Revés para clientes de planos de saúde

Bárbara Nascimento, do Correio Braziliense

O Superior Tribunal de Justiça entende que defensorias públicas não podem representar beneficiários de convênios médicos em ações contra as operadoras nos tribunais. O argumento é que usuários do sistema privado têm como pagar advogados

Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pode afetar os direitos dos beneficiários de planos de saúde de baixa renda ou vulneráveis, como grupos de idosos e de crianças. A Quarta Turma do Tribunal definiu que as defensorias públicas não têm legitimidade para propor ações coletivas contra aumentos abusivos de mensalidades dos planos. Na decisão, o ministro relator do processo, Luis Felipe Salomão, afirmou que, quando alguém opta por contratar um convênio de saúde particular, “parece intuitivo que não se está diante de consumidor que possa ser considerado necessitado”, o que impede a pessoa de ser defendida de forma coletiva por uma defensoria pública.

O caso teve início no Rio Grande do Sul, onde a Defensoria estadual ajuizou ação coletiva contra o plano de saúde Tacchimed. O objetivo era barrar reajustes considerados abusivos aplicados a clientes idosos. “Nós entendemos que a decisão do STJ foi absolutamente isolada de todos os demais precedentes do Tribunal. Além disso, ela parte do preconceito social de que quem tem plano de saúde é rico”, pontuou o subdefensor público-geral para Assuntos Jurídicos da Defensoria gaúcha, Felipe Kirchner. O órgão pretende entrar com recurso contra o entendimento do STJ.

Prioridade

Um estudo divulgado em agosto do ano passado pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) mostrou que 46% dos beneficiários dos convênios médicos têm renda mensal inferior a três salários mínimos (R$ 2.172, atualmente). O levantamento mostrou ainda que contratar um plano privado de saúde era uma das prioridades dos brasileiros, atrás apenas de casa própria e educação. “Quem paga R$ 80 em um plano não tem condições de dispender R$ 300 com um advogado. Além disso, é nesses convênios mais baratos que há mais problemas, mais descumprimentos de contrato”, afirmou o diretor do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), Geraldo Tardin.

Kirchner, da Defensoria do Rio Grande do Sul, argumentou ainda que a ação aberta pelo órgão não diz respeito a todos os beneficiários do plano, mas somente à parcela dos idosos. “O STJ teve uma visão reducionista, estreita, do que é a defensoria pública. É uma instituição que tutela o sujeito vulnerável, seja qual for a vulnerabilidade dele: crianças, adolescentes, pessoas com deficiência ou vítimas de discriminação racial, por exemplo. A vulnerabilidade econômica é só um dos aspectos e talvez não seja nem o mais relevante”, afirmou. Ele enfatizou ainda que é justamente na fase da vida conhecida como terceira idade, quando a situação econômica fica mais apertada, que os planos de saúde são mais procurados pelos beneficiários.

O aposentado Gleine Antonio Muniz, de 65 anos, por exemplo, sofreu com o reajuste da mensalidade devido à mudança de faixa etária: no ano passado, o valor do convênio teria dobrado caso ele não tivesse recorrido à Justiça. “Tentei resolver com a empresa, mas não obtive resposta. No tribunal de pequenas causas, ficou decidido que o aumento seria de 30%, sem reajustes futuros. Mas, neste ano, o plano aumentou novamente o valor, agora referente ao convênio da minha esposa.”

A operadora tentou justificar dizendo que a correção não se referia à mudança de faixa etária, nem ao reajuste anual, sem dar maiores explicações. No momento, Muniz e a esposa pagam cerca de R$ 1.200 mensais pelo plano. “Como eu sei que o reajuste não foi permitido pela ANS, vou acionar a Justiça novamente. Vale a pena ir atrás dos nossos direitos”, afirma o aposentado.

Constitucionalidade

A decisão do STJ determinou que, para justificar uma ação coletiva, deveria ficar comprovado que todos os envolvidos se enquadram no padrão de vulnerabilidade exigido pela lei para serem representados pelas defensorias públicas. “Mas esse tipo de comprovação acaba sendo inviável. Para ser considerada incapacitada financeiramente, a pessoa tem que demonstrar que suas despesas mensais ultrapassam a receita. Como se trata de um contingente grande, seria preciso uma análise da situação financeira de cada uma delas, o que é muito complicado fazer”, disse a advogada Giovanna Trad, especialista em planos de saúde.

A intenção da Defensoria gaúcha é recorrer da decisão, seja no STJ, seja no Supremo Tribunal Federal (STF). No entendimento do órgão, a interpretação constitucional não cabe ao STJ, o que tornaria a sentença “tecnicamente insustentável”. “Além disso, temos pelo menos duas leis infraconstitucionais (a Lei Complementar nº 80, de 1994, e a Lei da Ação Civil Pública) que garantem nossa legitimidade de forma irrestrita”, argumentou Kirchner.

A supervisora institucional da associação de consumidores Proteste, Sônia Amaro, observou que o Código de Defesa do Consumidor garante a tutela coletiva e legitima a União, os estados e os municípios a representar consumidores em juízo. “Só temos a lamentar uma decisão desse tipo. A grande vantagem de uma ação coletiva é beneficiar a coletividade para que as pessoas, individualmente, não tenham que pleitear as mesmas coisas”, salientou.

A advogada Geovana Trad ponderou, no entanto, que, dentro do ponto de vista do processo jurídico, o STJ não pode ser contestado. “O consumidor que se sentir lesado pode pedir uma substituição e continuar a ação, com um advogado particular, de onde parou”, disse.

Procurado pelo Correio, o ministro Luis Felipe Salomão não quis se pronunciar. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) informou que não vai se manifestar sobre o assunto.