O exame do Cremesp e o retrocesso na formação médica

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Por Paulo Navarro [Blog Saúde Brasil] – 11/11/2012

Neste domingo, o CREMESP irá aplicar, pela primeira vez de forma obrigatória, seu exame de proficiência em “saberes médicos”. Segundo dados do próprio Conselho, 2924 concluintes dos cursos de medicina se submeterão à prova, composta por 120 questões de múltipla escolha. Egressos da UNICAMP, da FAMEMA e de outras escolas prometem boicotar o exame.

A reação dos estudantes de medicina é legítima, e se baseia em uma linha de argumentação lógica: uma única prova de múltipla escolha não tem a capacidade de avaliar as capacidades clínicas de um profissional médico; e o exame, por avaliar apenas o aluno recém-formado, culpabiliza o mesmo por falhas na formação que, no mínimo, devem ser compartilhadas com as escolas médicas.

Alguns elementos precisam ser acrescentados a essa análise: vivemos um momento em que a falta de médicos, especialmente na rede SUS, alça a condição de problema prioritário. Não queremos entrar no mérito das estatísticas, mas qualquer usuário do SUS, em qualquer lugar do Brasil, sabe que o número de profissionais atualmente em serviço, seja na atenção básica, seja nas especialidades, é insuficiente para atender à demanda, gerando filas e desassistência.

A corporação médica tem respondido de maneira agressiva às iniciativas de trazer mais médicos para o SUS, seja condenando a validação de diplomas de médicos formados no exterior, seja combatendo programas de interiorização, seja lutando contra a ampliação de vagas nos cursos de medicina. Em muitos desses enfrentamentos, registre-se, o movimento estudantil de medicina tem sido parceiro da corporação.

E a corporação vem acumulando uma série de derrotas. Diante desse quadro, volta a investir na criação de um exame de ordem, aos moldes da OAB, com o intuito de regular a entrada de novos médicos no mercado de trabalho. Esse intuito, sabemos, é implícito. Esconde-se atrás de uma preocupação, legítima e reconhecida pela sociedade, com a qualidade dos médicos que se estão formando.

E apresenta seu “exame de ordem” como única ferramenta possível de impedir que a população seja assistida por profissionais de baixa qualidade, “esquecendo-se” que no Brasil, recentemente, um intenso e amplo trabalho de avaliação e reforma do ensino médico teve curso, através da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM), apontou diversas outras saídas.

Como relembra Benedictus Philadelpho de Siqueira, professor da UFMG e ex-presidente da Assossiação Brasileira de Ensino Médico – ABEM (CLIQUE AQUI para acessar o artigo em PDF), a CINAEM surgiu exatamente em reação a um movimento liderado pelo CREMESP e pela APM “que visava impedir o exercício profissional de médicos oriundos de escolas consideradas por eles de qualidade inferior”, através da adoção de um “exame de ordem” nos moldes da OAB. Isso foi no final dos anos 80 e início dos anos 90.

Desagregada, não por acaso, na fase de implantação das reformas curriculares, a CINAEM modificou os paradigmas da formação médica, trazendo para o centro do debate o perfil desejado do egresso, ou, dito de outra forma, fazendo as perguntas: de que médicos a sociedade brasileira precisa? Como podemos formá-los?

As conclusões da CINAEM, em grande medida expressas nas diretrizes curriculares para a graduação em medicina, versam sobre a necessidade de uma formação generalista, em que o médico recém-formado seja “competente para resolver com qualidade de 80 a 85% dos problemas de saúde/doença da comunidade onde fosse trabalhar, mantendo uma relação ética com o paciente, sua família, a comunidade e sua equipe de saúde” (Siqueira, 2006).

Além dos aspectos cognitivos, pretensamente avaliados no exame do Cremesp, um médico precisa de “habilidades psicomotoras, comportamento, atitudes éticas e compromisso social” (idem), que são absolutamente decisivos para uma boa assistência à saúde.

A nova tentativa de impor um exame de ordem não traz apenas a marca da regulação do mercado de trabalho médico, que é uma pauta meramente corporativa e avessa ao interesse público. Traz o risco do retrocesso na formação médica.

Um risco imenso de retrocesso em todo o esforço de transformação do ensino médico dado no Brasil nos últimos 20 anos. Se for necessário, para poder exercer a profissão, a aprovação em um exame dessa natureza, a corporação médica passa a ter sob seu inteiro controle a relação de conteúdos a serem ensinados nas escolas de medicina. A graduação em medicina corre o risco de se transformar em um grande cursinho para acertar as questões dessa prova, afastando-se da formação holística, humanista e cidadã que consta das atuais diretrizes curriculares. E os cursinhos de fato, que atualmente têm foco nas provas de residência médica, agradecem a preferência.

Para evitar que isso aconteça, é preciso que o exame desse domingo (11/11/2012), o primeiro realizado sob a égide da obrigatoriedade, não seja legitimado socialmente. E, para isso, a iniciativa e realização do boicote é absolutamente fundamental.

Parece claro que a estratégia é assustar a sociedade com a “demonstração” de que se estão formando péssimos médicos. Se os resultados dessa prova forem tidos como expressão da realidade, diante das baixíssimas notas que devem vir, semeia-se nas pessoas o medo de serem atendidas por tais profissionais, na busca de colher a legitimação da necessidade de fazer com que a aprovação no exame venha a se tornar um requisito obrigatório para o exercício profissional, abrindo caminho para a regulação corporativa do mercado e para o controle do conteúdo da formação médica.

Por fim, é preciso deixar claro que a questão da qualidade da formação precisa ser enfrentada. Ao nosso ver, não pela corporação médica, mas por um esforço interinstitucional que envolva o governo (ministérios da Saúde e da Educação), as escolas, os estudantes, a população e, também, as entidades médicas.

É preciso, portanto, retomar e ampliar o debate sobre a formação médica. Mas, concordando com o Prof. Benedictus Philadelpho de Siqueira, com a “humildade e disposição de continuar, em primeiro lugar, a serviço do cidadão brasileiro”.

Paulo Navarro de Moraes é médico sanitarista, diretor do Cebes e professor da Faculdade de Medicina da PUC Campinas.