8M: Saúde e enfrentamento ao racismo: Mulheres Negras e o 8 de Março

Artigo de Fernanda Lopes – Mestre e doutora em saúde pública pela USP. Autora de artigos, organizadora de alguns livros, foi funcionária do Fundo de População da ONU por mais de uma década, representante da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras no Conselho Nacional de Saúde. É membro do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Pesquisadora independente e militante, sua produção é orientada pela perspectiva de direitos humanos e teoria racial crítica aplicadas à saúde da população negra, justiça reprodutiva, iniquidades em saúde. Além de ser proprietária de uma empresa de consultoria especializada em temas relacionados à agenda de saúde e desenvolvimento com equidade racial e de gênero, atualmente é Diretora de Programa do Fundo Baobá para Equidade Racial.

Nós, mulheres negras em movimento, sabemos que a saúde é resultante de um conjunto de fatores políticos, econômicos, socioculturais, ambientais. As doença, os agravos, as mortes, não são fatalidades ou obras do destino. São condições determinadas pelo modo como se vive, se organiza e se (re)produz cada sociedade. Sabemos que o direito à saúde deve estar baseado na plena ação, na liberdade fundamental.

Sua vivência pressupõe maior controle sobre os principais fatores que influenciam a saúde de cada pessoa, de suas famílias, de suas comunidades. Por isso, ao defender o direito humano a saúde, exigimos que não haja interpretações individualistas, mercantis. A saúde como um direito humano deve orientar o bem-estar dos grupos sociais, deve articular e concentrar reinvindicações, reafirmar a dignidade coletiva, em especial, a dignidade das comunidades marginalizadas.

O direito humano à saúde está intimamente ligado à solidariedade e às lutas históricas para o empoderamento dos desfavorecidos. Esta compreensão integral e complexa sempre esteve presente, orientando as ações do movimento de mulheres negras. As mulheres negras em movimento sempre estiveram comprometidas com o bem viver coletivo, por isso foram tão ativas na 8ª Conferência de Saúde, por isso acreditaram e defenderam a constituição de um sistema único, público e universal, com orçamentos públicos que aumentem progressivamente para compatibilizar a expansão das garantias de acesso e uso de procedimentos inovadores para todas as pessoas, de acordo com as diferentes necessidades e nos diferentes níveis de complexidade.

Com a mesma nitidez as mulheres negras defendem a importância estratégica da atenção básica, das respostas focadas no individuo, na sua família e comunidade. Defendemos um sistema integrado de políticas publicas que seja responsivo. Um sistema onde haja uma nova cultura organizacional, não permissiva e onde os agentes a serviço do Estado, quaisquer que sejam as suas atribuições, sejam responsabilizados frente à práticas discriminatórias que restringem acesso a bens, serviços e oportunidades para determinado grupo socioracial.

Sabemos que, no setor saúde ou em outros setores de políticas pública, as práticas discriminatórias não são inação, não se trata de ineficiência ou insuficiência do sistema em prover um serviço de qualidade a uns em detrimento de outros. Trata-se de uma lógica performativa, calcada no racismo e para a qual as instituições e muitos dos que nelas atuam, encontram respaldo e justificativa cultural, política, socioeconômica.

A EC95 congelou o financiamento governamental para a saúde, educação e assistência social. As restrições e ameaças deste racionamento são vividas pelas pessoas que dependem exclusivamente da rede de serviços que compõem o SUS, prioritariamente população negra e/ou pobre, mas também afeta aquelas que têm renda média e que contam com os serviços suplementares de atenção.

A pandemia da COVID-19 evidenciou a importância do SUS e da solidariedade para o enfrentamento de riscos à saúde. A letalidade da COVID-19 foi maior entre pessoas negras com baixo poder aquisitivo, mas também entre grupos com maior mobilidade socioeconômica e, para além das mortes que poderiam ter sido evitadas, é preciso pensar e agir frente aos desafios para o devir: como será o acompanhamento da COVID longa, quais serão os esquemas de tratamento, as estratégias para recuperação e reabilitação frente às sequelas.

Espera-se respostas integrais e equitativas à COVID e, para nós, desde o primeiro momento tivemos como pano de fundo a lógica performativa das instituições governamentais frente ao impacto da pandemia do Zika. Em Pernambuco, epicentro da pandemia do Zika, 84,6% das mulheres mães de crianças com a síndrome congênita se auto identificam mulheres negras. Grande parte jovem, menos escolarizada, inseridas no mercado de trabalho informal ou em ocupações menos valorizadas. Sem acesso aos bens, serviços e insumos necessários para atender as necessidades de suas crianças e as suas.

Os cenários são complexos. As respostas não podem ser únicas. Em ambas as pandemias tivemos um crescimento das mortes maternas, dos nascimentos prematuros, da mortalidade neonatal, de violência obstétrica. A distribuição dos desfechos indesejáveis foi vivida sobremaneira entre mulheres negras. Ou seja, a decisão sobre nossos destinos reprodutivos sempre esteve diretamente relacionada com o acesso às informações, bens, serviços, insumos e à real possibilidade que temos para utiliza-los a nosso favor.

O exercício do direito à materna, no momento oportuno e de forma digna, não nos é permitido em contextos emergência sanitária ou econômica; em contextos de violência urbana ou de violência institucional. E o racismo está na base dessa operação, por meio de manifestações interpessoais, institucionais, estruturais ou sistêmicas.

Neste 08 de março, reiteramos o desafio que temos para garantir a efetivação do direito universal e progressivo à saúde. Precisamos defender o SUS como imprescindível, mas ele precisa funcionar, ser resolutivo. Para as mulheres negras a defesa do direito humano à saúde vem no bojo da defesa do direito à dignidade, ao bem viver, por isso queremos um SUS diferente do que é hoje. Queremos o SUS operando como um real instrumento de justiça social numa sociedade onde a democracia não siga sendo construída sobre as vidas negras ceifadas, num mar de lama e sangue naturalizados.

Reiteramos que não há defesa do direito humano à saúde sem democracia, sem justiça, sem o reconhecimento e enfrentamento do racismo, do sexismo, da lesbofobia, da transfobia, do capacitismo, do idadismo e outras formas de hierarquização social, discriminação e opressão.
Este é o nosso recado para o 08 de março.