Quem são e onde estão os médicos brasileiros
É divulgado o segundo relatório do estudo “Demografia Médica no Brasil”, com novos dados, cenários e indicadores da distribuição de médicos no país. O estudo, coordenado pelo Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina USP e membro do conselho consultivo do Cebes, foi patrocinado pelo Conselho Federal de Medicina e Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
Por Mário Scheffer
A demografia médica é o estudo da população de médicos, determinada por fatores como idade, sexo, tempo de formação, fixação territorial, ciclo de vida profissional, migração, mercado de trabalho, especialização, remuneração, vínculos, carga horária. Também considera as condições de saúde e de vida das populações, as realidades epidemiológica e demográfica, as políticas e a organização do sistema de saúde, incluindo o financiamento, os recursos humanos, os equipamentos, a oferta, o acesso e a utilização dos serviços de saúde.
Não é só no Brasil que argumentos contraditórios se alternam no debate sobre a escassez e as disparidades de concentração de médicos. Estão na agenda de vários sistemas nacionais de saúde iniciativas que visam aumentar ou diminuir o número de vagas e de cursos de medicina, assim como medidas indutoras de instalação de médicos nos denominados vazios sanitários.
A noção de que faltam médicos no Brasil parece orientar o diagnóstico de algumas autoridades responsáveis pelas políticas de saúde. Em diversas pesquisas de opinião, a carência ou ausência de médicos têm sido apontadas como um dos principais problemas da saúde, constantemente mal avaliada. Empregadores têm relatado dificuldade de contratação de médicos em determinadas especialidades, em estabelecimentos do SUS, municípios do interior, na periferia dos grandes centros e até mesmo em planos privados de saúde com rede insuficiente de prestadores.
O problema mobiliza atores com vocalização política, interesses legítimos e pontos de vista distintos. É fundamental, por isso, alcançar consensos sobre indicadores que propiciem uma base empírica comum para o debate.
Apenas a constatação numérica não é suficiente para justificar decisões em matéria de demografia médica. Necessidade de médicos estabelecida a priori geralmente baseia-se em juízos de valor distanciados das necessidades de saúde da população e no modelo assistencial hegemônico centrado na assistência médica.
Sem tradição em produzir estatísticas de saúde confiáveis, o Brasil precisa aprimorar a qualidade dos dados sobre médicos e alcançar um novo patamar de conhecimentos por meio de estudos sistemáticos que possam melhor esclarecer escolhas que vem sendo feitas.
A consequência mais grave da ausência de dados e de informações validadas seria a adoção de uma política de demografia médica guiada por objetivos imediatistas pautados na duração de mandatos dos governantes, nas visões corporativas da categoria médica e nas motivações financeiras do setor privado da educação e da saúde.
Uma breve revisão histórica sugere que o aumento persistente do efetivo médico não beneficiou de maneira homogênea todos os cidadãos brasileiros, pois uma série de fatores conduz à heterogeneidade do fluxo de médicos no território nacional, entre os setores público e privado da saúde e entre as especialidades médicas.
A compilação de dados secundários expõe o aumento do número de médicos no país. O Brasil chega em 2013 com 400 mil médicos e com taxa de dois médicos por 1.000 habitantes. A Região Sudeste alcança 2,7 médicos por 1.000 habitantes. De 1970, quando havia 59 mil médicos, até hoje, houve um salto de 557%. No mesmo período a população brasileira cresceu 101%. Em 2012, 197 escolas médicas ofertavam aproximadamente 17 mil vagas. A partir do ano 2000 houve um saldo de crescimento 6 a 8 mil médicos por ano, devido a entrada (novos registros) ser maior que a saída (aposentadorias, óbitos etc).
O Brasil é um país de médicos jovens. A idade média é 46 anos e 41% dos médicos tem menos de 40 anos, com perspectiva de longevidade profissional. É também uma profissão cada vez mais feminina, tendência irreversível desde 2009. No estudo, enfatizamos que essa pode ser uma boa notícia para o sistema de saúde.
Ao contar os médicos de várias formas, ao confrontar bases e fontes distintas – segundo registro nos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), contratos formais de trabalho, cadastro e ocupação em estabelecimentos de saúde –, o estudo enfatiza que os médicos nunca foram tão numerosos ao tempo em que acentuam-se desigualdades na distribuição.
Quem mora na região Sul e Sudeste conta com duas vezes mais médicos que os habitantes de Norte, Nordeste e Centro-Oeste (excluindo DF). Quem vive em alguma capital conta com duas vezes mais médicos que os que moram em outras regiões do mesmo estado. A diferença entre os extremos – morador do interior de um estado do N, NE, CO, e o residente de uma capital do Sul ou Sudeste – é de 4 vezes, no mínimo.
