Em sua tese 2021-22, Cebes reafirma a luta da civilização contra a barbárie
O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) divulga a sua tese 2021-2022, elaborada para nortear a ação política da entidade. Ela é resultado do consenso no interior do Cebes em debate com diversos movimentos sociais e lideranças acadêmicas. A tese apresenta um diagnóstico da conjuntura e diretrizes para a política e orienta a ação da luta pelo direito universal à saúde! No documento, a entidade reafirma a defesa de alguns de seus princípios, como: o direito universal à saúde e justiça social, a democracia, a luta contra o fascismo e intolerância política e o repúdio a todas as formas de violência, guerra e armamentismo. Na tese, o Cebes também faz a defesa do pluralismo social – denunciando e repudiando o patriarcado, a homofobia, a lesbofobia, a transfobia e o racismo -, da descriminalização das drogas e da legalização do aborto e os direitos sexuais e reprodutivos.
Veja a tese a seguir e acesse a publicação em formato PDF no final do texto.
POR UM MUNDO MULTILATERAL: POR NOVA HEGEMONIA GEOPOLÍTICA GLOBAL, CIVILIZAÇÃO X BARBÁRIE
Atravessamos tempos cruciais para os destinos da humanidade. O contexto da pandemia escancarou a crise do capitalismo, o fracasso do projeto ultraneoliberal, o capitalismo do desastre, da universalização do mal-estar com o agravamento das desigualdades e com aumento exponencial da fome e da miséria, que poderá atingir mais 1 bilhão de pessoas além dos 3 bilhões de seres humanos em insegurança alimentar, aumento da concentração de renda, crise climática extrema e avanço da extrema-direita global e ameaças às democracias.
Essa realidade exige um amplo diálogo entre as forças democráticas e populares para a construção de uma nova governança global em torno de uma agenda de enfrentamento das desigualdades, da crise climática e do avanço da extrema-direita no mundo.
A América Latina tem se constituído como epicentro¹ de grandes batalhas políticas no século XXI por ter sido a região que teve os mais radicais experimentos de governos neoliberais, das ditaduras da década de 1970 até aplicação do consenso econômico neoliberal, o chamado Consenso de Washington, com seu ideário, entre outros, de disciplina fiscal, redução de gastos públicos, abertura comercial, juros de mercado, cambio de mercado, privatização das estatais, desregulamentação das leis econômicas e trabalhistas, direito à propriedade intelectual encarados como forças naturais, inexoráveis, às quais todos os países devem se subordinar.
As disputas políticas na região marcaram a emergência de governos antineoliberais, que impulsionaram uma agenda de enfrentamento das desigualdades intoleráveis para os interesses do capital que retomaram a iniciativa política seja via golpes, como no Brasil, na Bolívia e no Equador, seja por eleições, como na Argentina e no Equador.
No contexto, as disputas tensas de projetos na região estão abertas. Após anos do governo neoliberal de Macri, Alberto Fernandez foi eleito presidente na Argentina, mas sob constante ataque das elites locais, perdeu recentemente a maioria no Senado e viu reduzida sua vantagem na Câmara dos Deputados. No Peru, Pedro Castillo derrotou o clã Fujimori, mas governa sob uma constante instabilidade e ataques internos e externos. Na Bolívia, apesar da vitória expressiva do Movimento ao Socialismo (MAS) com Luís Arce, os movimentos golpistas que derrubaram Evo Morales seguem agindo abertamente.
No Chile, por sua vez, vive-se um paradoxo: a experiência exemplar após o estalido de 2019 com uma dinâmica social e política de grandes transformações que convergiu para a convocação de uma Assembleia Constituinte, visando superar a era Pinochet, apontando para transformações sociais profundas; enquanto as eleições presidenciais apontam um cenário duvidoso com ascensão da extrema-direita. O Chile tem um histórico de experiências políticas, um verdadeiro laboratório; e, hoje, está em curso um processo político social de grande interesse para toda a região.
As mobilizações vigorosas no Chile desembocaram na construção de um processo constituinte com ampla participação popular, cerca de 80% de eleitores, muito expressivo em um país onde o voto não é obrigatório, resultando em uma inédita composição da constituinte com paridade de gênero e presidida por uma liderança indígena Mapuche, com maioria de mais de três quartos para o campo de esquerda e progressista. Por outro lado, as recentes eleições presidenciais deram vitória em primeiro turno, por pequena margem, do candidato da extrema-direita, Antônio Kast. Ainda que o segundo turno esteja em aberto, com um candidato de esquerda oriundo dos movimentos dos estudantes com chances reais de vitória, há uma contradição entre uma constituinte que aponta para a superação do ultraneoliberalismo e a possibilidade de retrocessos resultantes das eleições presidências e expressos na renovação de dois do Senado e da Câmara de Deputados alinhada com a eleição majoritária.
Nesse contexto de ascensão da extrema-direita global com seu arsenal da guerra híbrida, a crise do capitalismo incide de forma fértil nas regiões periféricas do sistema, inclusive na América Latina. Com suas contradições sociais profundas, a região se vê diante de uma tensa e complexa confrontação de uma agenda de democracia participativa, de direitos universais, decolonial, de afirmação de estados plurinacionais, do bem viver ante o projeto da destruição do imperialismo e sua agenda ultraneoliberal.
Em questão, a possibilidade de uma nova hegemonia política na região que aponte para mudanças na direção da superação do capitalismo sem freios. Busca-se uma perspectiva da gestão social da riqueza, uma revisão até mesmo do regime de propriedade, a democratização do acesso aos bens – da sua propriedade, do seu controle e de sua gestão. Como reflete o ex-vice-presidente boliviano Álvaro Linera, “o socialismo democrático não é um conjunto particular de políticas; é a possibilidade de um crescendo de transformações sociais se unindo para alcançar a vitória. É a ideia de um transbordamento da democracia: da esfera eleitoral ao Estado, do Estado à economia, e então para as fabricas, bancos, dinheiro, propriedade e… assim por diante.”²
Na perspectiva da construção de uma nova governança e multilateralismo global a América Latina jogará um papel estratégico, e o Brasil, em especial. A derrota da extrema-direita no Brasil é hoje estratégica para a retomada de articulações com CELAC, UNASUL, BRICS e a criação de outros organismos multilaterais diante dos desafios globais de uma agenda que enfrente a desigualdade, a crise ambiental extrema, que põem em risco a própria humanidade.
