Depois de Jango, falta exumar as reformas de base

Victor Leonardo de Araujo | Carta Maior

A exumação dos restos mortais do ex-presidente João Goulart é inequivocamente um avanço para que o Brasil seja passado a limpo. O País cumpriu, com três décadas de atraso, o dever de lhe prestar as honras de Estado negadas quando de sua morte e de apurar as reais condições em que ela ocorreu. Mas deve continuar a lhe prestar homenagem, exumando também as reformas de base, enterradas pela ditadura militar e jamais trazidas de volta para a agenda após a democratização.

A agenda de reformas de base previa uma reforma tributária. Ela foi realizada pelo governo militar, mas seu caráter foi concentrador de renda, porque manteve a estrutura regressiva do sistema tributário brasileiro, concentrado em impostos indiretos. A Constituição de 1988 não alterou a essência do sistema tributário brasileiro quanto a este quesito. Discutir reforma tributária é sempre um assunto árduo, porque significa discutir sobre quais ombros recairá o esforço de financiar o Estado. Na agenda atual, a reforma tributária permanece na agenda econômica, mas o debate tem sido capitaneado pelo empresariado, e por isso é pautado pelos temas concernentes à desoneração da produção, à busca por competitividade da produção nacional, e ao tamanho da carga tributária bruta. Como os grandes empresários que influenciam a agenda também são ricos, a agenda pautada por eles não toca nas questões distributivas, ou seja, às modificações que são necessárias para tornar progressivo o sistema tributário brasileiro. Renda, propriedade do capital e grandes fortunas são itens que estão fora da agenda de reforma tributária do empresariado brasileiro. O impostômetro que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo exibe na Avenida Paulista não informa ao transeunte que os industriais da Fiesp pagam relativamente menos imposto que o restante dos brasileiros.

Outro item das reformas de Jango era o sistema financeiro. Novamente, as reformas realizadas pelo governo militar tiveram um viés conservador: estimularam a concentração bancária, e facilitaram a diversificação dos padrões de consumo de uma classe média alta. Entretanto, deixou sem solução os problemas concernentes ao financiamento do setor produtivo, que continuou dependente do setor público, e ainda assim privilegiando as grandes empresas e as regiões mais ricas. Atualmente, o setor financeiro tem papel privilegiado no desenho da política macroeconômica, haja visto que o ônus dos ajustes fiscais sempre recaem sobre o aumento da arrecadação e/ou da redução das despesas ditas primárias, jamais com o significado de redução das despesas financeiras. O sistema financeiro permanece com pouca ou nenhuma funcionalidade para parte importante do setor produtivo, operando no curto prazo, a taxas elevadas (spreads), e tendo os títulos públicos ainda como opção preferencial de parte do sistema bancário.

Finalmente, o país não acertou as contas com a estrutura fundiária arcaica. Arcaica não no sentido econômico, porque o agronegócio introduziu técnicas avançadas de produção e gaba-se de ser responsável pela geração de superávits comerciais. Mas é arcaica porque ainda não foi capaz de assegurar, de forma generalizada, ao pequeno agricultor as condições de gerar excedentes comercializáveis. No Brasil, menos de 10% dos estabelecimentos agropecuários eram responsáveis pela geração de mais de 85% da produção bruta no ano de 2006 (veja nota). E, sobretudo, por não ter sido capaz de superar uma estrutura fundiária arcaica, continua a concentrar o poder político regional na figura dos velhos coroneis, como Sarney, Lobão e Calheiros, agora de forma na forma renovada de Kátia Abreu, Ronaldo Caiado entre tantos outros.

A demora em acertar contas com os problemas estruturais brasileiros agravou alguns deles, e assim um sexto item deve ser acrescentado à lista de reformas necessárias: a reforma urbana, para assegurar o direito à moradia nas grandes cidades e frear o mecanismo puramente mercadológico que orienta o acesso aos terrenos urbanos e que tem como resultado mais perverso o inchamento das grandes cidades, a marginalização de parte significativa das populações urbanas e o afastamento dos mais pobres das áreas centrais, cada vez mais caras e acessíveis somente aos mais ricos, transformando a mobilidade urbana em um problema cada vez mais grave.

Trazer essas reformas à ordem do dia seria a mais justa forma de dar prosseguimento às merecidas homenagens ao ex-presidente Jango.

Nota
Vieira Filho, J. E. R. & Santos, G. R. Heterogeneidade no setor agropecuário brasileiro: contraste tecnológico. Radar: tecnologia, produção e comércio exterior, nº 14. Brasília: Ipea.

* Victor Leonardo de Araujo é professor da Faculdade de Economia da UFF.