Quando o público financia o privado

Radis de agosto já está no ar, discutindo a luta pela democratização da Comunicação no Brasil e seus impactos nas questões de Saúde.

Publicado originalmente na revista Radiz (ENSP/Fiocruz)

Quem ganha e quem paga a conta com as deduções de gastos com saúde?

Bruno Dominguez

O Brasil já soma 47,9 milhões de beneficiários de planos de saúde, fazendo com que as seguradoras faturem R$ 92,7 bilhões por ano, segundo dados de 2012 do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar. A expansão do setor privado se deu não exclusivamente por fragilidades do SUS, mas mediante incentivos governamentais, avalia o economista Carlos Octávio Ocké-Reis, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no livro SUS: O desafio de ser único (Editora Fiocruz, 2012), lançado em junho na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). O público financia o privado quando o Estado abre mão de parte dos impostos e das contribuições sociais relativos a gastos com saúde que deveriam ser pagos por famílias, empregadores, indústria farmacêutica e hospitais filantrópicos.

“O crescimento [do setor privado na saúde] foi gritante porque contou com incentivos governamentais no contexto do desfinanciamento do SUS, da crise fiscal do Estado e da ofensiva neoliberal”, comenta o autor. Para ele, o Estado criou esse mercado, estruturando um modelo de proteção social de matriz liberal em contraposição ao modelo de atenção à saúde pública definido na Constituição de 1988. No artigo Mensuração dos gastos tributários: o caso dos planos de saúde (2003-2011), escrito em parceria com o ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar Fausto Pereira dos Santos, Ocké-Reis estimou o valor que o governo deixou de recolher no setor: R$ 15,8 bilhões, em 2011 (ver gráficos 1 e 2).

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No Imposto de Renda, as pessoas físicas podem deduzir os gastos com planos de saúde, médicos, dentistas, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e hospitais, exames laboratoriais, serviços radiológicos, aparelhos ortopédicos e próteses ortopédicas e dentárias, entre outros. Não há teto para esse abatimento — diferentemente do que acontece com os gastos com educação, cujo limite de dedução no IR é de R$ 3.091,35. A renúncia se aplica também aos empregadores que fornecem assistência de saúde a seus funcionários — quando considerada “despesa operacional”, pode ser abatida do lucro tributável. Ainda há desonerações fiscais para indústria farmacêutica e hospitais filantrópicos.

Contradição

A Constituição definiu tetos para limitar as deduções com saúde. “À época, parecia ser um subsídio desnecessário para os estratos superiores de renda — considerando seu poder aquisitivo e que o SUS deveria garantir assistência médica e odontológica a todos brasileiros”, explica Ocké-Reis. Mas, após 1990, os limites caíram e ainda foi permitida a inclusão de despesas com planos de saúde nas deduções, completa ele.

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“Esse processo inaugura, claramente, um padrão de intervenção do Estado contraditório no tocante às políticas de saúde. De um lado, a Constituição propôs implantar um modelo de proteção social inspirado nas experiências do Estado de bem estar europeu, que prevê o financiamento de políticas públicas via impostos e contribuições sociais. De outro, seguindo o modelo liberal estadunidense, cujas fontes de financiamento se baseiam nos gastos tributários e nos benefícios empregatícios, amplia a renúncia fiscal em saúde”, observa Ocké-Reis.

Deduções, isenções e outros benefícios fiscais são entendidos como gastos indiretos do governo, chamados de gastos tributários. “Ao deixar de arrecadar parte do imposto, o Estado age como se estivesse realizando um pagamento; trata-se de um pagamento implícito”.

Sistema privado favorecido

Em 2003, o volume do gasto tributário em saúde foi de R$ 7,1 bilhões; em 2011, alcançou R$ 15,8 bilhões (gráfico 2). Nessa conta, estão os recursos que o Estado deixou de recolher no setor a partir das desonerações do Imposto de Renda de Pessoa Física, do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, da indústria farmacêutica e de hospitais filantrópicos. Os gastos com planos de saúde foram os que mais pesaram: entre 2003 e 2011, respondiam por 40% ou mais do gasto tributário em saúde; em 2011, atingiram quase 50%, envolvendo cerca de R$ 7,7 bilhões dos R$ 15,8 bilhões.

Ocké-Reis constatou que a renúncia fiscal associada aos gastos com planos de saúde contribuiu em 10,79% em 2003 e em 9,18% em 2011 para o faturamento das seguradoras — “demonstrando a importância do fundo público (Estado) na sustentação econômica do mercado de planos de saúde”, diz. Nesse período, o faturamento do mercado quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação. Em 2003, o faturamento era de R$ 43,8 bilhões; em 2011, chegou a R$ 84,6 bilhões (gráfico 3).