A pandemia da covid-19, para além de evidenciar a crise do capitalismo, colocou na agenda global o enfrentamento da desigualdade abissal, a luta por políticas de direitos universais, sintetizada no entendimento mais amplo de que o direito universal à saúde é estratégico e deve ser compreendido como bem comum, a saúde como direito universal, e não como mercadoria. A situação inadmissível da iniquidade da distribuição das vacinas condenará a humanidade a uma pandemia perene com o recorrente surgimento de novas cepas. Essa realidade impõe a urgência não apenas de medidas como suspensão e/ou quebra das patentes como uma das dimensões estratégicas para o enfrentamento das desigualdades e proteção da saúde dos povos, mas, principalmente, uma direção participativa e coordenada de todas as nações na gestão dos estoques existentes de imunizantes.
Um dos pilares do capitalismo, apregoado por Margareth Thatcher e Ronald Reagan na década de 1980, tornando-se hegemônico após o colapso soviético (em que o sucesso do socialismo real apresentava uma ameaça existencial ao capital), é a ideologia de que não há alternativa (there is no alternative, TINA). A célebre frase de Thatcher sobre a era dos indivíduos e o fim da sociedade, o fim da era de ouro em que foram construídas, por cerca de quatro décadas, a ideia e a experiência de um Estado de Bem-Estar Social, pressionado pelas lutas sociais. Esse primado é confrontado pela realidade da pandemia, não haverá saídas individuais e/ou de nações mais ricas, o controle da pandemia passa por um conjunto de dimensões complexas, que confluam para uma agenda de transformações políticas, ambientais, econômicas, sociais, culturais, para enfrentar e tecer as mudanças civilizatórias ante a barbárie.
DOS FILHOS DESTE SOLO ÉS MÃE GENTIL? JÁ RAIOU A LIBERDADE?
País de passado colonial e escravista, o Brasil carrega vivo o peso desse passado. Após quase 400 anos da escravidão como base do sistema produtivo, o País não se livrou das feridas que moldam a sua alma. A mudança na base produtiva e nas relações de trabalho não foram suficientes para solucionar os problemas decorrentes da escravidão e do modelo extrativista e agroexportador. Ainda estão abertas as chagas da injustiça, da exploração, da crueldade e do preconceito. A conformação das estruturas fundiárias e urbanas, as relações sociais, o arcabouço institucional e as interações com o ambiente são marcas de uma sociedade extremamente desigual, predatória e sem projeto para além da exaustão dos recursos disponíveis, incluindo aí as pessoas reduzidas à categoria de peças de uma grande engrenagem que moe vidas, paisagens, sonhos e afetos.
Ainda estão entre nós, e bastante atuantes, as figuras execráveis do capitão do mato e do bandeirante. Os poderes materiais e simbólicos que operavam a manutenção de uma ordem oligárquica e patrimonialista, não obstante o verniz de uma frágil democracia, permanecem intocados e resistentes ao avanço de uma democracia de fato. Nossas elites econômicas, alimentadas pela exploração e mantidas por um forte aparato repressivo e ideológico, são marcadas pelo parasitismo, pela predação e pela falta de compromisso com os interesses nacionais. Grilagem, clientelismo e violência são instrumentos constitutivos da imensa maioria dos segmentos da nossa classe dominante.
Apesar do processo de industrialização, observado principalmente a partir de 1930, ainda convivemos com diversas formas de trabalho escravo, com o cativeiro propriamente dito, e com formas modernas de escravos de ganho nas quais a liberdade é ilusória. De fato, o capitalismo não é incompatível com a escravidão. A modernização desenvolvimentista e conservadora levada a efeito pela ditadura empresarial-militar, que tomou o poder com o golpe de 1964, não alterou a enorme assimetria que separava, e ainda separa, as nossas classes sociais. Pelo contrário, aumentou a exclusão e a concentração de renda. A mecanização do campo e a agropecuária para exportação expulsaram a população sem-terra e criaram os cinturões de miséria que hoje envolvem a maioria dos nossos centros urbanos. Terras indígenas foram e continuam sendo invadidas, e a fronteira econômica predatória avança sobre nichos ecológicos antes equilibrados. Garimpos ilegais e exploração criminosa de madeira são atividades tocadas por grupos que não vacilam em matar seus opositores. Hidrelétricas alteram o regime das bacias hidrográficas, mudando para pior as condições do meio ambientes e da vida de pescadores e ribeirinhos. A energia aí gerada serve para alimentar indústrias como a do beneficiamento de alumínio para exportação. Somos, portanto, exportadores indiretos de água, um bem comum transformado em mercadoria cada vez mais inacessível.
Por todo o País, permanecem inalteradas a intensa exploração de trabalhadoras e trabalhadores e as agressões às comunidades, favelas, quilombos, assentamentos e terras indígenas. A exclusão da maioria de nossa população dos marcos da cidadania e do acesso a condições que permitam a fruição de uma vida saudável e segura é incontestável. Somos testemunhas e vítimas de uma guerra não declarada contra negros, pobres e indígenas. O machismo, o feminicídio, a intolerância, a hipocrisia e a violência são traços presentes nas relações cotidianas. Meritocracia e empreendedorismo são termos que buscam responsabilizar os oprimidos pela situação de opressão que conforma as suas vidas – conceitos utilizados para esconder as barreiras estruturais que mantêm as classes populares distantes dos benefícios gerados pela riqueza socialmente produzida. A brutalidade está profundamente enraizada na nossa formação social. Somos forte e constantemente atravessados por injustiças históricas de longa permanência. Às vésperas do bicentenário da independência, cenas de trabalho escravo retratadas há cerca de 200 anos por artistas como Debret e Rugendas são facilmente encontradas no cotidiano de nossas cidades. Todavia, faltam as histórias dos movimentos populares negros que sempre foram os protagonistas de sua própria libertação.
