Saúde, pobreza e desigualdade
Por Octávio Luiz Motta Ferraz*
Estamos comemorando os 20 anos do direito constitucional à saúde e do SUS (Sistema Único de Saúde), criado para implementá-lo, mas ainda não há consenso sobre o exato conteúdo desse direito. A julgar pelos milhares de ações que tramitam no Judiciário de todo o país, o mundo jurídico enxerga o direito à saúde pelo prisma restrito do tratamento médico, em especial do fornecimento de medicamentos.
Os especialistas em saúde pública reiteradamente demonstram, porém, que a assistência médica é apenas um entre vários fatores determinantes da saúde da população -e nem sempre o mais importante. Fatores socioeconômicos, como renda, educação, qualidade de moradia e ambiente de trabalho, os chamados determinantes sociais da saúde, são tão ou mais importantes que a assistência médica, como confirma o importante relatório da Organização Mundial da Saúde que acaba de ser publicado (“Closing the Gap in a Generation: Health Equity through Action on the Social Determinants of Health”, de 28/8).
O relatório da Comissão sobre os Determinantes Sociais da Saúde, presidida pelo renomado sanitarista britânico sir Michael Marmot, confirma e esclarece, com riqueza de dados, várias conexões intuitivas entre determinantes sociais e saúde, mas também refuta relações de causalidade que antes pareciam evidentes.
Não surpreende, por exemplo, que a pobreza e as privações que ela implica em termos de nutrição, educação, moradia e falta de cuidados médicos tenha um impacto direto e significativo na saúde das pessoas.
Assim, uma menina nascida no Lesoto, na África, viverá em média 42 anos a menos que uma nascida no Japão. Na Suécia, as chances de uma mulher morrer durante a gravidez ou parto é de 1 em 17.400; no Afeganistão, de 1 em 8. A taxa de mortalidade infantil de crianças cujas mães têm educação secundária ou superior no Brasil é em média três vezes menor do que a de crianças cujas mães têm menos de três anos de estudos.
O que talvez surpreenda muitos é que, a partir de um determinado nível (por volta de US$ 5.000 per capita), a renda em si deixa de ter impacto significativo na saúde da população. É isso o que explica, por exemplo, o fato de o país mais rico do mundo, os EUA, ocupar apenas a 44ª posição no ranking mundial de expectativa de vida e de outros países relativamente mais pobres, como a Costa Rica, apresentarem expectativa de vida similar a dos países mais ricos.
Acima daquele patamar de renda, são as desigualdades sociais que têm impacto relevante. Em países mais igualitários, com políticas de proteção social mais amplas e universalistas, a saúde da população é melhor -e vice-versa.
Trazer à luz essas conexões, que se repetem em todos os países, importa por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, porque revelam que as enormes desigualdades em saúde existentes entre (e dentro de) países é fruto de injustiça social. Como posto de uma maneira chocante, porém verdadeira, pelos autores do relatório, “a injustiça social está matando em grande escala”.
Em segundo lugar, porque indicam o caminho a ser seguido no combate a essa inaceitável situação. São necessárias políticas públicas que enfrentem os determinantes sociais da saúde como um todo, isto é, que vão além da assistência médica, na qual geralmente se coloca ênfase desproporcional nos países em desenvolvimento.
Nesse ponto, o Brasil apresenta um histórico ambíguo. Ao mesmo tempo em que estamos implementando medidas como o Programa de Saúde da Família, citado no relatório da OMS como exemplo positivo de política pública que enfrenta os determinantes sociais da saúde, apresentamos um déficit de investimento em saneamento básico incompatível com nosso nível de desenvolvimento econômico (quase 30% da população brasileira não tem acesso a serviço de esgoto).
Como o esgoto é um dos determinantes sociais importantes da saúde em geral e, particularmente, da mortalidade infantil, não surpreende que nossa taxa (19 por 1.000 nascidos vivos) seja muito superior à verificada na Argentina (14/1.000) e na Costa Rica (11/1.000), países com PIB per capita similares ao nosso, mas cujo acesso da população à rede de esgoto é quase universal.
A discussão sobre o exato conteúdo do direito à saúde vai continuar, sem dúvida. Fica cada vez mais claro, porém, que o foco desse importante debate deve ser ampliado para incluir os chamados determinantes sociais da saúde, como a pobreza e, sobretudo em nosso país, a desigualdade.
(*) Octávio Luiz Motta Ferraz é professor de direito na Universidade de Warwick (Reino Unido) e ex-assessor sênior de pesquisa do relator especial da ONU para o direito à saúde (2006). Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, na edição do dia 09/10/08.