O direito à saúde
Por Moacyr Scliar*
Bota coincidência nisso: o 5 de outubro, dia de eleições, que, bem ou mal, são uma manifestação de democracia, assinalou também os 20 anos da Constituição de 1988, a Constituição Cidadã. O documento encerrou o período autoritário iniciado em 1964 e procurou diminuir um pouco os efeitos da tremenda desigualdade social no Brasil, como se constata na seção que aborda a saúde. Nela figura o famoso Artigo 196, desde então citado incontáveis vezes, em eventos de saúde pública, em pronunciamentos políticos e também em processos judiciais contra o poder público.
O Artigo 196 começa com exatamente 10 palavras que, guardadas as proporções, equivalem ao “Independência ou morte” ou ao “Liberdade ainda que tardia”. São elas: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Um pronunciamento absolutamente fundamental, que afirma um direito inerente à própria condição humana, e segue dizendo que para garantir esse direito o primeiro responsável é o Estado.
Até aí, tudo bem. O problema é que saúde não se faz só com palavras ou com boas intenções. Saúde se faz com saneamento, com vacinas, com alimentos, com medicamentos, com exames, com procedimentos, e tudo isso custa dinheiro e às vezes muito dinheiro, cada vez mais dinheiro. Os constituintes, que não eram ingênuos, pensaram nisso e deram continuidade à frase. O direito à saúde, diz o mesmo Artigo 196, deve ser “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços”.
Compreensivelmente – porque representa um apelo à realidade – esta segunda parte quase nunca é citada, o que causa graves distorções. Exemplo: a questão dos medicamentos especiais, que volta e meia aparece na mídia associada a vigarices. Quadrilhas organizam-se para, apoiadas no “direito de todos e no dever do Estado”, forçar o poder público a comprar medicamentos, o que na verdade vai proporcionar ganhos ilícitos a muita gente. E isso é um desastre. Porque medicamentos são realmente necessários e existem pessoas que podem morrer sem eles. O que faltou, então? Faltou o que está mencionado na continuação da frase: políticas de saúde. Política, no seu melhor sentido, significa estabelecer prioridades, dizer o que é mais importante, o que deve ser feito primeiro para salvar vidas. Em função do Artigo 196, surgiu o SUS – Sistema Único de Saúde, objeto constante de críticas, que aliás são procedentes: o SUS é, ao fim e ao cabo, o serviço de saúde de um país pobre e mal organizado, e essas limitações se manifestam nas suas falhas e distorções.
Vinte anos depois, estamos ainda no processo de correção das falhas e distorções. Não importa: essas coisas são mesmo lentas e dolorosas. O que importa é que avançamos, e o SUS, com todos os seus problemas, é prova disso. Ruim com o SUS? Pior, mas muito pior, sem ele. O Artigo 196 não é o paraíso sobre a terra. Mas é o melhor que, como seres humanos e brasileiros, pudemos fazer.
(*) Moacyr Scliar é médico e escritor. Artigo publicado do jornal Zero Hora, na edição de 08/10/08.