O país que não integrou aqueles que foram escravizados e seus descendentes nos marcos da cidadania é o mesmo que, apesar das dimensões continentais, negou, e ainda nega, terra a quem nela trabalha. O país que bate recordes de produção de grãos e carnes é o mesmo que convive com o espetáculo dantesco da fome. O país da democracia racial e do homem cordial é o mesmo que mata mais pretos, pobres e mulheres. O país que já ocupou a sexta posição no ranking das economias mundiais é o mesmo que exibe um número crescente de famílias morando nas ruas. O país que protege os interesses de grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros é o mesmo que abandona a sua população à própria sorte. O país que possui imensas riquezas naturais e um invejável patrimônio genético expresso em uma vasta e diversificada fauna e flora é o mesmo que convive com a degradação ambiental e com o extermínio dos povos originários. O país que nega saúde e educação de qualidade à população é o mesmo que valoriza e libera a prática de charlatanismo em detrimento das evidências científicas. O país que valoriza um nacionalismo de rituais patéticos e pretensamente patrióticos é o mesmo que as elites econômicas e autoridades governamentais venais investem em paraísos fiscais, obtendo lucros contra os interesses da nação.
Nossas mazelas não param por aí. É notória a vocação golpista de nossas elites. Avanços tímidos são seguidos de retrocessos pesados. Retrocessos que contam com o apoio e a participação de interesses estrangeiros associados a segmentos ligados à tradição extrativista–exportadora nada compromissada com o atendimento das demandas populares ou com o futuro do País. Nem mesmo os setores industriais e financeiros escaparam à essa lógica.
Essa marca de nascença, revelada em atitudes antinacionais de segmentos significativos do nosso setor produtivo, expressa o poder de alianças entre nossas elites e os interesses geopolíticos e econômicos das potências mundiais, notadamente os Estados Unidos da América (EUA). Expressa também a subserviência de nossas forças armadas às interações que marcam as relações de poder entre centro e periferia.
O golpe de 2016 foi mais uma manifestação nesse sentido. A partir de então, abandonamos as diretrizes político-econômicas que nos levaram a zerar a dívida com o Fundo Monetário internacional (FMI) e a galgar uma posição de relevo na política e na economia mundial. Uma guinada de 180º graus que levou ao aniquilamento de uma política externa exitosa; à redução da aposta no BRICS; à entrega do Pré-sal; ao fatiamento da Petrobras; à falência induzida de grandes empreiteiras; à aceleração da degradação ambiental e ao repúdio a políticas inclusivas de sucesso.
Depois disso, reafirmamos a dependência externa, o isolamento diplomático e a subserviência aos EUA (inicialmente sob Donald Trump, mas certamente atualizada com Biden). Aprofundamos o processo de desindustrialização e de reprimarização da pauta de exportações. Andamos em direção à ruína da nossa estrutura econômica, ao desemprego e à volta do País ao mapa da fome. A “Ponte para o Futuro” de Michel Temer abriu caminho para a decadência, para a barbárie, para o obscurantismo e para a estupidez. Uma associação entre a perspectiva neoliberal e o conservadorismo, ambos de extrema-direita, embora com vernizes e coloração diferenciados.
Trocamos uma democracia de baixo impacto com avanços, ainda que tímidos e insuficientes na área social, pela exclusão completa e pelo fanatismo obtuso e autoritário. Substituímos o estímulo à educação, à cultura, à ciência e tecnologia pelo culto às armas, ao preconceito e à intolerância. Sob o signo do autoritarismo tacanho e da negligência criminosa, o Brasil ateou fogo ao seu patrimônio ambiental e cultural e está destruindo as suas
melhores instituições. Perdemos o acervo do Museu Nacional e, por pouco, não perdemos a Cinemateca Brasileira. Testemunhamos a intensificação de queimadas e o fogo nas áreas de floresta, no cerrado e no pantanal. Assistimos incrédulos à extinção do Ministério do Trabalho e a intervenções desastrosas e destrutivas no Ministério da Saúde, no Ministério da Educação, no Ministério do Meio Ambiente, na Capes, no CNPq, na Finep, no Inpe, na Fundação Palmares, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no IBGE e em uma infinidade de outras entidades. Vimos o Judiciário, o Legislativo e grande parte das forças armadas e das polícias federal e estaduais se aliarem ao movimento golpista. Um amálgama que contou com o apoio, ignorante, preconceituoso e iludido, de setores expressivos das classes médias e da população mais pobre em uma empreitada em que tinham muito a perder e nada a ganhar. As ruas foram tomadas por gente vestida de verde e amarelo imbuída de um sentimento de fervor patriótico e furor anticorrupção. Sentimentos totalmente descolados da vivência cotidiana daqueles que agitaram bandeiras moralistas, mas que serviram de canal para mobilização de insatisfações difusas e históricas em direção ao autoritarismo.
Neste País, a ignorância, como dizia Darcy Ribeiro, não é acaso, é projeto. Uma condição que facilita o uso da mentira e da manipulação como instrumentos de política de governo e de dominação. De fato, moldada por preconceitos, ignorância, mentiras, individualismo exacerbado, negação do lugar de origem (social, étnica e cultural), que se associam ao desejo de ascender, a opinião pública tem sido enganada por estratégias discursivas que anulam o contraditório e naturalizam o neoliberalismo e o conservadorismo como os únicos caminhos a serem seguidos pelo Brasil. Uma estratégia de dominação que facilita a subordinação de nossa precária soberania a interesses econômicos e geopolíticos estranhos ao bem comum, ao bem viver e às necessidades de um desejado projeto de desenvolvimento inclusivo e sustentável.
Ao lado do surrado apelo patriótico contra uma fantasiosa ameaça comunista, e do uso demagógico do combate à corrupção e da meritocracia, as políticas de ajuste fiscal e o mecanismo do teto de gastos encobrem outros objetivos não explicitados e pouco debatidos. Termos pomposos, com ares de responsabilidade e bom senso, como austeridade e equilíbrio das contas públicas, têm sido largamente empregados para esconder um amplo e profundo processo de destruição das nossas capacidades de reagir a crises e de construir um presente e um futuro melhor para todos.
Em torno da necessidade de reduzir o déficit público, foi montada toda uma estratégia para solapar as possibilidades de construção de um Estado que sirva para algo além de balcão de negócios para segmentos econômicos privilegiados. O discurso sobre a necessidade de equilíbrio fiscal a todo custo encobre o sequestro do Estado por seguimentos rentistas e seus aliados internos e externos que atualizam as formas de exploração que compõem a nossa trajetória enquanto país periférico. Um grupo que reúne ainda o setor exportador de commodities e interesses geopolíticos norte-americanos.
