Recordando a Formação Medica em Perspectiva
Mourad Ibrahim Belaciano*
As recentes manifestações de rua que pediram acesso e qualidade na saúde, ao incitar o governo federal a explicitar seu projeto reestruturante no setor saúde, abreviando-o, agudizaram um vasto terreno de conflito e de lutas. É difícil entender a ”radicalidade” das ações previstas na MP 621 – e as correspondentes e radicais reações – sem considerar o tamanho e a complexidade dos problemas setoriais acumulados por décadas de inação ou ineficácia, não só governamental mas também da própria sociedade civil. Caracterizar a crise como “falta de médicos” é ter uma percepção simplificada dos problemas. Embora faltem médicos e outros profissionais, estamos diante dedilemas e desafios. Muita coisa está em jogo, mas as tensões também são características das sociedades modernas de regime democrático, em cujo bojo existem oportunidades de avanços. No presente caso, oportunidades para um novo exercício na formação profissional para que o país alcance um novo patamar no setor saúde.
As crises recorrentes nos sistemas de saúde são fenômenos globais que ganham cada vez mais força. No Brasil as crises vêm alcançando não só os serviços públicos, mas também o setor privado suplementar. Em função do agravamento da prestação de serviços de saúde, retoma-se (enfim!) a visão de que o perfil de formação importa (e como importa!). Mas sabemos mudanças de fato só acontecem quando ocorrem alterações profundas realizadas na estrutura organizacional setorial de prestação de serviços, e consequentemente no próprio mercado profissional.
Entre nós, em pleno século XXI, as propostas não foram, por diversas razões, suficientes para superação deste problema ainda. Geralmente, o desenvolvimento das reformas do setor saúde esteve historicamente focalizado apenas na reorganização dos serviços e nas mudanças das formas de financiamento do setor. Um dos indícios da precária visibilidade deste campo é o fato de que nenhuma das políticas mais utilizadas nas reformas setoriais da saúde diz respeito ao campo do desenvolvimento dos RHS. Considerada secundária por décadas, a educação para a saúde permaneceu completamente desvinculada da reorganização dos serviços, da redefinição das práticas de atenção e dos processos de reforma do setor saúde em curso. A adequação dos recursos humanos em saúde fica, nesse conjunto, como um problema nebuloso, contraditório e como peça de oratória e as reformas setoriais “tropeçam”.Muitas vezes ausente da agenda setorial, a “questão RH” finalmente está de volta, vista como componente essencial, não como mero reflexo da organização dos serviços ou do mercado profissional apenas.
O que está colocado é: o médico é formado para atender as demandas extraordinariamente complexas fora do alcance biomédico? Trazida como agenda específica para o centro do debate do campo da formação médica, temos assistido as novas abordagens, com diferentes modelos de intervenção na formação e na sua integração ao sistema de saúde.
Tentando desatar a compreensão deste “nó”, julgamos oportuno abordar três questões: o processo de formação profissional em medicina; as (in)suficiências do exercício da prática médica hegemônica atual e o mercado profissional no Brasil;e os principais elementos da Medida Provisória 621enviada ao Congresso Nacional, concluindo com algumas observações.
O processo de formação profissional em medicina no cenário brasileiro da formação de médicos vem sendo marcado por uma expansão do numero de vagas e de escolas. Ocorrendo em “ondas”, essa expansão, iniciada nos anos 1970,foi intensificada nos anos 1990 e 2000 e agora com nova onda sendo anunciada.
É grande a movimentação que se observa na educação médica brasileira, com as escolas médicas sendo demandadas para formar um novo profissional médico com perfil mais compatível com as necessidades de um modelo assistencial e de atenção à saúde que o sistema brasileiro procura desenvolver de acordo com os princípios e diretrizes próprios de um sistema de saúde que se quer universal. Existem registros sobre a meritória e incansável a história da ABEM, de muitas escolas e educadores médicos.
A formação médica atual vem sofrendo intervenções não aleatórias. Entretanto, apesar de muitos avanços e das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) estarem em vigor desde 2001, as mudanças que se realizam tem tido pouca efetividade pois as reformas curriculares, realizadas isoladamente,não tem sido capazes de alcançar seu objetivo final: a melhorias da práticas profissionais hegemônicas exercidas nos serviços de saúde à disposição da população.
