“Muito pouco desenvolvimento de tecnologia original autóctone (de vacina) tem sido observado até hoje”
entrevista de Andréa Vilhena com Reinaldo Guimarães originalmente publicada no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz
Os investimentos industriais em vacinas para pestes como Ebola e Sars foram reduzidos por não trazerem boas perspectivas de lucro. No Brasil, a maior parte das ações de imunizações está sob a responsabilidade de dois laboratórios públicos, que dependem de tecnologias de fabricantes internacionais. “Muito pouco desenvolvimento de tecnologia original autóctone tem sido observado até hoje”, analisa nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, o pesquisador Reinaldo Guimarães, professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ (Nubea) e vice-presidente da Abrasco. “O problema está em que, cada vez mais, as vacinas modernas, com antígenos conjugados e outras tecnologias de ponta não terão possibilidades de ser compradas e transferidas. Talvez esse seja o nosso principal gargalo no campo das vacinas”, observa.
Leia a entrevista a seguir.
Desde a epidemia de Sars, de 2003, os cientistas têm alertado para os riscos de uma pandemia. Para a Sars, foram desenvolvidas vacinas que não avançaram além do nível pré-clínico. Como o Brasil respondeu a esses alertas, em sua opinião? O país teria condições de se preparar melhor e de participar da corrida pelo desenvolvimento de vacinas e medicamentos?
Vamos começar pelo mundo. Com a emergência dos medicamentos produzidos por rota biológica, hoje respondendo pela maior parte do esforço de P&D da indústria farmacêutica, houve uma mudança importante no perfil da indústria global. Como a Big Pharma não dominava adequadamente o desenvolvimento e as técnicas produtivas de vacinas, nos últimos, talvez, 20 anos, a compra de fabricantes de vacinas por empresas farmacêuticas foi intensa, em busca desse know-how. Uma das consequências disso foi a absorção da cultura de um setor industrial em crise (farmacêuticas), exclusivamente focado em receita e lucro, pelas fábricas de vacinas, agora incorporadas à Pharma. Daí que os investimentos em vacinas para as pestes (Ebola, Sars, Mers etc.), que costumam ser um problema quase exclusivo dos países em desenvolvimento e muito pobres, foram reduzidos, por não terem boas perspectivas de mercado. A única vacina que realmente avançou foi a trivalente sazonal contra a gripe – que, apesar de ser mais uma peste, atinge também pesadamente o mundo desenvolvido e rico. Os investimentos industriais em vacinas para as pestes passaram a depender de esforços quase exclusivos do setor filantrópico e da OMS, por vezes, até em parceria com empresas da Big Pharma. Um exemplo disso foi a vacina da Sanofi contra a Dengue. Infelizmente, é uma vacina muito ruim.
E no caso do Brasil?
A indústria de vacinas no Brasil tem uma situação peculiar em relação a todo o mundo em desenvolvimento. Por conta do oligopsônio que é o SUS e da existência do Programa Nacional de Imunizações (PNI), a maior parte das ações de imunização entre nós é responsabilidade de dois laboratórios públicos – Biomanguinhos e Butantan. Mas, mesmo eles, são ainda dependentes de tecnologias transferidas de fabricantes internacionais, transferências essas bem-sucedidas na maioria dos casos. Muito pouco desenvolvimento de tecnologia original autóctone tem sido observado até hoje. O problema está em que, cada vez mais, as vacinas modernas, com antígenos conjugados e outras tecnologias de ponta não terão possibilidades de ser compradas e transferidas. Talvez esse seja o nosso principal gargalo no campo das vacinas.
No caso do enfrentamento da pandemia de coronavírus, a falta de respiradores para pacientes internados é um gargalo. Com toda a dificuldade que o Brasil está tendo para comprar equipamentos no mercado internacional, o governo resolveu investir R$ 1 bilhão na aquisição de respiradores produzidos no país. Teremos condições de atender toda a demanda gerada?
Certamente não, muito embora esse investimento, se for realmente realizado, poderá vir a mitigar a carência desse equipamento. Não creio que haja dificuldades tecnológicas para a produção de respiradores no Brasil. O problema estará, provavelmente, na capacidade de produção, principalmente nos prazos exigidos pela emergência. Penso que se houver algum grau de conversão industrial, essa dificuldade poderá ser em parte superada. Mas mesmo isso terá que ser feito a toque de caixa. No caso de respiradores, creio que o Ministério da Saúde não se preparou adequadamente para a compra, a tempo e a hora, no mercado internacional. Agora, para nós, a oferta sumiu e a especulação de preços disparou.
Recentemente, soubemos que 31 milhões de toneladas de princípios ativos utilizados na fabricação de remédios não virão da Índia para o Brasil, por dificuldade de transporte e devido ao fechamento das fábricas durante a epidemia. Em sua opinião, o que seria necessário para que o Brasil se tornasse autossuficiente na produção de insumos?
O problema dos insumos farmacêuticos no Brasil foi colocado a partir da abertura comercial observada nos governos Collor e FHC, que expôs de modo irresponsável a nossa indústria farmoquímica à concorrência internacional sem que houvesse qualquer plano de contingência que a protegesse durante algum tempo. Em paralelo temporal, foi aí que a Índia e, mais tarde, a China, tornaram-se players mundiais em farmoquímicos. O resultado é que temos hoje pés de barro no que diz respeito a esses insumos farmacêuticos que, atualmente, são importados à razão de cerca de 90% de nosso mercado. O perfil da indústria de insumos farmacêuticos difere de modo importante do perfil da indústria de medicamentos. A indústria de insumos é muito mais uma indústria química do que uma indústria farmacêutica. Ela não é um assunto primariamente relacionado a instituições de pesquisa em saúde. Mesmo a Fiocruz, que é uma instituição que tem uma perna na pesquisa e outra na produção, não creio que tenha vocação para esse tipo de atividade. Não vejo Farmanguinhos como uma indústria farmoquímica e mesmo que isso fosse tentado e fosse bem-sucedido, não seria alcançada a escala de produção necessária a substituir a importação dos mesmos.