconhecer e cuidar.

Se toda vida vale a pena e qualquer forma de vida nos interessa, nossa escolha precisa ser clara: pelo fim da guerra às drogas e do proibicionismo. Só assim, poderemos inaugurar uma prática de cuidado pública, não segregativa, antimanicomial e solidária ao sofrimento humano.

Rosimeire Silva, psicóloga, técnica do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAIPJ/TJMG, militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental/RENILA, mestranda em Promoção da Saúde e prevenção da violência (Faculdade de Medicina/UFMG).

Citações:

BOITEUX, L.; PÁDUA, J.P. A desproporcionalidade da lei de drogas. Os custos humanos e econômicos da atual política de drogas.

http://drogasyderecho.org/assets/proporcionalidad-brasil.pdf

Waiselfisz, J.J. “Mapa da violência 2013. Homicídio e Juventude no Brasil.

http://www.cebela.org.br/site/common/pdf/Mapa_2013_Jovens.pdf