Uma aposta nefasta: a segmentação do direito à saúde no Brasil

Nenhum país do mundo conseguiu avançar na construção de direitos segmentando seu sistema de saúde. Ignorar o fato de que cada espaço ganho pelo setor privado é espaço perdido para o direito social soa absurdo.

Thiago Henrique Silva* | No portal Brasil de Fato 

 

Muitas vezes a política acaba sendo a arte do “não dizer”, a mensagem que se explicita justamente pela sua ausência. O adjetivo da palavra aposta no título deste texto poderia ter sido um destes exemplos. O adjetivo poderia facilmente ser trocado porperigosa, arriscada ou qualquer outro que remetesse à noção de que poderia ser uma má ideia, ainda que deixando em aberto uma pequena – porém possível – possibilidade de sucesso. Não me parece o caso. O que está em curso para o Sistema Único de Saúde não é menos que uma aposta nefasta.

Ao afirmar que a abertura ao capital estrangeiro para atuação livre no setor de saúde brasileiro – laboratórios, rede hospitalar privada e filantrópica – corrige uma distorção, o ministro Arthur Chioro conduz a retórica da mesma forma que a introdução deste texto. O importante está no que não é dito.

 

Contradições

Não é preciso ir muito longe para se compreender o mecanismo do pensamento dominante no Ministério da Saúde. Já há farta literatura que evidencia que o modelo lulista se deu através da inclusão pelo consumo e que a consequência imediata deste modelo é gerar uma ampla massa de consumidores e não de cidadãos conscientes. Par e passo com esta ampliação do mercado interno e sua transformação em um mercado de massas houve uma expansão importante dos serviços públicos de saúde, com ampliação das redes de atenção primária, construção de hospitais e estruturação de uma rede de urgência e emergência até então inexistente. Não há dúvidas de que o boom das commoddities – apesar de eminentemente apropriado por uma pequena fração que dele se beneficiou – também ajudou na constituição de um espaço fiscal para a ampliação da rede do SUS. Obviamente, o resultado poderia ser outro caso o orçamento não tivesse sido reorientado no sentido de ampliar também alguns direitos. Obviamente também esta reorientação do orçamento tinha limites estruturais claros, como a manutenção do tripé macroeconômico e a sacralização da dívida pública, sempre justificadas pela cristalização, no discurso político, da correlação desfavorável de forças. Acontece que a agenda do consumo foi sempre muito mais forte do que a agenda dos direitos, e isso se refletiu na ideologia criada no período: a ideologia do direito à consumir.

Se o que impera é o direito a consumir, o direito à Saúde também vira commodditie. Se o limite estrutural do orçamento impede que se garanta o direito, a agenda define seu centro: o acesso. Foi transformando acesso em mantra que o primeiro mandato de Dilma preparou pacotes de benesses para o setor privado da saúde, ampliou isenções fiscais, abriu crédito via BNDES e esteve prestes a anunciar um grande pacote de planos de saúde subsidiados pelo Estado com um público alvo definido: o que o governo convencionou chamar de nova classe média, ou seja, a grande massa que estava eufórica com a conquista do direito à consumir. Estas pessoas agora poderiam pagar por planos de saúde, poderiam comprar o remédio na farmácia através do Programa Farmácia Popular – que subsidia remédios vendidos em redes de farmácias privadas – e finalmente se sentir parte do mundo livre, aquele no qual se tem o direito a escolher o molho no qual será cozido, como nos lembraria o saudoso Galeano.

A agenda da ampliação do acesso – baseada em pesquisas de opinião feitas pelo Ministério – trouxe também boas contradições, afinal, com todos os limites, o governo Dilma se coloca no campo progressista. A boa contradição foi o Programa Mais Médicos, que enfrentou um problema estrutural de falta de profissionais médicos e de ampliação de acesso para mais de 63 milhões de brasileiros aos cuidados destes profissionais. Transformado em cavalo de batalha pela categoria médica, este programa se transformou na mais progressista (e ousada) política de saúde gestada no Brasil até então – não apenas pelo intercâmbio de médicos, mas fundamentalmente pelos legados estruturais como universalização da residência medica e ampliação de vagas de graduação – pois opôs, e continua opondo, interesses de classe reais e concretos, ajudando a politizar o debate do direito à saúde.

