Ricardo Menezes discute o SUS Brasil

Por Ricardo Menezes*

O próximo período selará a história da seção que trata da Saúde na Constituição Federal de 1988 – CF de 1988 (artigos 196 a 200).

Hoje a tendência dominante é a definitiva transformação em letra morta do Sistema de Saúde nacional, público e universal, conforme previsto na CF de 1988 com a denominação de Sistema Único de Saúde – SUS. Dizemos isso devido a:

? profunda e progressiva fragmentação do sistema em redes de unidades de saúde de entes federados [1] – Municípios, Estados, Distrito Federal e União –, fruto do tíbio protagonismo histórico do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde estaduais que não conseguiram garantir a coordenação e integração da rede sanitária nacional, portanto, o funcionamento sistêmico do SUS;
? existência de múltiplas lógicas organizativas que aumentam a fragmentação do sistema [1] (administração direta e indireta, contratos e convênios, organizações sociais – OS, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, e outros);
? fragmentação do sistema decorrente da relação existente entre hospitais e ambulatórios privados e filantrópicos e o SUS, há décadas, sobre os quais os gestores públicos têm baixa capacidade de controle e governabilidade [3] [4], radicalizada, na atualidade, em decorrência da crescente privatização da gestão de serviços e de redes municipais, criando-se no território municipal gestores privados com poder e autonomia para definir estratégias de cuidado, política de pessoal, entre outros aspectos [4];
? crescente privatização de unidades e de recursos públicos da Saúde;
? crônico e desestruturante subfinanciamento do sistema; e,
? ausência de Planos de Cargos, Carreiras e Salários de âmbito nacional para todos os trabalhadores da saúde do SUS.

Esta realidade gera, por um lado, a insatisfação da população e, por outro, a desorganização do sistema acarretando um número imponderável de mortes evitáveis no País todo ano, todo mês, todo dia.

Embora a tendência descrita anteriormente seja a dominante, ela pode ser revertida e derrotada se adotarmos um conjunto de providências nacionais inovadoras e ousadas – nos planos orçamentário, técnico, organizacional, político-administrativo, gerencial e propriamente político – que visem eliminar a fragmentação, a privatização e o subfinanciamento, objetivando a implantação efetiva do Sistema de Saúde nacional, público e universal, o SUS constitucional.

Aqui é preciso destacar: como a Saúde deixou de ser focada na campanha eleitoral de 2014 como prioridade nacional, não ensejou o debate de projetos estratégicos entre os candidatos e as candidatas à presidência. Deu-se o contrário com as seguintes questões: manutenção de políticas visando o pleno emprego em contraposição àquelas propostas que desempregam defendidas pela oposição ao governo Dilma Rousseff; manutenção do controle estatal, pela União, dos bancos públicos para que continuem investindo em habitação popular e outras áreas e programas sociais em contraposição à política de privatização desses bancos explicitamente defendida pela oposição ao governo Dilma Rousseff; manutenção do controle estatal, pela União, da exploração do pré-sal e a destinação de seus recursos para educação e saúde em contraposição às políticas de privatização da exploração e de recursos do pré-sal e, no limite, a privatização da própria Petrobras, defendidas pela oposição ao governo Dilma Rousseff.

O embate estratégico incidente diretamente nas áreas sociais girou em torno daquelas questões, porque as candidaturas conservadoras, ásperas críticas de uma série de políticas sociais implantadas nos governos Lula e Dilma, durante o processo eleitoral adotaram a tática de elogiá-las afirmando, no entanto, que, caso fossem eleitos, as “melhorariam”.

Em função da ausência de debate estratégico sobre a Saúde nas eleições de 2014, a urgência da resolução dos complexos problemas desse campo da área social deixou de ser abordada com ênfase, nos discursos dirigidos à população, por postulantes à presidência da República.

Isto talvez se explique pelo fato de que, embora desde 2008 pesquisas idôneas apontem a Saúde como um problema central na vida da maioria dos brasileiros e brasileiras – os que utilizam os serviços assistenciais do SUS e os que não os utilizam –, na última eleição sua abordagem restou subsumida na pauta diversionista estabelecida pelas candidaturas conservadoras e pelos meios de comunicação de massas: crítica enfática ao governo Dilma quanto ao enfrentamento da corrupção e à condução da economia nacional, aliada ao combate sem tréguas ao PT no qual tudo é válido e à proposição de dadas questões macroeconômicas (independência do Banco Central, por exemplo) componentes do receituário neoliberal para a alienação da soberania nacional.