Será esse modelo de formação, considerado um dos fatores da fragilidade e de deficiência geral do sistema de saúde, inexorável?
As escolas médicas são instituições complexas. Os conteúdos aplicados nas escolas médicas, geralmente, continuam seguindo majoritariamente critérios de relevância adotados pelas especialidades, mantendo o falso conflito entre atenção primária, a média e a alta complexidade. O modelo e o local de práticas que vem sendo oferecidos aos estudantes – os hospitais- permanece ainda como problema central, desconhecendo-se os limites dessa estratégia educacional. As supervisões no campo de práticas -especialmente no internato-, tem fragilidades. A busca pelos estudantes por especialidades, desenfreada e precoce, impede-os de ter uma formação geral antes de seu ingresso no mercado profissional. Não basta “consertar os 6 anos” sem que o alcance atinja também a residência, local privilegiado da formação de especialistas, e já se observa mais de uma centena de especialidades e de áreas específicas de atuação. O efeito dessa formação graduada e nas residências produz um ciclo vicioso e alimenta vícios presentes nos sistemas públicos e privados de saúde. Não há como negar que as diferentes formas de educação médica refletem distintos interesses, distintas concepções e compromissos.
Apesar de muitas escolas conferirem boa direção na busca por efetividade para as mudanças, o setor educacional como um todo tem claras fragilidades: continua a esbarrar em estruturas rígidas, acordos de base corporativa, dificuldades na mobilização dos professores e pressões do mercado de trabalho. Ainda no interior da escola médica são sentidos os vários efeitos da prática médica sobre a formação dos estudantes, tais como as intermediações oriundas do mundo do trabalho, da especificidade do trabalho médico, da incorporação de tecnologias e da falta de regulação no mercado de trabalho da especialização profissional. O limite mudancista na estrutura organizacional atual das escolas foi alcançado. Está detido em seu interior, no cerne de relações interinstitucionais e também em relações intersetoriais.
A formação é dirigida de forma tão marcante pela lógica do mercado profissional que é necessário a criação de um novo mercado de trabalho capaz de requerer outro perfil profissional, diferente do que vem sendo captado pelo mercado médico atual. O surgimento de um novo mercado, materializado pela proposta do SUS (e mais para o futuro deve compreender também as diversas modalidade da saúde suplementar), que proponha uma integração entre prevenção e cura, criando novos postos de trabalho para médicos, numa perspectiva de medicina geral.
Todo este “complexo formador” leva ao reconhecimento que a formação medica atual tornou-se historicamente insuficiente – o que significa dizer já ter alcançado o campo da política,onde precisa ser superada.
O exercício da prática médica hegemônica atual e o mercado profissional no Brasil encontram-se num contexto bastante complexo e provoca muitas consequências. As extraordinárias conquistas que a ciência e as inovações tecnológicas veem colocando à disposição da medicina desde os meados do século XX veem impondo-lhe uma crescente especialização tecnológica-dependente. Há muita necessidade de se repensar esse contexto: a forma como vem sendo exercida, sua eficiência, resultados e custos. É cara, onera o estado, os planos de saúde, os seguros e as famílias. Não existe correlação direta entre o aumento dos gastos na medicina assistência individual e melhorias do padrão sanitário da população tais como o aumento da esperança de vida ao nascer e a diminuição da mortalidade infantil, para ficar apenas com alguns indicadores.
À medida em que aprofundamos as análises das formas cada vez mais diferenciadas da produção do trabalho médico – tais como as oriundas do mundo do trabalho dirigido pelo mercado-, do desenvolvimento da produção científica e tecnológica, da incorporação (nem sempre crítica) de novas tecnologias e das políticas públicas e sociais, a rede dessas relações (sociais), se torna bem mais complexa (e elas “invadem” também o campo da educação médica),ampliando a sua crise estrutural. Há tempos que esta crise atingiu o cerne da profissão médica. A desapropriação, a coletivização resultante de seu trabalho intelectual e as diferentes lógicas de inserção e de vínculos de trabalho, que provocam fenômenos como a alienação e a deterioração do trabalho médico, veem aumentando sua dificuldade de recompor a integralidade e sua adaptação a novas situações, elevando mais ainda o tensionamento decorrente de relações novas que vem se estabelecendo no setor.
