Hugo Fanton: A saúde e a luta por uma Constituinte Exclusiva

A saúde e a centralidade da luta por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político Brasileiro

Por Hugo Fanton*

Durante a segunda metade da década de 1970 e nos anos 1980, o movimento da Reforma Sanitária Brasileira conformou um campo de forças sociais mobilizadas em torno de um programa democratizante dos serviços de saúde no Brasil, tendo como princípio norteador a saúde enquanto um direito, a ser efetivado de forma radicalmente diferente do modelo médico assistencial privatista então vigente.

Tratava-se de uma transformação social que pressupunha a alteração das relações de poder na área da saúde, pela articulação entre entidades sindicais e comunitárias, formação partidária e disputa por cargos legislativos e em instituições públicas, combinados com a conformação do campo da Saúde Coletiva como produção acadêmica crítica relacionada ao saber científico na área e pela construção de saberes em experiências de Educação Popular.

A articulação desse conjunto amplo e diversificado de práticas políticas e sociais ganhou expressão pública nacional em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), cujo documento final consolida os pressupostos construídos para nortear a política nacional de saúde, na medida em que fossem assegurados constitucionalmente.

Adotou-se um conceito ampliado de saúde, não mais em referência restrita à assistência médica, mas relacionado a todos os seus determinantes, tais como trabalho, alimentação, habitação e transporte. Reivindica-se a saúde enquanto direito universal e igualitário, dever do Estado, a ser efetivado por uma rede regionalizada, que constituiria um sistema único, gratuito, de natureza pública, sob controle social e com financiamento autônomo.

Nesse mesmo período, um conjunto mais amplo de movimentos sociais e sindicais brasileiros reivindicavam a instalação de uma Constituinte Exclusiva e Soberana no país, uma Assembleia formada por representantes eleitos com a finalidade exclusiva de elaborar a nova Constituição, a partir da soberania popular.

No entanto, não houve força política suficiente para isso, prevalecendo a tese das forças conservadoras, e foi instalada uma Constituinte Congressual, ou seja, os parlamentares eleitos em novembro de 1986 acumulariam as funções de congressistas e constituintes, mantendo-se subordinados à vontade das forças armadas, do poder judiciário e do poder executivo.

Tal subordinação pode ser exemplificada por fenômenos como a participação dos “senadores biônicos”, indicados pelos militares desde o “pacote de abril”, que compunham um terço do Senado e garantiam às forças armadas uma bancada maior no Congresso, além da articulação do “Centrão”, que barganhava suas posições com o Executivo em troca de cargos, concessões de rádio e televisão e outras benesses.

Apesar disso, a formulação consistente de uma proposta para a saúde, resultante da articulação política historicamente consolidada pelo movimento sanitário, garantiu seu êxito na elaboração do Capítulo da Ordem Social, que institui o modelo de seguridade social como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

O texto aprovado na Constituição aproximou-se bastante do proposto pelo movimento, obrigando o Estado brasileiro a estender universalmente a atenção à saúde e integrar as estruturas governamentais na sua efetivação enquanto um direito.

No entanto, os limites impostos ao texto aprovado, tais como ausência de percentual mínimo de investimento na saúde pública condizente com sua expansão universalizante, bem como a não regulação do setor privado e da sua relação com o setor público, indicam uma correlação de forças desfavorável ao movimento popular naquela conjuntura. E para além disso, permite-nos entender como a forma de organização do Sistema Político Brasileiro influenciou diretamente no esvaziamento do conteúdo democratizante da Reforma Sanitária nas décadas subsequentes.

De maneira mais geral, o vazio institucional e a ausência de um marco regulatório referente às relações entre o público e o privado no Sistema Único de Saúde garante a ausência de controle público sobre o setor privado. Este não só segue existindo como é dependente dos recursos públicos, por mecanismos como o acesso a financiamentos de Fundos Públicos; permanentes renúncias fiscais; venda de planos de saúde ao funcionalismo; isenções tributárias; dupla porta de entrada em hospitais públicos (que permite atendimento diferenciado nos hospitais públicos a clientes de planos de saúde); renúncia fiscal de pessoas físicas e jurídicas nas declarações de imposto; e o não ressarcimento do Estado pelo atendimento dos clientes da iniciativa privada na rede pública.

No momento imediatamente posterior à promulgação da Constituição, ainda nos Governos Sarney e Collor, as discussões do movimento sanitário sobre a proposta de Lei Orgânica da Saúde alertavam para a ameaça de sua submissão ao fisiologismo político que caracterizavam as relações entre os três poderes.

