Túlio Franco sobre as Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil

Túlio Batista Franco, Diretor do ISC-UFF / Rede unida

Em Debate as Diretrizes para uma política de saúde no Brasil

Foram lançadas no dia 21 de junho de 2022 as “Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil” que coloca em foco as propostas da Frente Vamos Junt@s pelo Brasil, formada por PT, PSB, PCdoB, PV, PSOL, REDE e SOLIDARIEDADE, para disputar as eleições presidenciais no Brasil. O documento está aberto a novas contribuições. Aproveitamos a oportunidade para discutir do ponto de vista da política de saúde, as diretrizes que poderiam orientar uma arquitetura de fortalecimento do Sistema Único de Saúde.

Em dois parágrafos o documento denuncia o frontal ataque do atual governo ao direito à vida e ao SUS, e de forma geral cita a falta de investimentos, recursos, acesso precário aos serviços e a urgente necessidade em retomar o seu pleno funcionamento. No campo das propostas anuncia “retomar o atendimento às demandas que foram represadas durante a pandemia, atender as pessoas com sequelas da covid-19 e retomar o reconhecido programa nacional de vacinação”. Nesta linha se compromete “com o fortalecimento do SUS público e universal, o aprimoramento da sua gestão, a valorização e formação de profissionais de saúde, a retomada de políticas como o Mais Médicos e o Farmácia Popular, bem como a reconstrução e fomento ao Complexo Econômico e Industrial da Saúde”.

Estas são as bases que vieram orientando a construção do SUS no período dos governos democrático populares. Sem dúvida é um bom ponto de partida, mas a recente experiência trágica da pandemia de Covid-19, requer ousadia e criatividade para inovar em soluções avançadas para a política de saúde e fortalecimento do SUS.

Entendo que as Diretrizes teriam dois propósitos, o primeiro serve para orientar a elaboração de um Programa de Governo; o segundo, é um instrumento de luta política para gestores, movimentos sociais, e todos os que lutam pela consolidação do SUS. Neste sentido, é importante que tenha muita objetividade, com um olho fixo no momento presente e a correlação de forças na disputa da política que nos informa o possível; e outro, na imagem objetivo que desenha o futuro virtuoso do SUS, e sua fusão com as necessidades da população. É como se articulássemos ao mesmo tempo um programa com base na realidade atual; e mantivéssemos ativo e alerta nosso projeto estratégico que tensiona a realidade para que ela se desenvolva progressivamente para a utopia do SUS universal, 100% público e de financiamento estatal. Uma visão do programa dinâmico, em transição e movimento progressivo rumo ao futuro virtuoso do SUS.

Os acontecimentos recentes colocaram a saúde no centro do debate político nacional, e a ideia geral de “defesa da vida”, ou, construção do “bem viver” se tornaram pensamentos transversais a toda política. De certa forma indica a necessidade de romper com o setorialismo das políticas sociais, e colocá-las no centro, articuladas entre si, e referenciadas no território com as comunidades locais.

Principal adversário de uma política universalista de construção do SUS, o projeto neoliberal tenta de um lado descaracterizá-lo na sua dimensão pública, de outro busca se apropriar do seu orçamento através da venda de serviços e projetos, para gestão em diversos níveis, inclusive na Atenção Básica. A clareza, objetividade, e precisão das diretrizes para a elaboração da política de saúde, devem formar a coluna vertebral de uma arquitetura bem desenhada que organize a ação das milhões de pessoas envolvidas na luta pelo fortalecimento do SUS. Sugerimos algumas questões centrais que deveriam constar das diretrizes, pensadas também no âmbito da Frente pela Vida, ainda em caráter preliminar.

A superação do histórico subfinanciamento e alocação de recursos na saúde requer disputar prioridades no orçamento nacional. A meta de aumentar progressivamente o investimento público em saúde, de modo a atingir 6% em relação ao PIB, como apresentado na campanha presidencial de 2018, seria importante. Tal proposta deveria estar associada à revogação do teto de gastos, e a novas regras fiscais, reforma tributária, retorno do Fundo Social do Pré-Sal, dentre medidas que impactam no modelo produtivo da assistência à saúde, com prioridade em serviços de baixo custo e alto impacto, como são os de referência territorial, inclusive cuidados intermediários associados à APS.

