Revista ‘Em Discussão!’ debate a saúde financeira do SUS

Ricardo Westin e Raíssa Abreu /Jornal do Senado

A rede pública de saúde do Brasil é ambiciosa. Ao criar o Sistema Único de Saúde (SUS), a Constituição estabeleceu que cada brasileiro, rico ou pobre, precisa ter todas as necessidades atendidas sem pagar nada — de uma aspirina a um remédio anticâncer que custa milhares de reais, de uma consulta por causa de dor de garganta a uma complicada cirurgia no coração.

Entre a letra da lei e a realidade, porém, existe um abismo. Faltam médicos. A espera por uma consulta pode durar meses. Por uma cirurgia, anos. Pronto-socorros vivem abarrotados de pacientes. Em hospitais, eles convalescem em macas pelos corredores. Ambulâncias ficam na garagem por falta de gasolina. O Brasil ainda registra novos casos de elefantíase, esquistossomose, mal de Chagas e hanseníase. A dengue, que mata, ressurge todo verão.

As mazelas da saúde não têm uma explicação única. Especialistas responsabilizam tanto as falhas na gestão quanto a corrupção. Entretanto, são enfáticos ao apontar que o maior dos problemas é, de longe, o subfinanciamento. Para fazer tudo aquilo a que se propõe, o SUS não tem ­dinheiro suficiente.

A edição de fevereiro da revista Em Discussão!, publicada pelo Jornal do Senado, trata especificamente do financiamento da saúde. O tema é esmiuçado ao longo de 82 páginas, em reportagens que explicam desde as tentativas já feitas de reforçar o caixa do SUS até os projetos de lei em estudo hoje no Congresso Nacional, passando pelas experiências de outros países. A nova edição já está disponível na Livraria do Senado e no site do Senado .

Bilhões insuficientes

— Em todo o Brasil, o cidadão que procura tratamento frequentemente depara com toda sorte de desrespeito, como longas filas e descaso. Isso é inaceitável, porque a manutenção da saúde está ligada ao direito à própria existência — disse o presidente do Senado, Renan Calheiros, numa sessão temática realizada em setembro passado em que senadores, ministros e militantes da saúde discutiram o SUS.

Em 2012, o governo federal, os estados e as prefeituras destinaram à saúde R$ 173 bilhões. Esse valor custearia todo o ­Programa Nacional de DST e Aids durante quase um século e meio.

O montante que alimenta o SUS aparenta ser fabuloso, mas três comparações deixam claro que não é. A primeira é com a rede privada. De todo o dinheiro que sustenta a saúde no país, a fatia grande do bolo (54%) está no sistema privado. A parcela menor (46%) mantém o sistema público. O desequilíbrio aumenta quando se leva em consideração que a grande maioria dos brasileiros (76%) não tem plano de saúde e depende do SUS quando adoece.

A segunda comparação é com países que também têm um sistema universal e integral. No Brasil, o poder público investe em saúde 4% do produto interno bruto (PIB), menos que Reino Unido (7,7%), Canadá (7,8%) e Argentina (4,9%).

A última comparação é com os planos de saúde. Enquanto os convênios médicos gastam, em média, R$ 160 mensais com cada um de seus 48 milhões de clientes, a rede pública desembolsa R$ 72 por mês com cada um dos 200 milhões de brasileiros. A rede pública, além de tudo, tem uma lista de tarefas muito mais extensa que a dos planos de saúde. Cabem ao SUS o controle de epidemias e a vigilância sanitária de remédios e alimentos.

— O SUS está sem dinheiro, e isso se vê em itens banais. Consultórios não têm cadeira para os pacientes e hospitais não têm lençol. Como o médico pode oferecer um atendimento digno? Os políticos fazem promessas, mas, quando chegam ao governo, mostram que a saúde, na realidade, nunca foi prioridade — disse a Em Discussão! Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.

Gastos crescentes

Falta dinheiro do governo federal. Segundo especialistas, os estados e as prefeituras já destinam à ­saúde o máximo que podem. A União arrecada a maior parte dos impostos, mas aplica no SUS uma parte pequena deles.

O Senado está empenhado em ajudar o governo a encontrar o caminho. Neste momento, os senadores analisam uma série de projetos de lei que buscam reforçar os cofres da saúde pública.

No início do ano passado, o Senado encarregou uma comissão temporária de debruçar-se sobre o problema e propor soluções.