Para além dos argumentos de caráter ético e humanitário, é preciso considerar também que, nas economias mais ricas do mundo, é comum o uso do endividamento do Estado para aquecer o mercado interno e financiar o desenvolvimento. Um investimento que volta aos cofres públicos pela via do crescimento da receita decorrente dos aportes na estrutura produtiva realizados com os recursos do endividamento. Ainda que desiguais, nesses países, em que as elites não foram colonizadas ou que se tornaram colonizadoras, existe espaço, mesmo que cada vez mais reduzido ante a um mundo globalizado, para pensar o interesse nacional. Sob a pressão de instituições da democracia, da força do mercado interno e da defesa da estrutura produtiva interna, a produção de déficit público é utilizada como instrumento de política pública para cobrir as falhas do mercado e, indiretamente, proteger a população e a economia desses países diante das crises.
Embora o mantra neoliberal diga o contrário, a presença do Estado é um imperativo entre as economias mais avançadas. O chamado Estado mínimo é uma falácia. Não há empreendimento ou inovação de vulto que não tenha por trás a mão invisível do Estado. De fato, não há potência mundial sem um Estado forte e ágil. Um olhar criterioso sobre os EUA, sobre a China ou a Rússia é capaz de demostrar, sem dúvidas, o valor do Estado. Uma análise sobre os elevados investimentos estatais dos EUA e de países da Comunidade Europeia na recuperação de suas economias abaladas pela pandemia também corrobora a importância decisiva do Estado. Estamos falando de investimentos superiores a US$ 4 trilhões nos EUA ou de € 750 bilhões na Alemanha. Recursos destinados a socorrer a população e estimular a economia.
O Estado, pela riqueza de recursos financeiros, materiais e simbólicos que detém e pelos poderes que acumula, é um instrumento fundamental e parte crucial da solução dos problemas e desafios da atualidade. Uma instância que, em muitos lugares, ainda pode resistir ao crescente poder das grandes corporações e oligopólios. Uma instância que tende a ser fortalecida com a onda protecionista que vai reorganizar as cadeias produtivas globais em função da demonstração inequívoca da dependência mundial em relação à indústria chinesa no combate à pandemia de covid-19.
Em sentido oposto, no Brasil, renunciamos ao poder civilizatório do Estado e à sua capacidade de dinamizar a economia, regulando ou participando diretamente da atividade econômica. Em decorrência, abandonamos toda e qualquer estratégia de desenvolvimento inclusivo e soberano em nome de uma fé cega e ingênua na capacidade da iniciativa privada criar, distribuir riqueza e defender os interesses nacionais.
Além de ineficazes para a geração de crescimento econômico, emprego e renda, tais medidas funcionam como poderosos drenos de exploração do trabalho e da riqueza socialmente produzida. São também instrumentos de fragilização do mercado interno e do Estado brasileiro diante das crises e da competição internacional. Uma fragilização deliberada, antinacional, contrária à democracia e às necessidades da sociedade. Instrumentos de aprofundamento das desigualdades, da concentração de renda e de criação de miséria, ignorância e violência. Instrumentos que aprofundam e aceleram o nosso processo de desindustrialização e corroem as possibilidades de conquistarmos a justiça social, a sustentabilidade e a imprescindível autonomia científica e tecnológica.
Vale ressaltar que a reforma trabalhista, vendida como geradora de empregos e como medida para facilitar a retomada da atividade econômica, não cumpriu tais promessas. Ao contrário, criou-se um contingente imenso de trabalhadores sem vínculos ou precariamente protegidos: o chamado precariado. Por outro lado, e em íntima associação com a perda de direitos trabalhistas, temos a reforma da Previdência que, na prática, acabou com a possibilidade de aposentadorias para além dos valores do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e feriu de morte a Seguridade Social desenhada na constituição de 1988. Políticas que não reconhecem a proteção à vida e à dignidade humana como objetivos prioritários do pacto que justifica a existência do Estado. Políticas que subordinam a dívida social e o nosso passivo histórico à suposta dívida com o sistema financeiro.
Ao contrário do que se prega, estamos diante da retroalimentação da dívida pública. Um mecanismo que controla a taxa de juros, dificulta a obtenção de crédito, mina o setor produtivo, reduz a oferta de empregos, fragiliza o mercado interno e drena recursos públicos e privados para o setor financeiro rentista. Um setor que não emprega e não produz. Um setor que, assim como o agronegócio, lucra com redução do poder de compra da moeda nacional e investe seus recursos fora do País. Uma prática comum à nossa elite econômica, como vimos na recente série de reportagens levadas a efeito pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos batizada de Pandora Papers. Paralelamente, a população enfrenta a carestia derivada da desvalorização cambial da nossa moeda e de uma economia voltada para poucos. Uma economia que subordina o sacrifício da população e o interesse nacional aos interesses de um pequeno grupo de acionistas de empresas como a Petrobras.
O resultado é transformação dos sonhos de gerações na concretude imoral da fome, das doenças, das mortes e da falta perspectivas. Ao contrário das medidas de cortes propostas pelo Ministério da Economia, precisamos de investimentos e políticas públicas que articulem ciência, tecnologia e industrialização às demandas da população e aos desafios enfrentados pelo Brasil.
Não obstante a industrialização alcançada pela adoção de um desenvolvimentismo excludente e concentrador de renda, enfrentamos um retrocesso nessa área de crucial importância para o País. Sob o jugo de uma elite econômica historicamente fundada nos marcos de um colonialismo escravista, o Brasil vem-se transformando naquilo que alguns economistas chamam de “fazendão”. Um empreendimento exportador de commodities, habitado por um povo abandonado à própria sorte, sem acesso aos benefícios da civilização e exposto a todos os tipos de violências. Vivemos uma atualização do mecanismo colonial extrativista que marca a nossa história e a maioria das trajetórias dos países periféricos, notadamente aqueles que passaram por processos de colonização. Um modelo dependente e extremamente agressivo ao ambiente e às pessoas.
Se o campo concentra renda, destrói o ambiente e não gera benefícios para a população, nas cidades, a situação não é diferente. O desemprego, a precarização das relações trabalhistas, a perda da moradia, a degradação ambiental, o analfabetismo funcional, a exclusão digital, a insuficiência de capacitação profissional e a queda na qualidade de vida também atingem duramente trabalhadores, trabalhadoras e excluídos do mercado formal de trabalho, que sofrem com o abandono concretizado na ausência de políticas públicas inclusivas, compensatórias e sustentáveis. Marcas de uma ideologia que despreza o ser humano, o ambiente e os demais seres com quem dividimos o planeta. Uma ideologia que desconhece o conceito de bem comum e o sentimento de empatia e o direito de todos de bem viver.
Chegamos ao tempo das sindemias, conceito que expressa a eclosão de crises mais abrangentes e multidimensionais que se retroalimentam. Crises sindêmicas que não serão adequadamente enfrentadas sem a adesão da população a um projeto de país inclusivo, sustentável, democrático e soberano. Um enfrentamento que exigirá, igualmente, a intervenção de um Estado presente e permeável a instrumentos como o orçamento e gestão participativa.
Vivemos as consequências da adoção da perspectiva neoliberal. Uma perspectiva que expressa a verdadeira face do capitalismo, um sistema que mostrou a essência nos horrores da revolução industrial. Uma essência que ora se revela escravocrata, ora fascista. Nesse domínio, as doenças são causadas por patógenos como vírus, fungos e bactérias, mas as pandemias são resultantes do sistema econômico que integra e controla o mundo, embora não possa controlar o seu poder de destruição sobre esse mesmo mundo.
A sociedade brasileira é, neste momento, vítima de um grande engodo. Uma operação que procura, a um só tempo, esconder a existência de barreiras estruturais à ascensão social, acomodar privilégios e justificar os fracassos daqueles que formam a base popular de sustentação do populismo bolsonarista, ou seja, aqueles segmentos da população que apoiam o presidente, mas que não participam dos ganhos distribuídos entre rentistas, ruralistas, militares, milicianos e parcelas do legislativo e do judiciário. Gente que sonha como o baile, mas não participa da festa.
Somos testemunhas de uma selvageria suicida que se faz presente no estímulo às invasões de terras indígenas e de quilombolas; no garimpo ilegal; no acirramento dos conflitos no campo e nas cidades e em assassinatos de lideranças que se opõem ao avanço da barbárie. A distribuição e a qualidade dos equipamentos urbanos e dos serviços públicos, a conformação dos bairros, comunidades e favelas evidenciam uma injusta partilha dos recursos públicos e uma brutal desigualdade que reserva para a maioria da população as áreas mais degradadas e não contempladas por serviços básicos, entre eles, esgoto, fornecimento de água e energia, urbanização, saúde, educação, segurança, moradia digna, lazer e cultura.
Na esfera econômica, o desemprego chegou à estarrecedora marca de aproximadamente 15 milhões de desempregados. Números que se somam aos 6 milhões de desalentados e aos 40 milhões de informais. Cresceu absurdamente o número da população em situação de rua. A fome voltou, e com ela, cenas como a fila do osso em Cuiabá ou de gente vasculhado o lixo em busca de alimentos. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 116,8 milhões de pessoas passaram a viver em insegurança alimentar, sendo que 43,3 milhões não têm acesso aos alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada) e 19 milhões passam fome (insegurança alimentar grave), segundo pesquisa da realizada em dezembro de 2020. Temos 63 milhões de brasileiros negativados no SPC-Serasa, o que também dificulta a retomada da dinâmica econômica. Os pobres caíram para a pobreza extrema, e a classe média empobreceu.
Enquanto os trabalhadores enfrentam o desemprego, o congelamento e a redução de salários e direitos, a inflação volta a afligir as famílias ao lado do estagflação. Itens como o gás de cozinha, combustíveis e alimentos que compõem a cesta básica alcançaram preços absurdos e proibitivos.
A pandemia tornou evidente que as sociedades não podem renunciar a sistemas públicos e universais de saúde e de seguridade social. Na mesma linha, deixou claro que o mercado jamais substituirá o Estado no provimento do bem-estar social. Mostrou também a fragilidade de uma economia que não inclui. Diante do desastre, demo-nos conta de que é urgente costurar um novo pacto mundial. Um pacto multilateral, reciprocamente responsável, que reduza as assimetrias e estimule os países a adotar estratégias econômicas em que princípios como oportunidades iguais e dignidade para todos ganhem centralidade e participem ativamente dos projetos de desenvolvimento. É preciso estabelecer também pactos intergeracionais que garantam uma vida digna para crianças, jovens, adultos e idosos. Pactos que só serão possíveis com o empoderamento das classes populares. Confrontados pelo caos, somos levados a questionar se o rumo que trilhamos até aqui foi o melhor caminho.
Para além do perigo presente, a pandemia e as reformas neoliberais deixarão sequelas profundas na nossa estrutura econômica e social, afetando de modo negativo e duradouro a qualidade de vida da população. Nessas circunstâncias, o Estado nunca foi tão necessário. É imprescindível banir de vez as políticas econômicas de vieses neoliberais. Abandonar esse rumo não só nos momentos de crise em que todos recorremos ao Estado. Os desafios que enfrentamos só serão superados a partir uma perspectiva mais solidária, sustentável e intergeracional. A saúde pública e o bem viver que desejamos e merecemos são incompatíveis com uma sociedade que valoriza mais o capital e os ganhos privados do que a vida, o meio ambiente e a dignidade.
Precisamos adotar uma perspectiva de desenvolvimento inclusivo, sustentável e soberano. O papel do Estado, a afirmação da saúde como um direto inalienável da sociedade, a qualificação do desenvolvimento e a relação entre a esfera pública e a esfera privada devem nortear a conformação do País que queremos. Fora desse escopo, estamos diante de estratégias de crescimento que atendem somente aos interesses de segmentos econômicos sem compromisso algum com o Brasil. É hora de pensar a dinâmica das relações entre Estado, mercado e sistemas de proteção social a partir dos impactos das políticas sociais sobre o crescimento econômico, e não somente deste último sobre as primeiras, como tradicionalmente se fez. A possibilidade de desenvolvimento sustentável passa pela proteção da vida e pela promoção de condições dignas para todos. Passa por reconhecer o Estado como parte da solução e assumir que a atenção à saúde deve ser um dos seus atributos principais.
