Atual conjuntura política e econômica, por Carlos Ocké
Nada será fácil para a esquerda
Por Carlos Ocké.
A indicação de Joaquim Levy não atendeu as expectativas de boa parte dos apoiadores e dos eleitores de Dilma, mas seria um erro apontá-lo como novo Czar da economia.
Considerando que se trata de um governo em disputa, o bloco histórico progressista deve construir os pressupostos econômicos, políticos e ideológicos para abrir um novo ciclo de desenvolvimento e para criar janelas de oportunidade no quadro das transformações que ocorrem no mundo.
Para unificar e para combinar as ações deste bloco no Estado e na sociedade, precisamos avançar nos planos teórico e estratégico em direção ao alargamento da democracia, à redução da desigualdade, à superação da dependência e à afirmação da ética pública, bem como precisamos enfrentar quatro grandes desafios no plano tático:
(i) derrotar o campo conservador e sua tentativa de derrubar Dilma com as denúncias seletivas da operação lava jato;
(ii) consolidar uma frente única política e eleitoral, ensaiada no segundo turno das eleições presidenciais, para lutar pela reforma política que vete o financiamento empresarial de campanha e pela democratização da mídia;
(iii) superar o tripé macroeconômico (meta de inflação, superávit primário e câmbio flutuante);
(iv) abrir um novo ciclo de desenvolvimento assentado no pré-sal, na industrialização, no dinamismo do mercado interno e externo, na universalização das políticas sociais e na sustentabilidade ambiental.
Seu objetivo central deve ser a melhoria da qualidade de vida material e cultural da juventude, dos trabalhadores e dos cidadãos brasileiros.
Primeira análise
O governo Dilma continua em disputa.
Com toda energia, devemos criar uma frente única política e eleitoral para construir pressupostos que permitam o governo abrir um novo ciclo de desenvolvimento.
O PT, os partidos do campo democrático, popular e socialista, os setores progressistas do PMDB, do PSB e do PROS, as centrais sindicais, os movimentos sociais e as universidades têm uma responsabilidade gigantesca na atual conjuntura histórica.
A frente tem a dupla tarefa de sustentar o governo contra a direita e de pressionar o governo para avançar à esquerda, mas as condições são muito piores do que há 12 anos.
Por exemplo, a diferença eleitoral em favor do PT nas eleições presidenciais caiu de 22% dos votos validos em 2002 para 3,3% em 2014 e as bancadas sindical e social perderam 50% de seus parlamentares.
Dilma precisa de apoio popular em torno da reforma política e da democratização da mídia para enfrentar as contradições da sociedade brasileira – a reforma agrária, a reforma urbana e a melhoria da mobilidade urbana estão na boca do povo –, mas esse congresso é o mais conservador desde a redemocratização.
Dada essa correlação de forças no Estado, ela precisa mediar na economia para garantir a governabilidade, mas isso não significa que ela adotou o programa econômico recessivo dos tucanos.
O novo ministro da fazenda sinalizou que a meta do superávit primário será de 1,2% do PIB em 2015, o menor dos últimos 17 anos. Ou seja, o ajuste fiscal será feito de forma gradual para preservar os avanços sociais dos últimos 12 anos.
Além do mais, com a desnacionalização da economia promovida pelo PSDB entre 1994 e 2002, as restrições internacionais passaram a constranger o espaço para as políticas redistributivas e para ampliação do mercado interno, tornando vital a defesa e a aprovação de medidas anticíclicas – como a flexibilização da meta do superávit em 2014 – para garantir o emprego, manter o salário e fomentar o investimento em infraestrutura.
Um ajuste fiscal moderado e a aprovação de pontos da reforma tributária serão insuficientes para atender as reivindicações da nossa base social, mas podem acelerar a retomada do crescimento e podem reativar a âncora salarial petista, caso não se perca de vista a redução do estoque da dívida pública e o alongamento de seus encargos financeiros para sedimentar o caminho da universalização das políticas sociais.
A construção de uma frente única política e eleitoral
Na atual conjuntura, devemos combinar uma tática defensiva no Estado (economia) com uma estratégia contraofensiva na sociedade (política, ideológica e organizativa).
Com apoio da mídia, os conservadores cresceram nas últimas eleições e produziram uma direita avessa ao jogo democrático. Ora a oposição assopra, pressionando Dilma para aplicar o programa dos tucanos, ora a oposição morde, na tentativa de derrubá-la e de desconstruir as conquistas do PT.
Nesse quadro, não há espaço para vacilos esquerdistas e voluntaristas, considerando uma correlação de forças desfavorável no Estado e as debilidades da esquerda, dos setores populares e do próprio projeto socialista na sociedade.
Podemos mudar esse quadro e fazer um governo reformista, mas Dilma, Lula e o PT reconhecem essa fragilidade no campo institucional.
Com base no programa disputado nas urnas, procuram fortalecer a aliança com o PMDB, refrear o centro e dividir a direita e a própria reforma ministerial levará em conta a necessidade de realizar um presidencialismo de coalizão pressionado e chantageado por um congresso conservador.
Do lado da frente, o pulo do gato é compreender que a capacidade de negar e de superar a tática defensiva no campo econômico dentro do Estado reside na sustentação e na pressão dos partidos, das burocracias, das centrais sindicais, dos movimentos sociais e dos estudantes alinhados ao campo democrático, popular e socialista.
Do lado do Estado, o problema é compreender que, a depender do tamanho do ajuste fiscal diante da pressão do capital financeiro nacional e internacional, a estratégia contraofensiva política, ideológica e organizativa dos setores progressistas pode se desmobilizar, minando sua governabilidade popular, bem como sua margem de manobra para criar um novo ciclo de desenvolvimento.