É necessário ressalvar que a direção nacional do PT, por meio da Secretaria Nacional de Movimentos Populares e Políticas Setoriais, e do Setorial Nacional de Saúde vinculado a essa Secretaria, nos meses de junho, julho e agosto, procedeu ampla consulta aos militantes e simpatizantes do partido, cuja inserção social e profissional é sobremaneira diversificada, com a finalidade de recolher sugestões para o Programa de Saúde, o qual foi concretizado no prazo solicitado pela coordenação da campanha da presidenta Dilma. Contudo, o programa de Saúde não foi veiculado ao longo da campanha eleitoral.

Caso não se dê o enfrentamento das causas determinantes da transformação da Saúde em um problema central na vida da maioria dos brasileiros e brasileiras – é crucial não se perder de vista essa dimensão – tal postura política resultará na continuidade de situações fáticas cujas consequências serão inegavelmente negativas dos pontos de vista sanitário e político, a saber:

a) cerca de 200 regiões [1] do País que necessitam de hospitais continuarão sem hospitais;
b) aquelas regiões que necessitam de centros especializados continuarão sem tê-los;
c) outras regiões que precisam estruturar unidades para que prestem serviços qualificados de atenção básica à saúde das pessoas continuarão sem as estruturar;
d) outras regiões ainda nas quais se impõe a fixação de equipes de vigilância em saúde continuarão sem fixá-las.

Ou seja: será impossível reverter os vazios clínico-assistenciais, a insuficiência da qualificação dos estabelecimentos e serviços de saúde públicos e privados, a iniquidade e a desigualdade sanitária entre cidadãos residentes em diferentes Municípios brasileiros, bem como entre cidadãos residentes em diferentes Regiões de Saúde[A] do País e em distintos Estados, e, por fim, será impossível reverter a iniquidade e a desigualdade sanitária entre cidadãos inseridos em diferentes classes sociais e – no interior da classe trabalhadora – entre cidadãos inseridos em distintos estratos e categorias laborais.

O enfrentamento desta realidade, o que, sem dúvida, evitará um número imponderável de mortes evitáveis no País, somente se concretizará se for adotado um conjunto de providências nacionais inovadoras e ousadas, apontadas anteriormente, objetivando a efetiva implantação do SUS constitucional.

Traduzindo em miúdos: deixar tudo como está no campo da Saúde é o caminho mais rápido rumo ao definhamento social da defesa do direito à saúde, portanto, rumo ao ocaso da perspectiva de implantação do SUS constitucional, e, ao mesmo tempo, é o caminho certo para o sofrimento decorrente do aprofundamento da iniquidade e da desigualdade sanitária entre cidadãos, para o estímulo ao esgarçamento da ideia-força da solidariedade social na sociedade brasileira e para a continuidade da apropriação privada dos – sabidamente insuficientes – recursos públicos alocados na Saúde no Brasil.

Mas nem tudo é diagnóstico na análise crítica de uma situação complexa como a do campo da Saúde!

O povo brasileiro acaba de demonstrar sua força, sua capacidade de luta, sua aguda percepção do sentido anti-popular e anti-nacional das quase secretas – porque não foram explicitadas claramente durante o processo eleitoral – proposições das forças sociais e políticas conservadoras e as derrotou nas eleições presidenciais de outubro de 2014, reelegendo a presidenta Dilma.

Por outro lado, não podemos esquecer jamais das jornadas de junho de 2013! Nessas, o aparecimento da Saúde como forte item reivindicatório de movimentos de massas não surpreendeu, porque, conforme já foi citado, ao menos desde 2008, pesquisas idôneas indicavam o campo da Saúde como o principal problema na vida da maioria dos brasileiros e brasileiras integrantes de todas as classes sociais.

Na ocasião, a resposta do governo federal deu-se por meio da apresentação ao Congresso Nacional de legislação específica que instituiu o programa Mais Médicos. Esse programa contém um componente emergencial – estímulo imediato à vinda de médicos formados no exterior para suprir o déficit de médicos existente no Brasil – e um componente permanente – ampla reformulação dos cursos de graduação e dos programas de especialização de médicos, adequando-os à realidade sanitária nacional, ao lado de medidas destinadas a incrementar o número de profissionais formados anualmente no País.