Em setembro, em debate no Plenário, os senadores trataram do tema com dois ministros — Miriam Belchior, do Planejamento, e Alexandre Padilha, na época titular da Saúde.

A discussão ganhou fôlego em agosto, quando entidades do setor sanitário reunidas no movimento Saúde+10 apresentaram um projeto de lei que obriga o governo federal a aplicar 10% da receita bruta no SUS. Para que a proposta fosse aceita pelo Congresso, o Saúde+10 recolheu 2,2 milhões de assinaturas.

Caso o poder ­público não tome nenhuma atitude com urgência, o subfinanciamento ficará ainda mais profundo com o passar do tempo. Os gastos da saúde crescem num ritmo veloz.
Diariamente são lançados remédios e aparelhos novos e caros, que, em vez de substituir, passam a conviver com os antigos. A tomografia computadorizada, por exemplo, não levou à aposentadoria do velho aparelho de raios X. O Brasil tem cada vez mais idosos, que requerem mais tratamentos do que os jovens. Outro fenômeno é a judicialização da saúde. As pessoas recorrem à Justiça para obter do governo remédios e cirurgias que não recebem do SUS.

Para Mário Schef­fer, professor de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), a má qualidade do SUS tem empurrado os brasileiros para a saúde privada. Em 2000, 31 milhões de pessoas tinham plano de saúde. Hoje, 48 milhões. Afirmou ele à revista Em Discussão!:

— Nem mesmo os clientes dos planos estão satisfeitos. Os planos já mostraram que não são capazes de oferecer o atendimento adequado. Está claro que o governo deve tirar do papel o SUS previsto na Constituição. Para isso, precisa garantir um financiamento decente. Sem dinheiro, é impossível aumentar a quantidade e a qualidade dos serviços ­públicos de saúde.

Publicação do Senado foca grandes temas nacionais

Em reportagens aprofundadas, a revista Em Discussão! aborda os grandes temas nacionais em debate no Senado. A 19ª edição trata do financiamento do SUS.

A revista pode ser lida gratuitamente pela internet (clique aqui para ler) . Quem prefere a versão em papel pode comprá-la no site da Livraria do Senado, por R$ 10 cada edição — o valor já inclui as despesas de envio postal.

Em edições anteriores, Em Discussão! abordou assuntos como a má qualidade da educação e os entraves para a adoção de crianças.

Da CPMF à Emenda 29, soluções foram insuficientes

Desde 1988, ano de criação do SUS, 18 homens chefiaram o Ministério da Saúde. De Adib Jatene a José Gomes Temporão, de José Serra a Alexandre Padilha, todos tentaram convencer o presidente da República de que o SUS precisava de uma fatia mais generosa do Orçamento. Ministro nenhum teve sucesso.

— O governo diz que não há recursos suficientes. É uma desculpa que vem desde o início do sistema — diz Jurandi Frutuoso, secretário-executivo do Conass (entidade que representa os secretários estaduais de Saúde).

De acordo com Mário ­Scheffer, professor de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), os ministros da Saúde esbarram na força dos ministérios da área econômica:
ministérios da área econômica:

— O SUS vai continuar afundado em problemas enquanto prevalecer essa política econômca que prioriza a redução das despesas com ações sociais para alcançar elevados superávits primários e abater a dívida pública.

O SUS nunca contou com uma fonte de recursos ao mesmo tempo estável e suficiente.

A primeira grande resposta para o subfinanciamento foi dada em 1996, quando se criou a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. A CPMF seria derrubada em 2007.
O segundo movimento ocorreu em 2000, com a aprovação da Emenda Constitucional 29. A União passou a ter de investir no SUS o mesmo volume aplicado no ano anterior mais a variação nominal do produto interno bruto (PIB) no período. Os estados, 12% das receitas próprias. E os municípios, 15%.

O terceiro e último avanço se deu em 2012, com a regulamentação da Emenda 29. Até então, União, estados e municípios se aproveitavam de uma brecha no texto e lançavam na conta do SUS gastos com saneamento básico, merenda escolar e aposentadoria de servidores públicos, atingindo artificialmente o mínimo obrigatório. A regulamentação estabeleceu que nada disso poderia sair dos cofres do SUS.