 

Aposta

A política de saúde segue caminhos paradoxais porque a macro-política a condiciona dessa forma. Um governo de esquerda que adota medidas neoliberais na economia em prol da manutenção de pactos políticos condiciona toda sua agenda de direitos a este tipo de manobra. E estas manobras respondem imediatamente às movimentações de classe na disputa por dentro do Estado, pelos rumos do orçamento, pelo usufruto dos fundos públicos.

Sabemos pois que há um grau enorme de disputa pelos rumos da política. Mas há disputas e há apostas. A abertura à atuação do capital estrangeiro na saúde inicialmente parecia mais um dos ataques da ofensiva da direita, mas foi abraçada pelo ministro Chioro. O ministro deixar de fazer uma fala mais enfática sobre a dívida pública, taxação de grandes fortunas ou até sobre a criação de algum novo imposto até seria compreensível, pelo seu lugar institucional. Mas o que o ministro vem fazendo é defender que tal medida é importante, e aí, caros leitores, se configura o campo das apostas.

E qual seria ela? Ora, se o centro da agenda é o acesso e estamos em tempos ajuste fiscal – com cortes inclusive na saúde – e baixa capacidade de investimento do Estado, nada mais lógico que atrair capital privado para investimento massivo. Na lógica do governo, a atração dos capitais privados na rede hospitalar vai gerar ampliação da rede, aumento de leitos, aumento do número de consultas, maior concorrência e melhor posicionamento nas negociações com os planos e seguradoras de saúde. Ou seja, se o Estado não consegue investir, vamos criar condições para que o privado cumpra esse papel. As consequências imediatas seriam a ampliação da rede privada, barateamento dos preços e assimilação de maiores carteiras de vidas seguradas, ou seja, mais pessoas pagando para ter saúde. Ao mesmo tempo em que se criam condições objetivas para que o setor privado cresça, se defende com unhas e dentes diante do ajuste o financiamento do programa Mais Médicos. Está dada a aposta: deixar que cada vez mais os que possam pagar pela saúde o façam, e garantir com recursos públicos a saúde daqueles que não podem pagar por ela. Saúde por segmento, saúde segmentada.

 

Cor do gato

Este raciocínio leva ao limite o velho dito popular de que não importa a cor do gato, o que importa é que ele cace ratos. Ou seja, não importa se é o setor privado – aquele que priva os próprios clientes do acesso aos seus serviços – que aumentará o acesso, o que importa é que ele seja aumentado. Eis a lógica com que opera o governo.

Diante deste cenário é impossível não parafrasear outra anedota histórica: “Sr. ministro, o senhor combinou com os russos?”. A experiência recente das enormes desonerações fiscais para as campeãs nacionais e a quebra do pacto na hora que o governo mais precisou devia ter servido de lição. Acreditar que se vai criar um marco regulatório forte para o setor privado depois de ter aberto nosso mercado à atuação de capitais estrangeiros e diante de um contexto de forte ofensiva da direita soa no mínimo estranho. Pior: dar alguma confiança ao capital, esperando retorno em benefícios pra população. Não senhor ministro, o senhor não combinou com os russos, e se já estava difícil antes, a situação agora fugirá do controle.

Nenhum país do mundo conseguiu avançar na construção de direitos segmentando seu sistema de saúde. Ignorar o fato de que cada espaço ganho pelo setor privado é espaço perdido para o direito social soa absurdo. Chioro tem tentado afirmar que não é ministro só do SUS, mas da saúde como um todo, incluso aí setor privado, que pretende regular fortemente. É papel nosso, da militância da saúde que não entende o ministro como um inimigo alertar: ministro, preste atenção na cor do gato, porque do jeito que a coisa anda em pouco tempo o Sistema que nasceu para ser único vai ser apenas mais um, e o menor. O SUS, que teimam em nos dizer que é apenas um menino, vai mostrando cada vez mais seus traços de anão. E anão não cresce mais senhor ministro….

 

* Thiago Henrique Silva é médico de família e comunidade e mestrando na Faculdade de Saúe Pública da USP