A aprovação popular do Mais Médicos decorreu, principalmente, do fato de que a União assumiu a responsabilidade, em face do que já foi sinteticamente descrito acima sobre o que ocorre atualmente no Sistema Único de Saúde: profunda e progressiva fragmentação do sistema em redes de unidades de saúde de entes federados; existência de múltiplas lógicas organizativas que aprofundam ainda mais a fragmentação do sistema; crescente privatização de unidades e de recursos públicos da Saúde; crônico e desestruturante subfinanciamento do sistema e ausência de Planos de Cargos, Carreiras e Salários de âmbito nacional para todos os trabalhadores da saúde do SUS.

A União, por meio do Ministério da Saúde, assumiu desassombrado protagonismo orçamentário, técnico e político, a fim de garantir a mais de 50 milhões de brasileiros e brasileiras espalhados por todas as regiões do País, como componente indissociável das ações e serviços de atenção à saúde, o acesso à assistência médica fornecida por milhares de médicos formados no exterior.

O Mais Médicos materializou o espírito da norma constitucional, expressou a tradição mundial de exitosos Sistemas de Saúde nacionais socializados e forneceu à população do Brasil, apesar da diuturna cobertura crítica dos meios de comunicação de massas, uma marcante demonstração: somente com intenso protagonismo federal – orçamentário, técnico, organizacional, político-administrativo, gerencial e propriamente político – na coordenação, normatização, execução de serviços e execução de serviços compartilhada com Estados e Municípios, lograremos implantar o Sistema de Saúde nacional, público e universal, inscrito na CF de 1988, para todos os brasileiros e todas as brasileiras.

A inflexão na atuação da União em relação ao SUS, corporificada no programa Mais Médicos, introduziu um patamar superior de resposta às necessidades de saúde dos cidadãos, ensejando a expectativa de continuidade de vigorosa e arrojada expansão do protagonismo federal na organização do SUS constitucional, no segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff.

Neste sentido, é absolutamente urgente que as forças sociais e políticas imbuídas do compromisso ético-político de defesa da vida, analisem, socializem e se mobilizem em torno de proposições potentes para desatar o nó do impasse estratégico vivenciado no campo da Saúde. Tais proposições devem se assentar em duas dimensões: a ética, consubstanciada na defesa da vida de todas as pessoas, e a política, efetivada na ação direcionada à estruturação de um aparato sanitário estatal nacional, operacionalizado com pujança, agilidade e qualificação, destinado a garantir a promoção, a proteção, a recuperação e a reabilitação da saúde de todos os brasileiros e de todas as brasileiras.
Uma proposição potente para desatar o nó do impasse estratégico vivenciado no campo da Saúde, cuja razão de ser reflete com nitidez o compromisso ético-político antes assinalado, vem sendo apresentada à sociedade por Gastão Wagner de Souza Campos, professor titular do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, a qual o autor, com propriedade, vem denominando SUS Brasil.

No início do presente artigo conferimos ênfase a determinadas questões – a fragmentação do sistema em especial –, já sob a influência suscitada pela exposição ao debate da proposta SUS Brasil. Em outros termos: os introitos concisos com que em suas manifestações Gastão Wagner caracteriza o problema sobre o qual discorrerá – a sustentabilidade e o futuro do Sistema Único de Saúde – forneceram os elementos faltantes à consolidação da nossa compreensão acerca da centralidade da superação concomitante da fragmentação, da privatização e da inadequação da política de pessoal do SUS, bem como do nosso entendimento da transcendência do plano regional [B] para a operação nacional do sistema.

A primeira veiculação da proposta SUS Brasil ocorreu logo após o aparecimento da Saúde como reivindicação de movimentos de massas, nas jornadas de junho de 2013, em artigo veiculado no mês de setembro desse ano pelo jornal O Globo, intitulado Faltam R$ 55 bilhões por ano na Saúde [1]. Em 2013 ainda o autor da proposta problematizou e aprofundou a discussão em entrevista concedida à Revista Poli – Saúde, Educação, Trabalho, periódico editado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, matéria que leva o sugestivo título O desenvolvimentismo não nos protegeu [2].

No calor das disputas de 2014 deu-se a continuidade do debate público daquela proposta, por meio de entrevista e de artigo do seu autor, difundidos nos meses de junho e outubro, cujos respectivos títulos são Regionalização é o futuro do SUS [3] e Uma utopia possível: o SUS Brasil [4]. Tais manifestações encontram-se disponíveis no sítio Regiões e Redes – O Caminho da Universalização da Saúde no Brasil, mantido pelos coordenadores de pesquisa sobre Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil, financiada com recursos provenientes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e do Ministério da Saúde, 2013.