Sem hegemonismos, o PT tem a responsabilidade de fazer essa mediação e contribuir para elaboração de um “programa mínimo” à esquerda, liderando as negociações com o governo. O próprio partido deveria antecipar a realização do seu V Congresso e fazer um balanço da sua crise de hegemonia, em sentido democrático e socialista, para debater o “reformismo fraco” do lulismo e fazer uma autocrítica de seus erros nos últimos 12 anos. Se necessário deve promover mudanças substantivas em sua direção política e no tipo de construção e organização partidárias para combater o antipetismo no parlamento, na rua e na internet.
O momento é histórico e exige grandeza e unidade para atrair a base aliada à Marina Silva e os descontentes com o sistema de representação política do campo da esquerda. Para contrabalançar a correlação de forças, será decisiva a consolidação de uma frente única política e eleitoral progressista em torno da reforma política e da democratização da mídia, fortalecendo a capacidade política e ideológica do governo para abrir um novo ciclo de desenvolvimento.
Diferenças existem e devem ser demarcadas e respeitadas, sem sectarismo dentro da frente e em sua relação com o governo. Será um processo cheio de lutas, tensões e negociações, contudo o polo progressista tem a dupla tarefa de sustentar o governo contra a direita e de pressioná-lo no avanço à esquerda, apostando na organização, conscientização e mobilização da juventude, dos trabalhadores e dos cidadãos, ora mediando, ora avançando no curso da luta de classes e da disputa de hegemonia, dentro e fora do Estado.
Tripé macroeconômico superado: um novo ciclo de desenvolvimento
No campo socialista, somos críticos ao estalinismo e ao social-liberalismo – esse último apoiado na macroeconomia do “socialismo neoliberal” dos anos 80/90.
Diante da crise internacional, o recuo social-liberal na política econômica (Estado) não deve impedir que o bloco histórico progressista (sociedade) debata os erros e os acertos do neodesenvolvimentismo petista, bem como discuta a necessidade de superação do tripé macroeconômico (meta de inflação, superávit primário e câmbio flutuante) como pré-condição para o governo abrir um novo ciclo de desenvolvimento.
Dos 46 bancos centrais que estabeleceram metas de inflação, 30 estão abaixo da meta, preocupados agora com os efeitos devastadores da deflação na Europa. O consenso dos analistas, não necessariamente de esquerda, é que a zona do euro precisa reestruturar a dívida para ampliar os investimentos públicos, renegociando o principal e os períodos de carência, reescalonando os encargos financeiros e, se constatada irregularidades, anulando parcialmente a dívida.
No Brasil, aplicar um ajuste fiscal gradual para reduzir inflação a fim de baixar juros e tornar o câmbio competitivo deve, também, pressupor a redução e o alongamento do estoque da dívida pública no longo prazo. O próprio FHC, em entrevista concedida à revista Primeira Leitura, em julho 2004, defendia que o Brasil lidasse com a dívida interna de outra maneira.
Como nos ensinou Kalecki, sozinhos, dificilmente os capitalistas garantirão o pleno emprego no longo prazo. Hoje, sem dúvida a retomada do crescimento depende da ampliação do investimento privado e público, sendo decisiva a ação dos governos, bancos públicos e fundos de pensão institucionais, para permitir o reposicionamento da indústria nas cadeias globais do mercado externo e para reduzir o déficit da balança de pagamentos.
De qualquer forma, esse exame precisa ser aprofundado por todos os aliados do governo Dilma, pois a crítica ao tripé macroeconômico poderá ter desdobramentos teóricos e estratégicos significativos para criação de um novo ciclo de desenvolvimento assentado no pré-sal, na industrialização, no dinamismo do mercado interno e externo, na universalização das políticas sociais e na sustentabilidade ambiental.
Nesse sentido, uma opção seria atualizar e adaptar o modelo sueco de pleno emprego, considerado um paradigma para os críticos da experiência soviética (estalinista) e estadunidense (liberal); outra opção seria olhar para a própria experiência da esquerda latino-americana reformista e revolucionária.
Mas seja no modelo keynesiano, seja no modelo de capitalismo de Estado, uma vez fortalecido o padrão de financiamento público, o aprofundamento da âncora salarial petista (carteira assinada, renda e crédito no mercado interno) e os direitos sociais serão duas pedras fundamentais para arquitetura desse novo ciclo de desenvolvimento.
Em particular, a universalização das políticas sociais tem uma dimensão civilizatória extraordinária ao construir uma ética pública e solidária na sociedade; desprivatizar o Estado, democratizando o acesso ao fundo público; atacar a pobreza, a desigualdade, os baixos níveis educacionais e culturais e a violência social nas metrópoles; produzir renda, produto, emprego e inovação tecnológica; aumentar a produtividade da força de trabalho e reduzir o índice de inflação do setor de serviços.
Sinônimo de democracia e de uma “economia de mercado socialmente regulada” (termo cunhado pela socialdemocracia alemã antes da ascensão do nazismo), esse ciclo possibilitará expandir nossa soberania na globalização, visando à melhoria da qualidade de vida material e cultural da juventude, dos trabalhadores e dos cidadãos brasileiros.
Nada será fácil para a esquerda, acostumada às suas divisões e aos seus idealismos. A vitória de Dilma foi uma vitória contra o retrocesso, saudada em toda América Latina. Se quisermos avançar, unidade é a palavra-chave para superar a tática defensiva no Estado (economia) e para avançar a estratégia contraofensiva na sociedade (política, ideológica e organizativa), fortalecendo o governo em sua promessa de continuar mudando mais e melhor a vida dos brasileiros.
Carlos Ocké é Economista e membro do conselho consultivo do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes).