Quem pode viver e quem pode morrer?

A morte do Secretário de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento Duvanier Paiva, ocorrida no mês de janeiro, depois de sofrer um infarto e não ser atendido em dois hospitais privados de Brasília, provocou um sentimento de desamparo em todos nós. Fomos expostos à frágil realidade de nosso sistema de saúde em nos proteger de uma morte súbita e precoce. Diante da tragédia surge como resposta do Ministério da Saúde à sociedade a proposta de aumentar o controle estatal sobre os hospitais privados. A Diretora do Cebes, Aparecida Isabel Bressan, comenta essas propostas. A entrevista reflete as opiniões pessoais da Diretora, confira!

Cebes – A morte recente do servidor Duvanier Paiva, Secretário de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, acendeu a polêmica sobre a recusa de atendimento por parte dos hospitais privados em casos de urgência. José Dirceu anunciou em seu Blog que está em gestação no Ministério da Saúde um projeto de lei que propõe ampliar os poderes da Agência Nacional de Saúde (ANS) para regular e fiscalizar o atendimento em hospitais privados. Hoje em dia, quem regula e fiscaliza esse atendimento?

Isabel – Não há órgão público que detenha competência legal para fiscalizar se os hospitais privados negam algum tipo de atendimento se o pagamento não for efetivado.

Cebes – Você tomou conhecimento desse projeto? Faz parte das atribuições da ANS cumprir essa tarefa? O órgão tem estrutura e competência para isso? Quem deveria fazê-lo?

Isabel – Por enquanto não vi o Projeto, mas suponho que ele vá propor alteração da Lei 9961 que criou a ANS e estabeleceu suas competências. Em relação aos hospitais, essa Lei deu poderes apenas para a ANS exigir informações e documentos relacionados à atuação dos planos de saúde. Porém, mesmo que os poderes da ANS sejam ampliados, sua estrutura seja reestruturada e a Agência venha a publicar norma obrigando os hospitais privados a oferecer atendimento incondicional a qualquer cidadão que demande atendimento em serviço de emergência, isso não seria garantia de que vidas fossem poupadas, como aconteceu com o servidor Duvanier Paiva. No máximo, poderia haver aplicação de multa ao hospital após a apuração de fatos, se comprovada recusa do atendimento.

Há também uma questão que precisa ser considerada: de onde viria o custeio para esses atendimentos. Viria do SUS? Viria do plano de saúde caso o cidadão fosse também beneficiário? Ficaria por conta das alíquotas menores de Imposto de Renda que já beneficiam os hospitais lucrativos ou das isenções fiscais e de filantropia dos hospitais não lucrativos?

Cebes – A professora Lígia Bahia, em recente artigo publicado em “O Globo”, afirma que “Por definição, uma unidade emergência deve ser aberta; não pode ficar resguardada por entrepostos burocráticos para conferência de vinculação a planos e seguros de saúde e caixas de pagamento”. Existe alguma determinação legal que obrigue os hospitais privados que mantém pronto-socorros a realizar os atendimentos? A recusa não configura omissão de socorro?

Isabel – O Código Penal condena com pena de detenção a omissão de socorro registrada por boletim de ocorrência. Há um Projeto de Lei que foi apresentado na Câmara Federal em 2004 que se aprovado obrigaria hospitais privados não credenciados no SUS a atender urgências incondicionalmente e o SUS a pagar, sob pena de punição por omissão de socorro civil e penalmente, mas ainda não foi aprovado.

Cebes – Como coibir a exigência de cheques caução e outras barreiras que separam o usuário do atendimento nos hospitais privados?

A Resolução Normativa da ANS 44 de 2003 já proíbe a exigência, por parte dos prestadores de serviços dos planos de saúde de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou antes da prestação do serviço. As denúncias recebidas são encaminhadas ao Ministério Público para apuração.

Já existe uma lei estadual no Rio de Janeiro e outra municipal proibindo a exigência do cheque caução sob pena do hospital pagar multa ou devolver o valor empenhado em dobro. Foi noticiado que estaria sendo proposto um Projeto de Lei Federal para tornar crime a exigência do cheque caução.

Em minha opinião, para eliminar as barreiras de atendimento aos que buscam socorro em serviços de emergência de hospitais privados, evitando mortes como a do servidor Duvanier Paiva, não basta instituir a proibição legal. Haveria que se buscar um grande pacto entre o SUS e a rede hospitalar privada, para que toda e qualquer estrutura que possua autorização sanitária para funcionamento como de “serviço de emergência” esteja sempre aberta para atendimento incondicional a qualquer cidadão que busque socorro. Deveria haver atendimento humanizado, com profissionais de saúde realizando a primeira abordagem e a avaliação de risco. Resguardada a vida e a integridade física, a continuidade do atendimento se daria com cobertura do SUS ou do plano de saúde, conforme as possibilidades técnicas da unidade em primeiro lugar e da conveniência do ente pagador depois.

A cobrança do ressarcimento dos atendimentos em serviços de emergência mantidos pelo SUS (inclusive SAMU) aos usuários de planos poderia constituir-se num fundo para o pagamento dos atendimentos em serviços de emergência nos hospitais privados daqueles cidadãos atendidos sem direito de cobertura de planos, garantindo um preço justo pelo atendimento, sem lucro para os hospitais lucrativos uma vez que já usufruem de alíquotas menores de Imposto de Renda.

Cebes – Outra situação comum é aquela em que o usuário de plano de saúde tem negada a realização de procedimentos, mesmo sob recomendação do médico assistente assinalando urgência. Decisões judiciais têm favorecido os usuários. Haveria uma maneira de obrigar os planos a autorizar primeiro e questionar depois sobre eventual limite de cobertura previsto nos contratos?

Isabel – Parece bem razoável que a operadora autorizasse sempre o procedimento caracterizado como urgente e depois cobrasse do beneficiário, inclusive entrando na justiça se necessário, caso ficasse comprovado que o contrato não daria direito ao custeio do atendimento. Creio que para isso seria necessário o respaldo de uma lei. Seria uma Lei de difícil aprovação uma vez que no Brasil ninguém vai preso por dívidas e é permitido confiscar “bens de família” para o pagamento. O argumento das operadoras então seria de que o prejuízo causado por calotes seria transferido para os preços dos planos de saúde de todos os beneficiários.

Cebes – A última Conferência Nacional de Saúde aprovou a seguinte proposta: “Garantir o direito dos usuários de planos privados de saúde à indenização por danos morais e materiais quando os mesmos não assegurarem assistência em seus equipamentos próprios, levando-os a utilizar o SUS, sem prejuízo ao ressarcimento ao fundo de saúde correspondente.” O Ministério da Saúde tem divulgado um substantivo aumento nesse ressarcimento no último ano. Como anda o ressarcimento dos planos ao SUS quando este atende seus clientes?

Isabel- O aumento do valor financeiro repassado ao Fundo Nacional de Saúde advindo do Ressarcimento ao SUS no último ano deveu-se a vários fatores. Uma alteração na Lei determinou à ANS que repassasse ao Fundo a totalidade dos valores recolhidos no Ressarcimento e não mais pagasse aos hospitais prestadores parte dos recursos. Além disso, em anos anteriores houve uma longa suspensão das cobranças por problemas operacionais, gerando um grande volume de AIH para serem cobradas.

Por meio da contratação de 89 servidores temporários em meados de 2010, a ANS realizou um grande esforço de cobrança que resultou num aumento de arrecadação no ano passado, que provavelmente não irá manter-se no mesmo patamar depois de superado o passivo de cobrança.

Falta ainda cumprir a determinação do TCU de 2009 de proceder à cobrança dos procedimentos ambulatoriais de alta complexidade (APAC) que segundo estudos já realizados geraria para o SUS recursos muito superiores aos das AIH. Seria interessante haver uma ação conjunta do Ministério da Saúde e dos Gestores Estaduais do SUS com a ANS para viabilizar essa cobrança de APAC.

Por fim, há a expectativa de que um processo eletrônico já há anos em elaboração dê celeridade e eficiência à cobrança, aumentando a arrecadação de verbas para o SUS.

Rio de Janeiro, 29/02/2012