Saúde: Principal problema do país é pouco debatido entre candidatos

Financiamento e gestão da saúde dividem campanhas

Prioridade para o eleitor, segundo todas as pesquisas de opinião, a saúde é também um dos temas menos debatidos da atual campanha presidencial. Durante um mês, o Valor colheu junto à campanha dos principais candidatos à Presidência e a especialistas no tema, quais são os gargalos do setor e no que convergem e divergem as propostas para 2011.

O Sistema Único de Saúde (SUS) é a grande concordância.

Nenhum dos três primeiros colocados na disputa a presidente da República questiona o conceito de direito universal à saúde definido pela Constituição de 1988. Não poderia ser diferente.

O SUS é produto de uma mobilização intensa de médicos sanitaristas, iniciada nos anos 70 e consagrada, em 1987, com a apresentação à Constituinte da primeira emenda de iniciativa popular no país, com mais de 100 mil assinaturas. O movimento articulado ainda na ditadura construiu, linha por linha, o capítulo da Saúde Pública na Constituição de 1988; de lá saíram os principais formuladores da área que hoje estão abrigados no PT de Dilma Rousseff, no PSDB de José Serra, no PV de Marina Silva e no PSOL de Plínio de Arruda Sampaio.

Foi no chamado “Partido Sanitarista” que Serra, quando ministro da Saúde (1998-2002), escolheu quadros técnicos para assessorálo. Têm a mesma origem os técnicos do Ministério da Saúde do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, incluído o ministro José Gomes Temporão, um sanitarista de carteirinha.

“Fui para a periferia de São Paulo em 1976, trabalhar como voluntário na paróquia da Igreja de Bom Jesus de Cangaíba”, conta o vereador Gilberto Natalini (PSDB), um dos responsáveis pelo programa de saúde tucano.

Natalini vinha do movimento universitário, era ligado ao PCdoB e participava da articulação sanitarista. Era forte a participação do PCB e da esquerda católica no movimento. Em São Paulo, o Movimento Popular pela Saúde tomou a periferia. Fábio Feldman, hoje candidato a governador pelo PV, era um dos militantes.

Em Itaquera, o secretário do Meio Ambiente da prefeitura de São Paulo, Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho (PV), um dos formuladores do programa de saúde de Marina Silva, era funcionário público e iniciava sua longa trajetória como sanitarista.

Qualquer que seja o eleito, o SUS não está sob ameaça, conforme revelam os reiterados programas eleitorais de Serra, Dilma e Marina. “O sistema está assegurado pela Constituição brasileira”, diz o sanitarista Eduardo Freese, ao constatar que, do início do movimento, na ditadura, até hoje, quase 40 anos depois, a estrutura do SUS andou muito. “A gente cabia numa Kombi. Hoje somos milhões de trabalhadores no SUS”, diz Freese, diretor do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, de Pernambuco, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz.

“A construção da política universalista da saúde foi inspirada no socialismo e na socialdemocracia.

Essa foi a proposta mais bem elaborada da Constituinte”, afirma Eduardo Jorge, que diz não ter “problema nenhum” em reconhecer “o que os outros” (governos) fizeram para consolidar a política.

No fim do mês passado, representantes dos quatro principais candidatos a presidente foram ao Congresso da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) para expor aos médicos sanitaristas os programas relativos à Saúde Pública. Estavam presentes Renilson Rehen de Souza (PSDB), Humberto Costa (PT), Eduardo Jorge (PV) e Lúcio Barcelos (PSOL). O presidente da entidade, Luiz Facchini, abriu o debate lembrando as semelhanças: “Temos um denominador comum muito importante. Todos os integrantes da mesa são integrantes de longa data do movimento de reforma sanitária, da construção do SUS e da participação nos eventos da Abrasco”, disse.

O Sistema Único de Saúde é considerado uma boa política pública, mas uma obra inacabada.

O programa de Marina o define como “a maior política pública em construção no Brasil”.

Todos, sem exceção, inclusive o representante do partido governista, consideram a questão do financiamento da saúde como um ponto fundamental. Está nas preocupações dos candidatos o fortalecimento da atenção primária.

Preocupa também a formação de médicos generalistas, fundamentais à expansão do atendimento à saúde básica, hoje relegada ao segundo plano pelas faculdades de medicina.

Também está presente a ideia de que o conceito de saúde universal não elevou a promoção e a prevenção da saúde a carroschefes do SUS, 22 anos depois de sua criação. E que é preciso arrumar um termo de convivência justo entre a saúde pública e a saúde complementar.

As divergências ficam por conta das formas de gestão da saúde pública. “Existe um grande debate sobre modelos de gestão.