Por fim, na Revista Ser Médico Nº 69, out/nov/dez., 2014, periódico editado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, que circulou no derradeiro mês do ano, Gastão Wagner publicou o artigo Proposta para tornar o SUS uma utopia possível [5].

Optamos, ao apresentar a proposta SUS Brasil, em referi-la na conjuntura que a fez aflorar para que se aquilate o compromisso ético-político que a inspira e sua potência para desatar o nó do impasse estratégico vivenciado no campo da Saúde.

Abandonamos o procedimento que lançamos mão em outra oportunidade, consistente na tentativa de resumir premissas e conclusões do autor da proposição, substituindo-o pela menção das referências de recentes documentos nos quais a questão é abordada.

A pretensão é divulgar aquela documentação, facilitar sua pronta obtenção, estimular sua análise, incitar acalorada discussão social sobre seu conteúdo, enfim, propiciar aos lutadores sociais – e (e) leitores – perceberem a essência da proposição, a saber:

a) dar fim a fragmentação do SUS.
Na totalidade dos documentos referidos que tratam da proposta SUS Brasil o autor se debruça sobre o estudo das origens desta grave deformação estratégica e suas consequências nefastas para a perspectiva de efetiva implantação do SUS constitucional. Nesse sentido, recomendamos vivamente a leitura do artigo Uma utopia possível: o SUS Brasil [4];

b) dar fim a privatização do SUS.
Gastão Wagner afirma que existem evidências sólidas, extraídas da experiência internacional, sobre o modo mais efetivo para organizar a saúde: os Sistemas públicos e nacionais que têm melhor desempenho que modelos privados [1];

c) dar fim a precariedade e inadequação da política de pessoal do SUS, mediante a instituição de Planos de Cargos, Carreiras e Salários de âmbito nacional para todos os trabalhadores da saúde do SUS;

d) dar início a reversão do estrangulamento orçamentário do SUS.

A interdição política da implantação do SUS constitucional já no seu nascedouro, patrocinada pelas classes dominantes brasileiras e suas conservadoras elites econômica e política, mediante a sonegação de recursos orçamentários da União previstos na CF de 1988[C] para a Saúde, inaugurou a cronicidade do subfinanciamento do sistema.

Na ocasião, em média eram investidos cerca 25% dos recursos do Ministério da Previdência e Assistência Social na assistência médica prestada por órgão desse ministério. Com a universalização da Saúde instituída pela CF de 1988, os constituintes destinaram percentual aproximado de recursos orçamentários da seguridade social, 30%, para a Saúde, a fim de que em 1989 o Ministério da Saúde – MS iniciasse a organização do novo sistema, o SUS. Esse recurso não foi repassado ao MS, estabelecimentos de saúde privados contratados e conveniados pelo poder público começaram a conviver com problemas no pagamento e, no início de 1990, ocorreu o fenômeno da desassistência e mortes imputadas pelo noticiário da época ao não atendimento de usuários nos serviços de urgência e emergência contratados e conveniados[D].

No Brasil, o Sistema de Saúde nacional, público e universal, ao contrário da tradição internacional, nasceu sem o protagonismo federal como fator vital e decisivo no seu processo de implantação, o qual, por isso mesmo, segue inconcluso. Exemplificando com dados sobre financiamento extraídos de trabalhos de Gilson Carvalho[E]: nos anos de 1980, 1991, 2002 e 2012, do total de recursos públicos alocados na Saúde, nas três esferas de governo, os percentuais foram os seguintes: União – 75,00%, 73,00%, 53,11% e 46,00% –, Estados/Distrito Federal – 17,80%, 15,00%, 21,64% e 26,00% – e Municípios – 7,20%, 12,00%, 25,25% e 28,00%.

Daquele momento inaugural até o presente, paulatinamente, veio se agudizando o combate político que se dá ao redor do Sistema Único de Saúde em meio a um movimento, ao menos até meados da década de 1990, com dinâmica contraditória. O fato é que, na ausência do protagonismo federal na organização do SUS, a iniciamos, conforme enfatiza Gastão Wagner, com uma diferença radical em relação a outros Sistemas públicos e nacionais, qual seja, o grau de descentralização adotado no País que elegeu o Município como núcleo básico organizacional do sistema [4] [5].