Disso resulta quea situação do mercado de trabalho – no qual tanto os gestores públicos como privados vão buscar os profissionais – continua sendo desfavorável à estruturação de redes de atenção e de assistência, como as preconizadas pelo Decreto 7508. De um modo geral, na categoria, dizendo-se vítima da situação (imagine-se a população!) do mercado de trabalho ( cuja disputa é cada vez mais acirrada) predomina um não às reformas curriculares, um não à mudança e à procura por um modelo de gestão mais eficiente, um outro não à mudança do modelo assistência, um não a quase tudo. Nesse contexto, é fácil perceber que apesar da expansão do numero de equipes de saúde da família e da implantação do PROVAB – ainda com muitas vagas ociosas – que são políticas válidas porém localizadas, apresentam nítidos limites de efetividade frente aos problemas da assistência por não alcançarem todo o setor.
Os principais elementos da Medida Provisória 621, enviada ao Congresso Nacional, tem dois conjuntos que se imbricam: o provimento de médicos e a formação médica geral e especializada. Tendo a Atenção Básica como foco central e procurando alcançar tanto a formação profissional médica como o exercício de sua prática, mudanças em ambos são exigidas. Na pauta do governo federal com intensidade crescente, a “questão RH” em saúde passa a ser objeto de uma intervenção de longo alcance, não só em termos quantitativos como do perfil das necessidades setoriais.
Com o diagnóstico de insuficiência de vagas e da escassez de profissionais médicos para atender tanto a expansão como o reordenamento do modelo de atenção, o governo federal propõe o enfrentamento simultâneo de dois temas (que tem sido) polêmicos na categoria médica – e agora mais que nunca. De um lado, enfrenta-se os aspectos quantitativos como aumento substancial de vagas e de cursos e intensificando medidas de provimento em áreas de escassez de médicos e de redução das desigualdades regionais setoriais, procurando com isso garantir o acesso universal. Mas mediante novas ações dirigidas para o fortalecimento da atenção básica, também procura enfrentar aspectos qualitativos da formação médica mediante a perspectiva de formação de um profissional generalista, visa o estabelecimento de novos parâmetros para a formação médica graduada e especializada, imputando-lhes responsabilidade social e compromisso com a cidadania. No caso, aponta para o reexame tanto da formação médica graduada no contexto das DCN como da formação médica especializada promovida em programas de residência médica.
Com vários desenhos finais possíveis, não é o caso de se importar agora em qual é o formato final, se na graduação ou na residência médica. O que importa é atuar sobre ambas as formações, geral e especializadas, atingindo todas as fases da formação para todos os médicos e garantir o futuro exercício de uma atenção básica sólida e eficaz. Imputar a essa medida um caráter obrigatório tipo “serviço civil obrigatório” ou como um “castigo” é desvirtuar a discussão do campo da formação. É sim componente obrigatório da fase profissionalizante, mas formador e ampliador da necessária base da formação medica contemporânea.
Comentários finais.
Com as medidas adotadas para a Atenção Básica,o provimento profissional de médicos e a educação médica, elas passaram a ocupar lugar de destaque no setorsaúde. Respondendo aos determinantes políticos e econômicos, na condição de macroestruturas, elas indicam que é nesse nível que se deve agir para alcançar outro patamar na saúde da população brasileira. Cabe à sociedade exigir Políticas de Estado para intervir mais para balizar esse processo.
É, por isso, que as DCN por si só não bastam. As mudanças na educação médica brasileira se ressentem da falta de um ator social específico. É no polo da gestão dos sistemas de saúde – privados inclusive – que se deve ficar atento, e este polo não só se omitiu como esteve ausente por muito tempo. É procurar compreender e definir qual papel que este polo deve ter não apenas no processo de formação médica a ser exercido, mas de fazê-lo co-responsável pela definição e pelo cumprimento também de planos de carreira, política salarial e de melhores condições de trabalho.
A depender do êxito desta iniciativa, podemos estar diante do início de novas formas de regulação da formação médica, que deve levar muito tempo ainda para se estabelecer em toda sua plenitude. Pode ser o início de um macro processo que vai ser longo,e como dissemos acima, um terreno de conflitos e de lutas – e muitas – até se alcançar a regulação em áreas prioritárias e estratégicas de especialidades, da regulação da qualidade, da quantidade e da distribuição de profissionais Brasil afora. As medidas recém adotadas passam a ocupar lugar estratégico na reforma setorial.