Uma segunda diretriz diz respeito ao necessário investimento maciço em serviços de referência territorial, robustos, resolutivos, integrados em rede e à comunidade, como veio se construindo a Atenção Básica no Brasil. Sugerimos agregar à boa experiência de formação da rede básica do SUS, os Cuidados Intermediários (que se situam entre APS e Rede Hospitalar), seguindo as boas evidências de tal experiência em vários países europeus, especialmente Itália e Reino Unido. Serviços que são de alta eficácia, alcançada com baixos custos.

Isto hoje é uma lacuna na rede assistencial, o que faz com que a Rede Básica tenha um escopo ainda reduzido, resultando em muitas internações desnecessárias e aumentando custos. O SUS universal é cláusula inegociável do sistema de saúde, e só se conseguirá mediante uma reestruturação produtiva, que faça inversão de prioridades de investimentos para o território, entendendo-o como centro da política assistencial.

O desenvolvimento do complexo econômico da saúde é uma diretriz essencial, e deve estar associada a uma política de Ciência & Tecnologia, que prioriza a pesquisa e incorporação de novas tecnologias ao SUS. A pandemia também demonstrou o quando é essencial o país ter autonomia de produção de bens e produtos para a saúde, socialmente orientados e baseados nas necessidades da saúde. Em 2020 este segmento respondia por 9% do PIB, por pelo menos 15 milhões de empregos diretos e indiretos e por 30% da pesquisa brasileira, com potencial de crescimento se houver uma política nesta direção. O Brasil demonstrou possuir relevantes indústrias de fármacos, imunizantes, equipamentos e soluções de Tecnologia de Informação, entre outros produtos que alto consumo e necessidade para o sistema de saúde. Trata-se de um segmento em amplo crescimento no mundo, capaz de gerar empregos e renda, e conquistar a autonomia do país neste segmento essencial para o desenvolvimento do SUS.

Incorporar a questão ambiental e emergência climática como questões também da saúde, atualiza o escopo de intervenções do SUS, e o conecta com políticas e segmentos comunitários combativos no cenário atual. Um aprendizado dramático do quanto o desequilíbrio ambiental pode levar à destruição veio com a pandemia, que tem na sua origem a relação predatória com a natureza, originando a transmissão do novo coronavírus, de uma espécie animal para humana, ocasionando a maior tragédia sanitária dos tempos modernos. A política de saúde deve incorporar como sua também as questões ambientais, como política integrada, mas também nas duas discussões rotineiras e práticas comunitárias, esta questão passa a ser de alta relevância para uma ideia geral de vida saudável. A ideia geral é que a defesa da vida das pessoas requer também a proteção de todas as vidas presentes na natureza.

A questão democrática é central, e transversal ao SUS, requisito para sua existência como política efetiva. A democracia está presente desde a sua origem como um pressuposto para a existência de uma política de saúde universalista, de caráter público e financiamento estatal. O projeto neoliberal produz um estado forte, centralizador, autoritário, para implementar as medidas restritivas de direitos como se vê atualmente no Brasil, que asfixia as políticas sociais, implementando um ciclo de acumulação e concentração da renda. Políticas sociais como o SUS dependem da liberdade de expressão, organização, que se expressa em instituições porosas aos anseios da sociedade; e uma democracia viva, participativa, capaz de incluir a população no sistema de decisões das políticas, como ocorre no SUS, através do controle social exercido pelas Conferências e Conselhos de Saúde. Com o golpe de estado de 2016 houve um forte abalo na nossa democracia, e seguimos lutando para sua plenitude novamente. Na falta de democracia plena, políticas regressivas de direitos foram sendo implementadas, com o assalto aos fundos públicos para projetos privatistas. Se tornou imperativo a defesa radical da democracia, como pressuposto para o fortalecimento do SUS, e uma política de saúde associada às necessidades da população e baseada nos generosos princípios constitucionais que desenham o Sistema Único de Saúde.