Há quem defenda um modelo fundamentalmente estatal, há quem queira a participação estatal e de organizações sociais e há quem seja completamente contra a administração direta”, resume o ex-ministro Humberto Costa (PT). Exceto pela posição totalmente contrária à administração direta, dentro do PT existem as demais variantes. “Quem trabalhou mais com gestão defende modelos mais flexíveis. O pessoal mais ligado à organização sindical quer apenas administração direta”, resume Costa.

Para Freese, a grande diferença que se pode estabelecer entre os governos tucano e petista, nos últimos quase 16 anos, é a maior ou menor propensão a incorporar quadros terceirizados na área da saúde. “No governo anterior, a visão em relação aos trabalhadores do SUS era outra. Não foram feitos concursos, não houve aumento de salário. Não vou dizer que o Serra é privatista, mas posso dizer que este governo (de Lula) avançou mais no Programa de Saúde da Família (PSF)”, diz.

“Não tem como abrir mão das entidades filantrópicas”, defende Natalini. “São Paulo tem 420 Santa Casas e similares. A grande oferta de leitos do SUS no Estado vem das filantrópicas”, diz o vereador tucano. Para outro sanitarista ligado ao PSDB, também o PT vem assumindo posições mais maleáveis em relação à gestão porque, como governo, teve que assimilar outros atores que não o poder público. Na Bahia, por exemplo, o governador Jaques Wagner (PT) não teve como desmontar uma rede de saúde pública em que organizações sociais têm grande importância na prestação de serviços. “O problema é que o modelo de incorporação de organizações sociais ao sistema surgiu primeiro em São Paulo e veio como o carimbo tucano, com um bico deste tamanho”, diz o integrante do PSDB, para explicar as resistências a um modelo misto.

A “obra inacabada” do SUS termina quando o acesso à saúde estiver de fato universalizado. “É preciso dar prioridade ao SUS”, diz um tucano. Isso quer dizer aumentar o financiamento. Segundo o raciocínio da fonte do PSDB, o dinheiro que vai para o SUS teoricamente tem que cobrir 100% da população em todos os aspectos ligados à saúde: Vigilância Sanitária, vacinação, controle, atenção básica e atendimento especializado – este é o princípio constitucional da universalidade de acesso. Cerca de 25% da população tem saúde suplementar, ou seja, um plano de saúde, e estes são parcialmente atendidos pelo sistema público, nos casos em que não há cobertura – normalmente, procedimentos de alta complexidade. Os outros 75% dependem exclusivamente da saúde pública. O Estado brasileiro (governos federal, estaduais e municipais) dedica à saúde pública menos da metade dos recursos que circulam na saúde suplementar. O dinheiro público ainda tem que suprir os casos de omissão da saúde suplementar.

“Gasta-se com saúde no Brasil cerca de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) e, deste total, o gasto público é de 3,6% do PIB. O gasto público se situa entre 40 e 42% do gasto total com a saúde.

Países que têm a saúde universalizada gastam de 8% a 9% do PB, mas 75% é gasto público. No total, cerca de 58% do gasto com saúde no Brasil atende apenas 25% da população. Há aí um problema de financiamento seríssimo”, diz o sanitarista tucano.

Embora o diagnóstico de que o maior problema da saúde pública é o financiamento seja comum a todos os programas de governo, em época eleitoral não se recomenda falar em novos impostos. A candidata do PT, Dilma Rousseff, publicamente lamentou a derrubada da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – criada na gestão de Adib Jatene no Ministério da Saúde, no governo Fernando Henrique, e derrubada no governo Lula, com a ajuda do PSDB -, mas, em vez de defender a volta do imposto, afirma que o orçamento da saúde poderá ser fortalecido pelo aumento de receita decorrente do crescimento econômico. Segundo Natalini, a questão do financiamento será tratado em tempo oportuno pela equipe econômica de Serra, caso ele vença as eleições. Esta é a mesma posição de Eduardo Jorge, um dos formuladores do programa de saúde do PV. “Esse tipo de coisa exige reforma tributária ou remanejamento de recursos orçamentários, mas Marina não vai tratar disso agora”, diz o secretário.

Existe um entendimento de que não há “clima” para novos impostos.

“Há entendimento de que é preciso criar fontes novas de financiamento da saúde e há consenso também de regulamentar a Emenda 29”, afirma Costa, do PT, sem também dar uma ideia de como o PT irá resolver a regulamentação sem mais dinheiro.

A famosa emenda 29 foi aprovada no governo Fernando Henrique, no ano 2000, quando Serra era ministro, obrigou os Estados e municípios a aplicarem, respectivamente, 12% e 15% da arrecadação dos impostos em ações e serviços de saúde. A União, por sua vez, deveria ter investido em 2000 o mesmo valor gasto em 1999 com o setor, mais cinco por cento. Nos anos seguintes, este valor teria que ser corrigido pela variação do Produto Interno Bruto (PIB). A regulamentação da EC 29 há sete anos tramita no Congresso.