Sob outro ângulo, tem crescido a desigualdade de concentração a favor do setor privado: quem tem plano de saúde no Brasil conta com pelo menos quatro vezes mais médicos à disposição do que quem depende exclusivamente do Sistema Único de Saúde.
Conhecer melhor tais diferenças é o primeiro passo para a compreensão da carência de profissionais e para qualificar o debate sobre a necessidade e a falta de médicos no país.
Cabe ressaltar que a persistência e a intensidade das desigualdades de distribuição demonstram que o aumento global do quantitativo de médicos por si só, sem mudanças substantivas nos rumos do sistema de saúde, – a começar pela solução do subfinanciamento público, pelo balanço crítico do processo de privatização da gestão do SUS e de seu impacto sobre os recursos humanos, e pela regulação mais eficiente do mercado de planos de saúde – , poderá não garantir a disponibilidade de médicos nos locais, nas especialidades e nas circunstâncias em que hoje há carência de profissionais.
Levantamento sobre a movimentação espacial dos médicos – onde nasceram, onde se formaram e onde atuam hoje – sugere que a localização dos cursos de medicina não é fator determinante de fixação dos médicos ali graduados. A maioria deles termina por se fixar nos grandes centros por certo em busca de oportunidades de emprego, melhores salários, condições de trabalho, formação, crescimento profissional e condições de vida para a família.
A maior parte dos médicos formados fora do Brasil – tanto brasileiros quanto estrangeiros – se instala nas maiores cidades, especialmente no Sudeste. É um indício de que eventuais flexibilidades de revalidação de diplomas poderão não surtir o efeito desejado de suprir definitivamente locais hoje desprovidos de médicos.
Outra constatação é que a concentração dos médicos acompanha a existência de serviços de saúde e de outros profissionais, principalmente de dentistas e enfermeiros. A configuração das estruturas e dos equipamentos de saúde, o atrativo das condições coletivas de exercício profissional, a oferta de emprego e renda, jogam a favor da instalação dos profissionais de saúde nos grandes centros.
O estudo lança novo olhar sobre as especialidades médicas ao cruzar bases de dados antes incomunicáveis e ao incorporar a segunda e a terceira escolha dos especialistas.
Constatou-se que boa parte dos médicos – mais de 180.000 – não concluiu programa de Residência Médica ou não tem título de especialista, num cenário preocupante de deterioração do ensino de graduação e da falta de vagas na Residência para todos os egressos de cursos de medicina. Sete especialidades concentram mais da metade dos profissionais titulados, sendo que quatro áreas básicas (Pediatria, Ginecologia e Obstetricia, Cirurgia Geral e Clínica Médica) tem 37% dos médicos.
São esses os pontos essenciais do segundo relatório da pesquisa Demografia Médica no Brasil, cujos resultados estão detalhados na publicação.
Cabe dizer que tais esforços preliminares não escondem algumas limitações. Primeiro, não existe modelo teórico ou científico unanimemente aceito para prever a necessidade de médicos. Trata-se de um conhecimento em construção. Segundo, há distanciamento entre o potencial da atividade médica e a atividade real dos médicos dentro do sistema de saúde, o que não é em todo captado por bases secundárias de dados.
Tais diferenças variam de acordo com as características dos médicos. Além da idade, sexo e tempo de atuação profissional, há variáveis endógenas e comportamentais: escolha da especialização, da atividade, do nível de atenção, do local de instalação, fatores que podem mudar ao longo da vida profissional.
Teremos, por certo, que ir muito além da contagem dos médicos “por cabeça”, método usado em várias abordagens do estudo Demografia Médica no Brasil. Contar a população e dividí-la pelo número de médicos é útil para demonstrar desigualdades e fazer comparações, mas ao tratar como iguais unidades de um universo tão complexo quanto heterogêneo, produz-se um indicador ainda insuficiente para orientar políticas e tomadas de decisões.
Não por acaso órgão internacionais de saúde e literatura não definem número desejável de médicos por habitante , desencorajam comparações entre países e sistemas de saúde distintos e tampouco recomendam que seja estabelecido um único parâmetro ou meta nacional.
Há longo caminho a seguir, visando aprimorar a coleta e a análise regular de dados, superar limitações metodológicas, integrar cadastros de médicos, ir às fontes primárias para ampliar informações sobre especialidades, tipos de atividade, formas de contratação, remuneração, inserção e vínculos, carga de trabalho, fatores de produtividade, migração e mobilidade, formação, capacitação, oferta de graduação e de Residência Médica. Tudo isso, considerando os atuais dilemas da profissão médica, o funcionamento do sistema de saúde brasileiro e as necessidades de saúde da população.
Faça o download do estudo, na íntegra, clicando aqui.
Membro do Conselho Consultivo do Cebes, Mário Scheffer é Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina USP e coordenador da pesquisa Demografia Médica no Brasil.
Download do arquivo “Demografia Medica no Brasil Vol 02 14 de Fevereiro”