ESTRATÉGIAS DE DEFESA DO SUS E DO DIREITO UNIVERSAL À SAÚDE
Nos anos 1970, o Movimento da Reforma Sanitária confrontou as fissuras da ditadura militar vigente propondo o desafio de criar de uma nova forma política para o Estado brasileiro. No documento “A questão democrática na saúde”, a reinvenção sistêmica de novas formas políticas para o Estado fez convergir os fundamentos universalistas e públicos da tradição sanitarista com as aspirações de cidadania de amplos segmentos do povo brasileiro. Na atualidade, a franca desconstrução da estrutura democrática forjada nessas lutas, que culminou na Constituição de 1988, impõe novamente ao campo sanitário um momento de refundação do Estado brasileiro. São próprios desses momentos históricos complexos: a releitura do passado, o questionamento de teses que se mostram insuficientes para explicar o presente, e a expansão de incertezas quanto ao futuro. Sob essa condição, a presente tese do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) se abre ao diálogo com a vasta inteligência da Saúde Coletiva, atualizando a tradição sanitária diante dos novos movimentos do capitalismo nacional e internacional.
Se, a partir da Constituição de 1988, a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) consistiu no esforço de avançar na construção de um sistema de saúde universal, gratuito e equitativo enquanto política pública no interior de uma ordem democrática; sob vigência do capitalismo, desde o golpe de 2016, lidamos com o desafio mais profundo de configurar uma nova forma de organização do poder, cujo contexto é de destruição do País, de sua democracia, suas políticas públicas orientadas para a justiça e equidade, com o favorecimento de uma elite rentista, escravocrata e violenta. Com o golpe de 2016, tornou-se explícito que, nesses 30 anos de redemocratização, a afirmação da saúde enquanto direito de todos e dever do Estado não se fez acompanhar de uma democratização do poder de decisão, que se manteve concentrado em estruturas como o oligopólio midiático, a concentração agrária, o poder militar, as esferas aristocráticas do judiciário, e a estrutura de representação política, fortemente condicionada pela influência do poder econômico. Mantido esse desenho oligárquico de poder, desde os anos 1990, passou a vingar uma agenda de reformas que assumiu um matiz dominantemente conservador, mantendo ou aprofundando a dinâmica elitista e patrimonial de aparelhamento do Estado, limitando a universalização dos direitos, particularmente no SUS.
Analisando ainda as implicações do golpe de 2016, o aprendizado que se impõe é que existem poucas chances de que o padrão de construção pactuada e incremental de direitos, anteriormente vigente, mantenha-se como caminho à construção do SUS e consequente democratização do Estado brasileiro. Se os circuitos liberal-conservadores brasileiros – tanto a direita tradicional, quanto suas novas formas – têm em comum o afã de fechar os espaços institucionalizados de conflito legítimo entre programas políticos, recusando até mesmo o resultado de processos eleitorais, deve ser claro à tradição sanitária de que o seu êxito em afirmar direitos por meio de políticas públicas depende da radicalização da democracia, cujo objetivo central consiste na distribuição do poder. Em síntese, se sob a influência do neoliberalismo se coloca em curso uma transformação da natureza do Estado brasileiro, será um erro histórico afirmar um programa de adaptação a essa realidade agressiva. Mais do que uma derrota do programa, o risco incide sobre a perda da sua própria identidade política.
Com a pandemia da covid-19, houve a um só passo a aceleração e a deslegitimação do projeto liberal-conservador. Por um lado, o embrutecimento de um capitalismo de desastre intensificou o vínculo orgânico das corporações de mercado com as forças militarizadas, cada vez mais presentes na conjuntura política do país; por outro, o drama da pandemia tornou possível que o SUS viesse ao centro da consciência democrática de milhões de brasileiras e brasileiros. Sem dúvida, esse deslocamento abriu a oportunidade para que a cultura democrática sanitarista amplie os sentidos do seu programa no cotidiano das trabalhadoras e os trabalhadores.
Como princípio de hegemonia, essa novidade histórica retira a saúde da condição de uma pauta setorial da democracia e a posiciona como o eixo mesmo de um programa civilizatório, organizador de diretrizes que vão da estrutura tributária à reconstrução da indústria e da soberania nacional, da necessária regulação do setor privado de saúde à reconstrução do pacto federativo brasileiro. Como princípio de hegemonia, a centralidade alcançada pelo SUS no juízo público deve ser interpretada como uma resistência da população brasileira à forma mercantil capitalista que se faz presente na área da saúde. A valorização do SUS consiste mesmo na ritualização pública de valores universalistas, de defesa do bem comum, da simetria radical de direitos e deveres, e de apoio à soberania nacional. Por essa compreensão, coloca-se a possibilidade histórica de que a tradição sanitarista construa um pacto em bases ampliadas com aqueles e aquelas que não se corromperam ante os estímulos individualistas e consumistas do capitalismo e que insistem em não ser dominados.
É parte dessas transformações a elevação das responsabilidades políticas do Cebes e das demais entidades integrantes do Movimento da Reforma Sanitária, que devem atuar como instâncias de direção política na reconstrução democrática nacional. Nesse domínio, os movimentos de articulação e construção de frentes democráticas e populares, como a Frente Pela Vida, Brasil Popular, Povo Sem Medo, devem ser considerados ações que inauguram uma forma diretiva importante, vocacionada a ampliar a inserção social das instituições sanitaristas, de se contrapor permanentemente à representação empresarial da saúde. A Frente Pela Vida, particularmente, com o apoio sistemático do Cebes, deve se tornar uma referência signifi-cativa no debate público sobre saúde, atuando de forma coordenada pela necessária reconstrução da autoridade sanitária do SUS. A luta pela vida e pela saúde sempre dependeu do protagonismo da população organizada em todos os níveis e em vária frentes, e hoje isso é ainda mais importante.
Neste início de século XXI, o princípio universalista da tradição sanitária brasileira, fortemente consciente das opressões materiais classistas, tem um encontro a ser consolidado com as novas formas de luta por cidadania, como o antirracismo, o antipatriarcalismo e a resistência ao colonialismo. A luta socialista contra as várias formas de opressão humana deve ter na tradição sanitarista brasileira o seu momento máximo de afirmação, formando uma luta coerentemente anticapitalista, antipatriarcal e antirracialista, ampliando assim o seu elo com o poder radical popular.