A consolidação de um presidencialismo sustentado em coalizões multipartidárias, que até hoje representam majoritariamente as diferentes frações de classe da burguesia, garantiu a ampliação da assistência médica supletiva e a implantação distorcida do SUS.

Na época, falava-se em um “drama estratégico” para a Reforma Sanitária, na medida em que a definição das políticas de saúde estava subordinada às relações entre empresariado do setor e autoridades do Estado, levando à centralização decisória e controle burocrático das ações, municipalização discriminatória e sub-financiamento.

Em continuidade, nos períodos Itamar e FHC houve a chamada “implosão” do conceito de Seguridade Social e persistência do foco restrito da saúde na assistência médica. A criação de fundos de estabilização fiscal permitiu a desvinculação das receitas da União que constitucionalmente deveriam ser voltadas para políticas sociais.

Para além disso, o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) nos anos 1995-2002, dá bases para a transferência da gestão de serviços públicos às Organizações Sociais da Saúde (OSS), “entidades públicas não-estatais, submetidas a contratos de gestão”, constituídas como pessoas jurídicas de direito privado. Essa agenda, que era preconizada pelo Banco Mundial, garantiu mais um mecanismo de canalização dos interesses privados para o interior de um sistema supostamente público, agora na organização da rede de atenção básica.

É parte do mesmo Plano a criação das agências reguladoras, dentre elas a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), prevista na lei 9.656/98, controlada pelos próprios empresários de operadoras de planos de saúde a serem por ela reguladas e fiscalizadas. É expressão desse controle o acúmulo das dívidas em bilhões de reais referentes ao necessário ressarcimento do SUS pelas empresas que utilizam serviços do setor público no atendimento de seus clientes. Também a Agência de Vigilância Sanitária tem se tornado refém do agronegócio em sua atribuição de fiscalizar o uso indiscriminado de agrotóxicos e a produção de sementes transgênicas.

Cabe destacar ainda os espaços de participação e controle sociais, como os conselhos e conferências, previstos constitucionalmente em 1988 e garantidos por legislação específica. Apesar de tal configuração legal proporcionar a incorporação de grupos sociais antes alijados dos processos decisórios na gestão do sistema de saúde, não foi superado o maniqueísmo das relações da sociedade com o Sistema Político, o que torna esses espaços meros rituais de legitimação de políticas e decisões que permanecem centralizadas nos órgãos administrativos e nos gabinetes.

Durante os governos Lula e Dilma, toda essa estrutura institucional, legal e técnico administrativa do sistema de saúde permanece inalterada, ainda que as políticas de saúde tenham se somado às das demais áreas na melhoria da qualidade de vida da população brasileira vivida nos últimos 12 anos. Ressalta-se que a conquista da saúde como um direito e a construção do SUS desde 1988 proporcionou a extensão da rede de serviços básicos e ambulatoriais para um conjunto bastante amplo da população, redução de taxas de mortalidade infantil e materna e ampliação da cobertura vacinal, por exemplo.

No entanto, os limites aqui descritos à concretização da Reforma Sanitária remontam diretamente à manutenção do controle do Sistema Político Brasileiro pelas classes dominantes de maneira geral, e das frações da burguesia que atuam no setor saúde. Se concebermos o Sistema Político de maneira ampla, levando em conta o Sistema Eleitoral e partidário, bem como os espaços e processos de democracia participativa e direta, podemos estabelecer relações entre as atuais características da organização do sistema de Saúde no Brasil acima listadas e nosso Sistema Político.

A configuração legal, normativa e administrativa da saúde advinda das disputas políticas enfrentadas desde 1988 resultam, de maneira geral, da combinação entre o conjunto de regras que organizam os diferentes espaços de exercício do poder e a atuação nesses espaços pelas diferentes forças sociais e políticas que compõem a nossa sociedade. Esta atuação é desigual, na medida em que o conjunto de regras beneficia determinado grupo social, no caso, as diferentes frações da burguesia.

A possibilidade de financiamento empresarial de campanha, os processos de definição de candidaturas no interior dos partidos, os diferentes mecanismos que favorecem quem já ocupa espaços de poder, a dissociação entre disputa política e compromisso programático, a falta de transparência e participação social na Justiça Eleitoral e no Sistema Judiciário como um todo, a imunidade parlamentar, votação secreta, proporcionalidade dos votos, enfim, o conjunto articulado de regras existentes favorecem as classes dominantes nos processos eleitorais, que por sua vez determinam a legislação e a institucionalidade das mais diversas áreas, dentre elas a saúde.