Repensar a educação médica implica em ações conjuntas intersetoriais. As mudanças educacionais, para serem mais efetivas, devem mirar simultaneamente os problemas de saúde e do setor saúde. O estabelecimento de uma relação entre educação e prática médica deve ser capaz de estruturar-se por meio de sistemas próprios de regulação e de acreditação da formação médica, articulados a instrumentos de regulação das práticas de saúde em todos seus níveis, sob a coordenação do gestor do sistema de saúde, conforme o inciso III do artigo 200 da Constituição Federal. Somente assim serão criadas as condições para o desenvolvimento de redes e sistemas de atenção à saúde – inclusive na saúde suplementar.
A troca de experiência internacional pode ser benéfica para o Brasil neste momento. Nos anos 1980, a maioria dos países europeus, Canadá e outros, iniciaram seus próprios processos de mudança com o propósito de aumentar a equidade de seus benefícios, onde já se encontram a eficiência da gestão e a efetividade de serviços de saúde. Promoveram medidas pautando a manutenção da cobertura universal, o fortalecimento da atenção básica, o controle global de custos, e também incluíram, pari passu, a reforma da formação médica e de outras categorias profissionais do setor.
Embora básicos e fundamentais, as medidas adotadas – ao nosso ver com muito atraso – então dentro de outro conjunto muito maior de impasses e desafios do setor. Citemos alguns: como melhor definir as características da relação público-privado no nosso modelo de saúde? Como organizar um sistema de saúde capaz de atender necessidades de saúde com o predomínio das condições crônicas? Como orientar o desenvolvimento e a incorporação de tecnologias adequadas, seguras, eficazes e de custos compatíveis? O que fazer para que a política macroeconômica incorpore não só a saúde, mas a seguridade social entre seus princípios e suas estratégias? Como comprometer os governos com financiamento público para atingir 900 dólares per capita, 6% do PIB e 65% dos gastos totais, ainda bem abaixo de vários países mas, que devido à nossa experiência de tirar “água de pedras” nos permitiria entrar na faixa dos melhores sistemas públicos do mundo? Olhadas por esse prisma, os objetivos da Medida provisória 621,ao contrário de serem medidas “radicais”, são até tímidas frente ao tamanho dos outros desafios igualmente estruturantes.
Isso em nada altera a centralidade da medicina no setor saúde, antes a destaca mais ainda na sociedade. Como esses temas são de interesse geral – dos governantes e dos gestores, dos profissionais, inclusive dos médicos, dos usuários, etc e como seu reordenamento deve dirigir-se ao alcance das profundas e necessárias transformações – inclusive na formação dos recursos humanos em saúde – devemos trazer para uma mesma mesa de negociações os distintos atores sociais que neles atuam.
A crise atual traz oportunidades, como dissemos acima. Oportunidade de agregar valores e responsabilização – aí sim, é que se deve radicalizar. Oportunidade de ir muito além nas DCN, de dar outros passos para melhorar a qualidade da formação como o estabelecimento um currículo baseado em competências locais e globais; a melhoria dos cenários de ensino e o estabelecimento de um novo padrão de supervisão aos estudantes e residentes nos campos de estágio com foco no atendimento às pessoas e no monitoramento de indicadores epidemiológicos e na qualidade dos serviços; o aperfeiçoamento das metodologias ativas de ensino e do estudo-trabalho, o desenho de sistemas de saúde-escola. Enfim, temas não abordados ou aprofundados pela Medida Provisória para uma formação de qualidade. É possível ainda se avançar na concessão de licença ou registro profissional limitado no início, que iria sendo ampliado de acordo com a aquisição comprovada das competências necessáriasà segurança do paciente,etc.
Há que se comemorar os avanços contidos na Medida Provisória: quem já perdeu um amigo ou um familiar sabe a falta que faz uma estrutura mínima ou que ao menos oriente sobre determinado agravo, que encaminhe decentemente. A Atenção Básica é o caminho correto. Torna-se necessário continuar desenvolvendo essa política no país.
*Médico, Professor de saúde Coletiva da Universidade de Brasília.
Diretor da Escola Ssuperior de Ciências da Saúde da SES-DF,2001 a 2012.
Vice-presidente e Presidente da ABEM,2006 a 2010.