Neste momento agudo de crise civilizatória brasileira, a tradição da reforma sanitária se vê diante do desafio de reinventar formas de lutas para lidar com o aprofundamento de desafios novos e clássicos: i) o subfinanciamento crônico tornou-se aberto desfinanciamento; ii) as forças políticas que sempre se alimentaram do hibridismo público-privado passaram a rejeitar francamente a autoridade soberana do Estado, reivindicando o compartilhamento das prerrogativas públicas de administração e planejamento; iii) o mercado da saúde acelerou o seu processo de fusão e oligopolização, associando-se em escala crescente ao capital financeiro internacional, formando novas e amplas coalizões políticas.
Tendo o entendimento de que se colocam em curso transformações profundas da vida política nacional, a atualização histórica do programa do Cebes se organiza a partir dos seguintes eixos:
i) Rompimento com austeridade fiscal presente no Estado brasileiro:
A estrutura fiscal brasileira radicalizou a inviabilização do SUS com a Emenda Constitucional nº 95/16 (EC/95). Esse movimento radical de força por parte dos setores conservadores indica que o nosso programa deve se orientar pelo rompimento sistêmico com a estrutura fiscalista brasileira. Se nas últimas três décadas as lutas da Reforma construíram pactos e adaptações programáticas construídas no terreno da austeridade, a reposta atual consiste em formular um programa alternativo não apenas à EC-95, mas à Lei de Responsabilidade Fiscal, à chamada regra de ouro e a outros pontos da agenda econômica ultraneoliberal.
ii) A reafirmação da crítica à mercantilização da saúde:
No que diz respeito à dinâmica de mercantilização da saúde, as grandes corporações reorganizam o seu padrão de interação com o Estado, ampliando o escopo de sua apropriação do orçamento público. Com a tese de que é preciso aprofundar a integração dos vínculos entre os setores públicos e o mercado da saúde, organizações passaram a fundir um amplo espectro de segmentos empresariais que vai desde a prestadores de serviços – como hospitais privados, laboratórios de análises clínicas e de imagens –, operadoras de seguros de saúde, indústrias de tecnologias e equipamentos, indústria farmacêutica e instituições de ensino.
No centro dessa nova força política mercantil, a tese da convergência de interesses entre a estrutura do SUS e os negócios corporativos representa uma ameaça consistente à desconfiguração dos princípios que conferem identidade à história das lutas sanitaristas. Para o campo sanitário, o contraponto contundente a essa ideologia liberal está diretamente ligado à sua capacidade de se manter enquanto uma tradição viva, coerentemente socialista. Diante desse contexto, a hesitação em torno dos valores matriciais de universalidade e igualdade radical – genuinamente opostos à razão mercantil capitalista – traduziria a própria derrota histórica do programa político sanitarista.
iii) O pacto federativo e a desprivatização da gestão estatal:
Neste período, o processo avançado de desconstrução de um projeto de formação nacional mostra efeitos intensos sobre a estrutura da administração pública, amplamente desidratada. Na ausência de um parâmetro nacional, organizador do trabalho de gestão no SUS, abriu-se um caminho de franca fragmentação do sistema, repondo um problema central para a implementação dos programas de saúde, sobretudo em estados e municípios mais empobrecidos.
Nos últimos 30 anos, o gasto federal em saúde foi, proporcionalmente, reduzido em relação aos gastos dos demais entes federados, que, no entanto, viram suas obrigações em saúde se expandirem. A gestão municipal dos serviços de saúde mediada por um persistente desequilíbrio regional produziu efeitos adversos importantes. Enquanto nos municípios rurais remotos a infraestrutura instalada mostrou-se incapaz de superar os vazios de assistência, nos grandes municípios urbanos, as limitações financeiras conduziram ao avanço das terceirizações da gestão dos serviços públicos de saúde, pulverizando a coordenação única do SUS. Mundos diversos de modelos de gestão, como as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), as Fundações Estatais de Direito Privado e as chamadas Sociedades de Serviços Autônomos (SSA), ganharam intenso dinamismo, e, como experiências parciais e provisórias, instabilizando gravemente os serviços. Tais experiências favoreceram o empresariamento da gestão pública da saúde, indo da Atenção Primária à estrutura da Rede Assistência à Saúde Mental, passando pelos serviços de complexidade secundária, como as UPA e os serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, à complexidade terciária, concentrados na atenção hospitalar. Um esforço ousado de ampliação dessa realidade deletéria se encontra colocada com a proposta de criação da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária em Saúde (Adaps), uma SSA, que consta como pauta política da saúde desde 2019.
iv) A valorização da formação profissional no SUS, com carreiras públicas de base nacional:
A precarização do vínculo de trabalho no SUS persiste como uma das grandes amarradas à realização da Reforma Sanitária. Desde 1988, a construção dos direitos sociais no Brasil foi combatida pelas teses da expansão incontrolada dos gastos públicos e do gigantismo do Estado brasileiro. Apesar de não terem fundamento na realidade, as correntes liberal-conservadoras atualizaram o seu argumento antiestado nacional ao cravar que os direitos do trabalho, que são direitos humanos, são incompatíveis com a própria realização do interesse público, associando a sua condição a privilégios corporativos e ilegítimos. As reformas trabalhistas de 2017 e 2019, a PEC 32, que se encontra no Congresso Nacional, são alertas claros à necessidade de que as lutas sanitaristas devem tomar os direitos públicos do trabalho como direitos humanos e preocupação central de uma assistência robusta em saúde. Sem o reconhecimento do trabalho como direito humano, não se realiza saúde pública.
