Contagem regressiva
O globo – 25/6/2012
Ligia Bahia: “Para deter o descarte de idosos no Brasil que envelhece, é essencial superar teorias, com forte teor de eugenia, e sustar o repasse de recursos públicos à privatização da saúde”.
Idoso deixou de ser sinônimo de inativo há muito tempo. O termo velhice ativa, utilizado em países com elevada proporção de velhos na população, tornou-se uma consignação que dá sentido a articulação de políticas sociais para assegurar “mais vida aos anos e não apenas anos à vida”. Infelizmente, ainda tem muita gente importante, que teima em confundir velho com doente. Preocupações concentradas apenas nas relações entre a longevidade e os gastos, especialmente públicos com aposentadorias, pensões e cuidados com saúde podem causar uma “idosofobia” alastrante. Os principais sintomas da síndrome, que ironicamente acomete velhos ou pré-velhos executivos de empresas privadas de planos de saúde são o belicismo e a negação de identidade. Como as despesas no final da vida tenderiam a ser mais elevadas do que a contribuição pretérita, os velhos seriam “bombas demográficas” a serem imediatamente desarmadas para não comprometer o futuro dos jovens. A declaração de guerra, baseia-se na premissa da existência de um passivo crescente e descoberto dos improdutivos.
As dificuldades para compreender as mudanças demográficas e sociais, inclusive em países como o Japão no qual uma em quatro pessoas se encontra acima de 65 anos, transformaram mais uma tentativa de extender cobertura de planos de saúde para aposentados e desempregados em uma batalha. Empresas comparam, equivocadamente, velho com carro batido. E a analogia espúria entre o desgaste de uma máquina ao envelhecimento humano fundamenta a aversão aos idosos. Seguro para sinistros já existentes (no caso dos velhos, pessoas hipoteticamente doentes) contraria a lógica de imprevisibilidade dos riscos dos contratos de coisas. Logo, se as empresas empregadoras mantêm cobertura para seus trabalhadores aposentados muito que bem, caso contrário, o idoso, que tinha plano de saúde empresarial até a véspera de se aposentar terá que sobreviver sozinho.
De acordo com a legislação, aposentados podem continuar vinculados ao antigo plano desde que banquem despesas muito mais elevadas do que as anteriores. Segundo as regras vigentes o valor a ser pago depois da saída da empresa passa a ser calculado pela faixa etária. Essas regras compelem os idosos a arrumar um jeito de se aposentar, mas ser recontratado por empresas vinculadas ao ex-empregador, procurar um plano de saúde pior, se pendurar como dependente no esquema assistencial de um parente, ou ficar sem cobertura. Para quem se queixar? Da boca dos agentes do mercado ninguém ouviu que os planos privados de saúde seriam uma solução para os idosos. Mas se o envelhecimento é uma realidade e os planos não servem para velhos, a quem atendem e a quais interesses?
Para deter o descarte de idosos no Brasil que envelhece, é essencial superar teorias, com forte teor de eugenia, e sustar o repasse de recursos públicos à privatização da saúde. Alternativas de contagem regressiva, a exemplo do tempo proporcional aos anos trabalhados para permanecer no plano, portadoras de convites à antecipação da morte, opõem-se às necessidades de proteção social. As políticas sociais de alívio da pobreza, especialmente aquelas voltadas a propiciar melhores oportunidades de inserção no trabalho de crianças ampliam o consumo, mas o alargamento da distância entre ricos e pobres é um dos principais obstáculos ao aumento dos gastos públicos. As trincheiras para combater os velhos impedem a visão sobre o fato de o prolongamento da vida ser consequência e não causa de elevação de despesas públicas. Portanto, a indiferença acerca dos resultados de distribuição dos recursos para a saúde baseada nos valores do mercado segrega velhos.
As escolhas dos idosos remediados e pobres deixados ao sabor de um conjunto de políticas sociais que não abrangem o ciclo de vida são trágicas. Optar por pagar pela atenção à saúde ou manter o mesmo patamar de consumo e lazer é ultrajante. Em vez de mobilizar apenas políticas reativas voltadas a compensar condições do passado é preciso tentar mudar os determinantes das desigualdades e reconhecer que ao longo do ciclo da vida, cada fase influencia a subsequente. As experiências da primeira infância dependem da inserção social digna de adultos e idosos. Os políticos sabem que os velhos votam e não são insensíveis aos problemas de saúde e da saúde dos idosos. Contudo, os tradicionais critérios para compor coalizões para eleições de prefeitos e vereadores não excluem nem apoiadores de medidas de combate aos idosos nem integrantes de esquemas de corrupção de verbas da saúde. O ponto de conciliação de alianças que põem no mesmo saco fanáticos adeptos da privatização com defensores da construção de um sistema público de saúde é uma retórica radical de defesa dos direitos de cidadania e práticas de desperdício de oportunidades de vida.
A novidade nesse front é o questionamento da decretação de estado de alarme contra o sistema público e proteção aos velhos também pelos jovens. Os estudantes dos cursos de saúde do hospital universitário público Clementino Fraga Filho, localizado na Ilha do Governador no Rio de Janeiro, se organizaram para impedir a deterioração de suas instalações e ampliar a oferta de serviços de uma instituição dotada de um excelente quadro de profissionais. Os veteranos sabem que estão brigando pelos calouros e estes por alunos que ainda não ingressaram na universidade. A geração que lutou para abrir o hospital em 1978 não se sujeitou a um Estado de exceção, a atual recusa a destruição do sistema público de saúde.