Desafio hoje na luta contra a AIDS é superar a resignação ante as leis do mercado

Por Mário Scheffer*

Vinte e cinco anos após a descoberta do HIV, o Prêmio Nobel de Medicina de 2008 nos permite resgatar a história da AIDS para além da homenagem tardia a Luc Montagnier e Françoise Barré-Sinoussi. É verdade que existe um gosto de revanche na consagração definitiva da proeminência dos franceses sobre o americano Robert Gallo, que, na longa querela sobre a autoria do isolamento do vírus, tanto abusou da glória compartilhada.

Por mérito, a prestigiosa distinção devia ser estendida aos sanitaristas e epidemiologistas que, bem antes da identificação do vírus nos laboratórios, descobriram o modo de transmissão, as populações expostas ao risco de infecção, estabeleceram o provável agente e desenharam as primeiras estratégias de prevenção.

Também os ativistas e as ONGs de luta contra a AIDS bem que mereciam receber o Nobel, pois inauguraram um modelo de participação ativa dos pacientes na gestão da própria doença e suscitaram uma mobilização comunitária sem precedentes. Articularam a convicção de que a população afetada não pode ser descartada das decisões que lhe dizem respeito. Foram influentes e imprimiram novas relações entre investigadores, clínicos, gestores e usuários de serviços de saúde. Passaram a exercer o controle social sobre o conteúdo e os processos da produção científica.

O que mais importa aqui é reconhecer a concepção democrática da responsabilidade da ciência e a dimensão política de certas escolhas científicas compartilhadas com a sociedade. O momento em que a ciência ouve o grito da urgência humanitária é quando surgem respostas excepcionais.

Das grandes questões da saúde mundial, a epidemia de AIDS revelou como uma única doença e suas conseqüências puderam suscitar, em tão curto espaço de tempo, formidáveis avanços científicos.

Desde as primeiras notificações, em 1981, de casos de uma enfermidade rara, que atingia homossexuais, a um dos mais graves problemas de Saúde Pública da atualidade – em 2007 a estimativa do Programa das Nações Unidas de combate à AIDS era de que 33,2 milhões de pessoas viviam com HIV no mundo -, registraram-se progressos significativos, sobretudo nas áreas de diagnóstico e terapêutica, guiados pela demanda de uma epidemia que não pára de crescer.

Na falta de opções de tratamento, ante a gravidade e a alta letalidade da doença, que atingia também os países ricos, os anos de 1980 foram caracterizados pela urgência no desenvolvimento de drogas anti-HIV. Auxiliada por grandes investimentos em pesquisa básica, a resposta das empresas farmacêuticas multinacionais foi bastante rápida se comparada à dada a outras doenças.

Desde a descoberta do HIV cientistas mapearam quase tudo sobre seu ciclo de vida e sua diversidade. Foi daí que surgiram os medicamentos ANTI-RETROVIRAIS com o poder de inibir a replicação viral, recuperar o sistema imunológico das pessoas infectadas e reduzir a ocorrência de infecções oportunistas e outras morbidades.

No início da década de 1990, a monoterapia com o AZT e, em seguida, a combinação de dois medicamentos, ofereciam aos pacientes benefícios modestos e efêmeros durante a evolução da doença. A terapêutica da AIDS só progrediu indiscutivelmente após a introdução, em 1995, da highly active ANTIRETROVIRAL therapy (Haart), que passou a contar com os medicamentos inibidores da protease, tornando mais potentes e eficazes as combinações de três a quatro drogas, também conhecidas como “coquetéis”.

O aumento da sobrevida e da qualidade de vida das pessoas infectadas pelo HIV, assim como a economia de recursos para os cofres públicos, são os impactos mais evidentes de programas que, como o brasileiro, incorporaram os ANTI-RETROVIRAIS em larga escala.

Entre os portadores do HIV em tratamento viu-se uma expansão da população multirresistente, ou seja, pacientes já tratados com vários ARVs que desenvolvem resistência a eles.

Como conseqüência, cientistas passaram a buscar classes de drogas com outros mecanismos de ação além dos existentes, produtos com resposta viral mais duradoura, menor toxicidade. O cenário leva a uma busca incessante por novos fármacos mais eficazes, mais fáceis de usar e com menos efeitos colaterais que seus antecessores.

São cada vez menores as incertezas no desenvolvimento desses medicamentos, graças à existência de alvos do HIV bem caracterizados (protease, transcriptase reversa, integrase, etc.) e boas previsões de eficácia clínica.

No futuro, as vacinas terapêuticas, as drogas imunomoduladoras – que fortalecem o sistema imunológico – e aquelas baseadas em engenharia genética despontam como possibilidades de abordagens totalmente diferentes e, talvez, possam postergar a necessidade de iniciar a terapia, até mesmo permitir interrupções de tratamento ou consolidar de vez o caráter crônico e o controle da AIDS.

Todo esse avanço no terreno da AIDS guarda tensões relacionadas à disponibilidade dos medicamentos no mundo, já que são produtos comerciais desenvolvidos por empresas farmacêuticas que operam num mercado de grande competitividade, no qual a produção científica de hoje é o lucro de amanhã.

Nesse caso, a marcha do progresso científico se converteu em acesso apenas para uma, em cada dez pessoas infectadas pelo HIV no mundo. Barreiras econômicas e mecanismos de decisões dos sistemas de saúde repercutem na velocidade da incorporação dos medicamentos, quase nunca concatenada à emergência de saúde pública.

O desafio está posto e consiste em superar a resignação da ciência face às leis do mercado, em enxergar um horizonte moral mais amplo, em fixar novas práticas em função das necessidades de saúde e de vida digna dos povos, em promover o acesso ao desenvolvimento científico a patamares civilizatórios mais elevados.

(*) Mário Scheffer é membro do Grupo Pela Vidda/SP  e pós-doutorando do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, na edição do dia 12/10/08.