O significado negativo disto para o funcionamento sistêmico do SUS foi inicialmente apontado, porém, tomando-se de modo solitário o elemento financiamento, salta aos olhos a tendência de progressiva desresponsabilização da União – ente federado que mais arrecada e retém tributos – com o provimento de recursos ao SUS, ao lado da progressiva sobrecarga das municipalidades: a União, respectivamente em 1980 e 1991, contribuiu com 75,00% e 73,00% de recursos públicos totais alocados na Saúde, passou para 53,11% em 2002, diminuindo-os cerca de 20% em apenas dez anos, e manteve a tendência de queda, embora menor, destinando 46,00% em 2012. Já os Municípios, respectivamente em 1980 e 1991, alocaram 7,20% e 12,00% de recursos públicos totais alocados na Saúde, passaram para 25,25% em 2002, portanto, os recursos cresceram mais do que o dobro, e mantiveram a tendência de incremento destinando 28,00% em 2012, o que inegavelmente sacrifica as finanças das cidades brasileiras e dificulta a implantação de outras medidas voltadas ao bem-estar social das populações locais.

Na história mundial dos Sistemas de Saúde públicos e nacionais este é um registro sem precedentes.

Enfim, o início da reversão do estrangulamento orçamentário do SUS é uma questão inadiável para as forças sociais e políticas radicalmente democráticas!

Concluímos o presente artigo com a citação da proposta SUS Brasil, contida na Revista Ser Médico Nº 69, out/nov/dez., 2014, periódico editado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, que circulou no derradeiro mês do ano. Com a palavra, Gastão Wagner:

“Por tudo isso, o SUS necessita de uma ampla reforma administrativa e organizacional. E, com base nas premissas anteriores, gostaria de indicar algumas estratégias para o sistema. Uma utopia possível?

Primeiramente, é preciso compreender que o SUS precisa superar a fragmentação, a privatização e a inadequação da política de pessoal, tendo como núcleo organizacional as Regiões de Saúde. Com este objetivo, proponho:

1. Constituir o SUS Brasil: uma autarquia especial integrada pelo Ministério da Saúde, Secretarias de Estado da Saúde e Secretarias Municipais de Saúde. Todos os serviços de saúde de caráter público, bem como contratos e convênios de todos os entes federados, passariam a essa autarquia especial. A autarquia deve ter um modelo organizacional e de gestão próprio e específico, conforme as singularidades e características da área da saúde.
2. O SUS Brasil seria organizado por Regiões de Saúde, que fariam a gestão de uma rede de atenção integral. Todos os serviços públicos teriam um modelo organizacional autárquico, que valeria para atenção básica, redes de atenção, organizações sociais, fundações privadas etc.: o fim da privatização e a invenção de um novo modelo público de organização e de gestão.
3. Todos os profissionais de saúde que trabalhassem no sistema passariam à gestão da autarquia especial por dois caminhos: optariam livremente por integrar as novas carreiras do SUS Brasil ou seriam cedidos por Municípios, Estados e universidades para o efetivo exercício no SUS Brasil. Seriam criadas carreiras multiprofissionais para o sistema nacional, organizadas pelas grandes áreas de cuidado do SUS: atenção básica, vigilância à saúde, urgência e emergência, atenção hospitalar e especializada, e outros agregados a serem definidos. O ingresso seria por concurso por Estado da federação – ou talvez por Região de Saúde? –, havendo possibilidade de progresso por mérito e mobilidade antes de novos concursos. Os servidores já concursados por entes públicos poderiam optar por ingressar na nova carreira como quadro em extinção.
4. Para evitar a burocratização e limitar o predomínio de interesses privados no SUS Brasil, o sistema de cogestão e de gestão participativa seria ampliado e valorizado. O Conselho Nacional de Saúde e a Comissão Tripartite fariam o planejamento e gestão do sistema nacional, valendo-se de gestores do Ministério da Saúde, Secretarias de Estado da Saúde e Secretarias Municipais de Saúde. O mesmo modelo seria adotado nos Estados e nas Regiões de Saúde. Ainda para diminuir a interferência político-partidária, todos os cargos de gestão de serviços e de programas deixariam de ser de livre provimento pelo Poder Executivo e passariam a depender de um processo de seleção interno oferecido aos profissionais do SUS Brasil.
5. Seria criada a autoridade sanitária e o corpo técnico para as Regiões de Saúde. O secretário regional de Saúde seria indicado pelo Conselho Regional de Saúde, obedecidos pré-requisitos técnico, sanitário e a capacidade de gestão dos candidatos.