É comum a muitos municípios brasileiros a existência de vários vínculos de trabalho em uma mesma rede de saúde, indo desde contratos celetistas temporários até a contratos verbais e concursos simplificados. Em comum, guardam o vínculo flexível de trabalho, em que a estabilidade se encontra gravemente exposta às oscilações da conjuntura econômica, à circularidade dos programas eleitorais e subordinados à conveniência das parcerias do setor público com o privado. A desprecarização dos vínculos de trabalho dos profissionais de saúde, enfermeiras e enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde, médicas e médicos, e outras tantas categorias vinculadas ao SUS (Nasf, saúde mental, farmácias), passa por uma urgente sistematização e implementação de uma carreira pública e nacional do SUS.
v) Comunicação e formação de base social de apoio ao SUS:
Com a pandemia e a valorização pública do SUS, as instituições de luta pela saúde assumem tendencialmente maior abertura ao enraizamento social. Desde os anos 1970, o pensamento da Reforma Sanitária aponta a necessidade da formação de uma consciência sanitária como momento central ao êxito das lutas políticas travadas pela Reforma. Por meio dessa reflexão, chega-se ao entendimento de que a cultura política é parte fundamental da construção, expansão e estabilidade das instituições. Assim compreendida a dinâmica do poder, a atual conjuntura aponta para a necessidade de amadurecer debates em torno da formação democrática da opinião pública no Brasil, que, como se sabe, é fortemente constrangida por um oligopólio mercantil de mídias. O histórico de depreciação unilateral do SUS, paralelo ao silenciamento das agendas e teses da Reforma Sanitária, sem dúvida, afeta diretamente a correlação de forças políticas em torno de debates como o financiamento e as iniquidades do setor mercantil da saúde.
Como parte dos desafios que incidem sobre a construção de uma base social de apoio ao SUS, uma importante diretriz do Cebes recai sobre a ampliação dos laços políticos e programáticos com o movimento sindical brasileiro, os movimentos dos trabalhadores sem-terra e sem teto, as lutas por igualdade racial e gênero, e a articulação com partidos políticos sensíveis à agenda sanitarista. O desastre eloquente da pandemia nos mostrou que todos os movimentos de luta contra as opressões e a exploração material são inarredavelmente lutas por uma condição saudável de vida, e abrigam dentro de si o horizonte democrático e socialista que define, organiza e orienta o Cebes.
Por fim, outra dimensão importante a destacar diz respeito à consolidação de dados como momento estratégico para tomada de decisão em saúde. Os setores que acessam os dados conseguem articular para influenciar as decisões para os próprios interesses. Na Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS), a participação social vem sendo escamoteada, como se a pauta fosse meramente gestora. Com isso, a política de dados abertos é fragmentada, incompleta e desvinculada, a qual inviabiliza a avaliação longitudinal dos desfechos das ações políticas em saúde.
Ainda, não está claro a quem serve a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Não há real proteção dos dados sem clareza de quem está usando. Há falta de clareza dos repositórios existentes, respectivos mantenedores e falha na divulgação de quais instituições acessam os dados e a caracterização desse acesso, não há transparência e, portanto, falha o princípio de proteção ao indivíduo diante das grandes corporações e do uso político.
Princípios irrevogáveis do Cebes:
- Defender intransigentemente a democracia com ampliação da consciência crítica por direitos, combatendo e revertendo as tendências destrutivas do capitalismo.
- Defender o direito universal à saúde e a justiça social.
- Manifestar-se firmemente contra todas as guerras, contra indústria bélica e contra a liberdade de porte de arma.
- Repudiar e denunciar todas as formas de violência, incluindo a pena de morte, violência urbana, doméstica, de gênero, institucional e em saúde.
- Defender o pluralismo social, denunciando e repudiando o patriarcado, a homofobia, a lesbofobia, a transfobia e o racismo.
- Defender a legalização do aborto e os direitos sexuais e reprodutivos.
Bases e princípios da luta do Cebes por Democracia e Saúde no Brasil:
- Defender o Sistema de Saúde para todos os brasileiros 100% público, integral, de qualidade, com prestadores estatais e sem incentivo ou subvenção à prática privada.
- Difundir e divulgar para a sociedade as limitações dos planos privados ante o sistema público.
- Defender a eliminação de novos contratos do SUS com o setor privado e revisar dos atuais.
- Defender a extinção de subsídios, isenções fiscais e perdão de multas para o setor privado.
- Lutar contra o fascismo e todas as formas de intolerância política.
- Defender a descriminalização das drogas.
- Lutar contra a expansão dos planos privados.
- Defender a extinção de processos de privatizações e terceirizações na saúde.
- Lutar por financiamento justo e adequado para a saúde e o SUS, com destaque para o papel da União.
- Defender que os fóruns de decisão de Conselhos, Diretorias, Diretorias Colegiadas e órgãos deliberativos de todas as Agências de Estado sejam paritários, com 50% de votos e participação dos usuários de cada setor regulado, a exemplo da ANS, da Anvisa e de outras agências.
- Apoiar o fortalecimento da participação popular para a construção da democracia popular na saúde.
- Democratizar e tornar deliberativos os Conselhos locais, municipais, estaduais de Saúde.
- Defender Planos de Cargos e Salários para os profissionais de saúde.
- Defender o modelo de atenção que supere a perspectiva médico-privatista e se baseie no cuidado humano e nos princípios da universalidade, igualdade, integralidade e autonomia.
- Apoiar os ajustes na formação acadêmica dos profissionais de saúde aproximando às necessidades do SUS.
- Lutar pela devolução do poder de administrar, planejar e executar a atenção à saúde em rede ao Ministério da Saúde, com destaque para a Atenção Primária do SUS, com a extinção da Adaps.
- Defender uma política de força de trabalho em saúde.
- Defender a democratização da PNIIS e a participação social no Comitê Gestor da Estratégia de Saúde Digital.
- Promover diálogos entre as entidades acadêmicas, sindicais, partidos e movimentos sociais, retomando a luta por Seguridade Social, políticas universalistas e de saúde.
- Lutar pela revogação das contrarreformas e retrocessos aos direitos sociais, em especial o Teto de Gastos.
- Defender uma reforma fiscal que redistribua a carga tributária, como impostos, taxas e contribuições sociais, diminuindo os impostos sobre os mais pobres e sobre a classe média, como os impostos sobre consumo, e aumentando os impostos sobre os mais ricos.
- Contribuir para eleger representantes para o Executivo e o Legislativo do campo democrático popular, privilegiando os interesses da população e a plena democracia.
Referências:
- https://www.diariodocentrodomundo.com.br/turbilhao-latinoamericano-por-emir-sader/
- https://jacobin.com.br/2021/04/como-os-socialistas-podem-continuar-vencendo-no-seculo-xxi/