Uma de suas versões foi inviabilizada pela derrubada da CPMF e outra inclui uma Contribuição Social para a Saúde (CSS).

A falta de fonte de financiamento tem impedido um acordo para votar a regulamentação – e acordos sempre foram possíveis entre a “bancada sanitarista”, independente do partido a que pertençam seus integrantes. Sem definições claras do que seja gasto em saúde, os Estados driblam o piso de gastos definido pela emenda, de 12% da arrecadação.

“Há consenso de que é necessário regulamentar a Emenda 29.

A saúde é uma prioridade para Dilma. Se os recursos virão por redirecionamento ou criação de uma outra fonte, essa é uma questão para a futura equipe econômica do governo”, afirma Costa. “O Serra está assumindo a aprovação da regulamentação da emenda sem dinheiro novo.

Na hora que regulamentar governador nenhum vai poder mais enganar”, diz Natalini, para quem as distorções criadas pela não regulamentação sobrecarregaram especialmente os municípios.

“Quem tunga são o governo federal e os estaduais”, reforça.

“Metade dos Estados não está cumprindo a emenda 29 e o governo federal consente”, afirma Eduardo Jorge. “Tem que dar peso político para a aprovação da regulamentação, para evitar qualquer tipo de malandragem, e começar a gastar mais dinheiro federal para chegar progressivamente às porcentagens estabelecidas pela legislação, que é de 10% da receita corrente”. Este percentual foi definido numa das versões da regulamentação em tramitação, de autoria do senador Tião Viana (PT-AC).

A prioridade à atenção básica está em todos os programas – e, entre os sanitaristas envolvidos nos programas de governo dos candidatos, tornar a atenção básica o carro-chefe do sistema ainda é um desafio distante. “O Brasil herdou do período préSUS a cultura de dar prioridade à recuperação da saúde, com certa atenção à prevenção – o Brasil é um dos melhores do mundo em vacinação -, mas promoção quase nenhuma”, afirma Eduardo Jorge. Para ele, a conquista do SUS não resultou, automaticamente, na priorização da saúde básica. “A atenção é super-especializada: o Orçamento prioriza isso e também é da superespecialização que vem o prestígio dos profissionais”. A tentativa do SUS de mudar essa prioridade foi a criação do Programa de Saúde da Família (PSF). “O programa foi uma adaptação bem brasileira, só que é preciso ampliá-lo em quantidade e qualidade, para que exerça o papel de líder do sistema”, afirma o secretário municipal do Meio Ambiente.

Embora ainda não seja a locomotiva do SUS, o fato é que o PSF foi uma experiência que foi mantida e ampliada, ao longo dos governos.

“Serra ampliou as equipes de saúde da família, de 1800 para quase 18 mil”, afirma Natalini. O material de campanha de Dilma informa que, em 2003, quando o PT assumiu a Presidência, existiam 19 mil equipes de saúde da família em 4,4 mil municípios; hoje, seriam 30 mil equipes em 5.250 municípios. Os agentes comunitários de saúde, que são peça fundamental do PSF, eram 176 mil e hoje são 235 mil. Há, no entanto, o reconhecimento de todos os candidatos de que falta mão de obra especializada para expandir o PSF. Eduardo Jorge, do PV, propõe um “trabalho intersetorial” entre educação e saúde, para que as universidades formem, em suas turmas, pelo menos 40% de generalistas.

“Hoje, em 100 médicos que as universidades formam, apenas dois são generalistas”, diz.

Um serviço solidário, em vez do serviço militar obrigatório, poderia instituir que no último ano do curso de medicina e no primeiro ano de formado, o médico vá trabalhar na sociedade, articulado com a instituição de ensino. “O sistema é formado por médicos cada vez mais especialistas. A saúde preventiva tem que lidar com a saúde, e não apenas com a doença”, concorda o tucano. O programa do PT fala em “ampliação do aparelho formador” de médicos para suprir a necessidade de recursos humanos do sistema.

Os Ambulatórios de Medicina Especializada (AMES) prometidos por Serra e as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) do atual governo, que Dilma promete aumentar, têm peso eleitoral, mas na concepção sanitarista seriam uma forma de desconcentrar os atendimentos em hospitais do SUS. São ações destinadas a melhorar o acesso ao sistema e a sua qualidade. Para Eduardo Jorge, o salto de qualidade do sistema pode ser obtido com a articulação do PSF com especialistas.

Fonte: Valor Econômico/BR (23/10)