Se tomarmos novamente como exemplo as relações entre a ANS e as operadoras de planos de saúde, as doações de campanha permitem a composição de uma das maiores bancadas no parlamento, para atuarem em combinação com um sistema regulatório que age independentemente de um marco de referência.

A agência que deveria regular é tomada por interesses particulares das empresas do setor, sem que sua legitimidade política se assente em critérios democráticos. Pelo contrário, seus integrantes possuem competência “delegada”, definida por critérios em nada transparentes.

Nesse sentido, a estrutura jurídico-política que privilegia os detentores do poder econômico vai além das normas eleitorais e da composição partidária, fazendo referência ao burocratismo que caracteriza o Estado burguês, ou seja, à hierarquização das tarefas do Estado de acordo com critérios formalizados de competência.

Isto explica tanto o papel de agências reguladoras e sua centralidade na concretização da política, como o esvaziamento dos ditos espaços de participação popular. Os Conselhos e as Conferências, a quem legalmente cabe a definição e execução de políticas na área, são simplesmente ignorados pelo Sistema Político como um todo.

Em suma: a sociedade fica de fora. Ou, mais precisamente, ficam excluídas as forças sociais comprometidas com a democratização da saúde no Brasil, que representam 98% da população: o povo brasileiro. Relembremos que a Reforma Sanitária remonta a uma transformação social que pressupunha a alteração das relações de poder. Se os movimentos sociais permanecem em luta por uma saúde concebida enquanto “trabalho em condições dignas com amplo conhecimento e controle dos trabalhadores sobre o processo e o ambiente de trabalho”, além de garantia de alimentação, “moradia higiênica e digna; educação e informação plenas; qualidade adequada do meio ambiente; transporte seguro e acessível; repouso, lazer e segurança”, é preciso colocar a questão do poder no centro do debate!

Levantar a bandeira da Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político Brasileiro significa precisamente isso: participar ativamente da discussão da forma de se fazer política e exercer o poder no Brasil, que hoje é profundamente desigual, em favorecimento da burguesia.

Para enfrentar o fisiologismo, a corrupção, o sucatemento, a precariedade nas relações trabalhistas, enfim, as questões todas aqui já listadas e tantas outras que perpassam a efetivação do direito à saúde no Brasil, é fundamental recolocar na ordem do dia a necessidade de alterar o sistema de poder para realizar as mudanças estruturais! É isso, precisamente, que a luta por uma Constituinte Exclusiva e Soberana por meio de um Plebiscito Popular nos permite. Envolver-se na construção do Plebiscito abre ao movimento sanitário a possibilidade de resgatar suas origens, desprendendo-se dos gabinetes de universidades, dos consultórios e de órgãos administrativos, para construir força social em torno de um Projeto Popular para a saúde.

Já em 1988 Sérgio Arouca afirmava que a Reforma Sanitária escrita na Constituição nada representaria se não ganhasse o espaço da comunidade, do lar, da fábrica, das escolas e ali efetivamente produzisse as transformações para “o bem estar da população e para a construção de uma sociedade democrática, justa e independente”. Esse desafio permanece atual e deve ser enfrentado, ainda que muitas vezes não seja fácil vislumbrar as possibilidades de construção de uma alternativa de poder.

Nos anos 1970, em uma conjuntura ainda mais adversa, o recém formado movimento sanitário não se furtou desse dever. Pelo contrário, apostou na construção dessa possibilidade a partir da unidade permanente entre as forças populares, tanto programática quanto no terreno das lutas, estimulando experiências organizativas de base e sua articulação em torno de um programa amplo, nacional, democrático e popular.

O Plebiscito Popular, enquanto instrumento político e ferramenta pedagógica, possibilita que nos envolvamos exatamente em um processo com essas características.

Na medida em que qualquer pessoa, independente de sexo, raça, etnia, idade ou religião pode se envolver, organizando grupos em bairros, escolas, igrejas, sindicatos, está colocada a tarefa de realizar trabalho de base, formação política e de ouvir as pessoas acerca de que saúde queremos e qual sistema político a torna possível. Só assim se enfrenta os grupos que hoje operam o sistema. É assim que sairemos da condição de meros espectadores para promover rupturas e protagonizar a conquista de um Projeto Popular para a Saúde.

Para acessar e votar no plebiscito popular, clique aqui

*Hugo Fanton é jornalista do Fórum Popular de Saúde de São Paulo, militante da Consulta Popular e doutorando em Saúde Pública