Nenhum dos três passos foi capaz de salvar a saúde. Para os especialistas, só há uma solução: obrigar a União a gastar um percentual de suas receitas, tal qual estados e municípios. Defendem que o piso esteja em 18,7% da receita corrente líquida da União (ou 10% da receita bruta). O governo aceita vincular não mais que 15% da receita líquida. Hoje, os gastos com saúde equivalem a 12%.

Em setembro passado, o então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, participaram de uma sessão temática no Senado sobre o caixa do SUS. Padilha reclamou da falta de dinheiro, mas preferiu não cobrar explicitamente um quinhão maior do orçamento. Miriam, ao contrário, foi categórica e afirmou que reservar 18,7% da receita líquida seria “impossível”.

Para Gastão Wagner, que foi secretário-executivo do Ministério da Saúde em 2003 e 2004, as declarações dos dois já eram previsíveis:

— O ministro da Saúde é um cargo de confiança do presidente. Ele não pode destoar da política econômica do governo e sair brigando por mais recursos. Há um limite para o confronto com a área econômica. Para que a situação mude, é preciso haver pressão da mídia e da sociedade. Não há como superar o subfinanciamento esperando uma iniciativa do próprio governo.

Congresso busca novas fontes de dinheiro para o setor

O financiamento da saúde foi um dos principais temas do Congresso em 2013. Em resposta às críticas feitas à má qualidade dos serviços nas manifestações de junho, comissões analisaram a questão na Câmara e no Senado e chegaram à mesma conclusão: o SUS carece de dinheiro federal.

A definição de um piso para os investimentos da União na saúde mobilizou entidades do setor, governo e parlamentares. O Legislativo buscou conciliar a demanda da sociedade (o projeto de lei de iniciativa popular do movimento Saúde+10) com os limites de gastos do governo.

Assinaturas

Não é sempre que o Congresso recebe um projeto de lei com 2,2 milhões de assinaturas. Na última vez que algo parecido aconteceu, foi aprovada uma lei para exigir que políticos que se candidatem a qualquer cargo tenham a ficha limpa.

Com essas assinaturas, o movimento Saúde+10 apresentou um projeto que garante à saúde pública 10% da receita corrente bruta (RCB) da União.

O debate começou com a mobilização da sociedade pela regulamentação da Emenda Constitucional 29, que, em 2000, previu nova forma de financiamento da saúde, com ­compromissos da União e percentuais da receita corrente líquida (RCL) de estados (12%) e municípios (15%).

Os militantes já entendiam que a carência de recursos deveria ser suprida pelo estabelecimento de um percentual para a União. A defesa dos 10% da RCB foi encampada pela 14ª Conferência Nacional de Saúde, em 2011.

Em 2012, regulamentou-se a Emenda 29. Porém, a lei manteve o cálculo da participação federal no SUS — o mesmo montante aplicado no ano anterior mais a variação do PIB.

— Frustração, porque os ganhos não foram ganhos — disse Jurandi ­Frutuoso, ­secretário-executivo do ­Conass (órgão dos secretários estaduais de Saúde).
Em 2012, surgiu o Saúde+10, com o objetivo de alterar a legislação para que também a União tivesse parte da receita vinculada à saúde.

O projeto (PLP 321/2013) está na Câmara. A versão  atual diz que o governo federal deve destinar 15% da RC em 2014, até chegar a 18,7% em 2018 — R$ 190 bilhões a mais ao SUS em cinco anos.

Emenda parlamentar

Em 2013, os senadores, no mesmo texto da PEC do ­Orçamento ­Impositivo, que vincula à saúde metade das emendas parlamentares de execução obrigatória, fixaram um percentual mínimo para os investimentos do governo federal — 15% da RCL, de forma gradual, até 2018.

Mas a decisão ainda não foi endossada pela Câmara, onde tramita uma proposta de percentual mais elevado para os investimentos da União, 18,7% da RCL em 2018 — equivalente à demanda do ­Saúde+10.

Sem a aprovação nas duas ­Casas, os investimentos federais na saúde, estimados em cerca de 12% da RCL em 2013, permanecerão obedecendo à regra em vigor. Isso porque as emendas parlamentares destinadas ao setor não aumentam o valor total, apenas passam a integrar o rol dos recursos que já financiam a saúde.

Novas tentativas de criação da Contribuição Social para a Saúde (CSS), tributo nos moldes da extinta CPMF, também foram ensaiadas na Câmara em 2013.
Propostas de fontes alternativas, como a taxação de grandes ­fortunas, caminham a passos lentos no Congresso.