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A renúncia em todo o período estudado decorreu principalmente do Imposto de Renda de Pessoa Física. Em 2011, o IR teve participação de 48,8% (R$ 7,7 bilhões) no total do gasto tributário em saúde, seguido pelos 18,6% das empresas (R$ 2,9 bilhões), os 18,3% dos medicamentos (R$ 2,8 bilhões) e os 14,3% dos hospitais filantrópicos (R$ 2,5 bilhões). O gasto tributário relativo à indústria farmacêutica foi o que mais cresceu entre 2003 e 2011 (de R$ 1,7 bi para R$ 2,8 bi), seguido do relativo às despesas dos empregadores com assistência médica, odontológica e farmacêutica (de R$ 1,7 bi para R$ 2,9 bi).

“O montante dessa renúncia de arrecadação fiscal pode subtrair o volume do gasto público aplicado na saúde”, analisa Ocké-Reis. Os recursos dos quais o governo abriu mão no setor cresceram em ritmo superior ao que investiu em Saúde — respectivamente, 73,6% contra 49,9% entre 2003 e 2006 —, indica outro artigo sobre mensuração dos gastos tributários, no período 2003-2006 (realizada em parceria com o ex diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar, Fausto Pereira dos Santos.
Em 2006, a renúncia teve valor equivalente a 30,6% dos gastos do Ministério da Saúde (R$ 12,4 bi de R$40,7 bi — gráfico 1), ou seja, o Governo Federal pagou indiretamente a conta dos empregadores e das famílias com assistência médica, odontológica e farmacêutica em montante que corresponde a quase um terço do que gastou na área da Saúde. “Esse fato indica que o Estado favoreceu a taxa de crescimento do sistema privado, em particular o mercado de planos de saúde e de serviços médico-hospitalares, que de alguma forma acontece em detrimento da taxa de expansão dos gastos públicos”, comenta Ocké-Reis.
Para a professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fatima Siliansky, é preciso entender que o SUS não está descolado do modelo de desenvolvimento brasileiro, de “capitalismo associado”, em que “a classe dominante dá as cartas, acumula capital político e financeiro, financia grupos de poder e comanda o mercado da saúde, sob a dependência dos subsídios e demandando cada vez mais desonerações e formas de apoio”.
Ocké-Reis sugere a definição de um teto para refrear a renúncia fiscal na saúde ou até a retirada total desse subsídio para famílias e empregadores. A dúvida, aponta, é se a redução ou eliminação desses mecanismos viria acompanhada do retorno dos recursos para a saúde pública a tal ponto que os gastos com assistência não fossem mais necessários.

‘Modelo é SUS para pobre’
No lançamento do livro, Fatima alertou que, além dos subsídios à demanda, como a dedução dos gastos com saúde no Imposto de Renda, o mercado ainda conta com subsídios diretos (incentivos fiscais e desonerações) e com subsídios a funcionários públicos (que têm planos de saúde pagos pelo Estado). “Não me parece que esses subsídios sejam o que impede o governo de alocar mais dinheiro no SUS. O problema é o modelo: para que os planos de saúde cresçam, o SUS tem que ser um sistema para pobre”, avalia. Assim, diz, a universalização da saúde não se dá necessariamente pela política pública, mas pelo consumo no mercado, em parte subsidiado pelo Estado.
O professor colaborador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Nelson Rodrigues dos Santos, o Nelsão, lembra que esses mecanismos acompanham o SUS desde seu nascimento, com a “herança deprimente” de compra de serviços de saúde pelos extintos Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). “Trouxemos no ventre do SUS mais da metade do orçamento para remunerar um sistema complementar por produção e com tabela de procedimentos que privilegia a tecnologia”, observa, calculando que o SUS remunera o setor privado suplementar em pelo menos R$ 50 bilhões anualmente.

Americanização do SUS
De lá para cá, conta, essa realidade vem se agravando, com o subfinanciamento e a precarização do trabalho no SUS, que gerou o mercado de gestão e fornecimento de recursos humanos, via organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público e fundações de apoio. Nesse bojo, estão subvenções de todo o tipo, para ele o “motor” do crescimento do setor privado. “O sistema brasileiro virou uma caricatura do americano”, comenta, considerando que o Brasil entregou ao mercado de planos de saúde a classe média e os trabalhadores sindicalizados, deixando o SUS apenas para os pobres, aos moldes do sistema dos Estados Unidos.
Esse grupo, diz, só é reincluído no SUS quando os custos de procedimentos (os de alta complexidade, por exemplo) não interessam ao mercado privado, “em um jogo de inclusão e exclusão”, como define. “O SUS não é mais aquilo que está sendo construído a duras penas pelas secretarias de Saúde; na prática, o sistema vigente é o outro, privado, e nós somos o compensatório”, considera.