Tudo isso para garantir a devida atenção em saúde aos brasileiros, ampliando o financiamento para 8% do PIB, a ser gasto em investimento prioritário para a expansão da Atenção Básica para 80% a 90% dos brasileiros. Teríamos equipe básica de qualidade com médico, enfermeiro e apoio matricial multiprofissional para o conjunto da população. A Atenção Básica não se destina somente à população de baixa renda, trata-se de uma estratégia para resolver 80% dos problemas de saúde, mediante cuidado personalizado e que implique abordagem clínica e preventiva. Para isso, será necessário aumentar a sua qualidade, com melhor infraestrutura e integração com hospitais e serviços especializados. E com a ampliação da liberdade das famílias, garantindo-lhes a possibilidade de escolher a qual equipe se vincular em uma dada região.

Estima-se a necessidade de 200 novos hospitais gerais em regiões carentes. Para construí-los e equipá-los serão necessários R$10 bilhões. O custeio anual exigirá orçamento semelhante. A recuperação e reorganização da precária rede já existente custarão outros R$ 20 bilhões anuais. Haveria ainda que se ampliar o gasto com a Vigilância em Saúde, controlar epidemias, drogas, violência, a um custo de cerca de R$ 5 bilhões/ano.

A proposta está lançada. É preciso debatê-la e aperfeiçoá-la para tornar possível a utopia do SUS Brasil”.

NOTAS
[1] Gastão Wagner. Faltam R$ 55 bilhões por ano na Saúde. Jornal O Globo, 20 de setembro de 2013.
Disponível em: http://www.pagina13.org.br/saude/faltam-r-55-bilhoes-por-ano-na-saude/#.VKqIeF4CL0

[2] Gastão Wagner. O desenvolvimentismo não nos protegeu. Revista Poli – Saúde, Educação,Trabalho, Ano VI, 38nov/dez. 2013.p.32-35. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.
Disponível em: http://5c912a4babb9d3d7cce1-6e2107136992060ccfd52e87c213fd32.r10.cf5.rackcdn.com/wp-content/files/SUS_Brasil._Entrevista_Gasto_Wagner.RevistaPoliSadeEducaoTrabalho38-EPSJV-FioCruz-2013.pdf

[3] Gastão Wagner. Regionalização é o futuro do SUS. Sítio Regiões e Redes – O Caminho da Universalização da Saúde no Brasil, junho de 2014.
Disponível em: http://www.pagina13.org.br/saude/regionalizacao-e-o-futuro-do-sus/#.VKqO114CL0

[4] Gastão Wagner. Uma utopia possível: o SUS Brasil. Sítio Regiões e Redes – O Caminho da Universalização da Saúde no Brasil, outubro de 2014.
Disponível em: http://www.pagina13.org.br/saude/uma-utopia-possivel-o-sus-brasil/#.VKtQbv0tHmJ

[5] Gastão Wagner. Proposta para tornar o SUS uma utopia possível. Revista Ser Médico Nº 69, out/nov/dez., 2014. p. 24-27. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
Disponível em: http://5c912a4babb9d3d7cce1-6e2107136992060ccfd52e87c213fd32.r10.cf5.rackcdn.com/wp-content/files/SUS_Brasil._CamposGWS-Ser_MdicoDez.2014CRM-ESP-p.26-29.pdf;
Disponível em: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=FlipRevista&id=69#/26/.

[A] Definições – Região de Saúde: espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde.
Comissão Intergestores Regional – CIR: comissão de âmbito regional composta por representantes da Secretaria de Estado da Saúde e dos Municípios localizados em cada Região de Saúde.
Fonte: Decreto nº. 7.508, de 28 de junho de 2011, que Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990.

Atualmente existem 436 Regiões de Saúde no Brasil.
Disponível em: http://www.resbr.net.br/quem-somos/resumo-executivo/
[B] Referimo-nos à Região de Saúde, definida no Decreto nº. 7.508, de 28 de junho de 2011, que Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, mencionada na nota A.
[C] Constituição Federal de 1988, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Art. 55. Até que seja aprovada a lei de diretrizes orçamentárias, trinta por cento, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o seguro-desemprego, serão destinados ao setor de saúde.”
[D] Menezes, Ricardo. O Financiamento da vida. 2009.
Disponível em: http://cebes.com.br/site/wp-content/uploads/2014/03/o-financiamento-da-vida.pdf

[E] Carvalho, Gilson. Gasto com saúde no Brasil em 2007 e Existe equidade no financiamento público de saúde para todos?

* Ricardo Fernandes de Menezes é médico sanitarista e mestre em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. É membro do Coletivo do Setorial Nacional de Saúde do Partido dos Trabalhadores.