Procura-se um líder
Por César Benjamin*
Mais de 2 trilhões de dólares de dinheiro público já foram despejados em socorro a bancos e instituições assemelhadas, e outros trilhões ainda serão necessários. Atônitas, as sociedades pagarão. Mesmo assim, ficarão expostas a uma recessão global prolongada ou uma depressão profunda. Questões relativas a desenvolvimento, justiça social e bem-estar desapareceram do horizonte. Vinte anos de um falso consenso conservador resultaram nisso.
Não se sabe quando a fase aguda da crise será contornada, nem a que preço. Mesmo que haja momentos de calmaria aparente, ainda teremos muitos episódios agudos, pois a massa de recursos fictícios que perambulam pelo mundo é dezenas de vezes maior do que o produto real. Além disso, a crise colocou em xeque o principal mecanismo de sustentação da demanda mundial, o endividamento dos norte-americanos.
Nos últimos anos, avanços tecnológicos, alterações institucionais e a absorção de grandes contingentes de população laboriosa e barata na Ásia achataram os rendimentos do trabalho nos países desenvolvidos, ao mesmo tempo em que os gastos públicos se reduziam. Para manter aquecida a demanda, os Estados Unidos ampliaram as facilidades de crédito. As duas curvas, a da renda e a do crédito, não podem se dissociar indefinidamente. Com o esgotamento desse ciclo, não se vê por onde a demanda será retomada. Sem ela, não haverá crescimento, mesmo com maciças injeções de recursos nos sistemas financeiros.
O Brasil pagará alto preço por ter subordinado sua economia ao grande cassino. O passivo externo líquido é gigantesco, as contas externas já estavam em trajetória ruim, o núcleo endógeno da nossa economia foi enfraquecido desde a década de 1990 e as portas nunca estiveram tão abertas à fuga de capitais. Perdemos muitos graus de liberdade na definição da política econômica. As reservas que acumulamos são inseguras, pois não têm origem em saldos na conta corrente. E a posição das grandes empresas brasileiras é incerta, pois as políticas do Banco Central as estimularam a especular pesadamente com o dólar. Ainda não sabemos quantas foram pegas no contrapé.
Quando a demanda cai, as empresas investem menos. A demanda cai ainda mais, pois o investimento é um componente decisivo da própria demanda, e o processo se realimenta. Nesses contextos, as economias precisam contar com um agente capaz de realizar e coordenar investimentos que contrariem a espiral recessiva. Nenhuma empresa privada pode desempenhar esse papel, sob pena de, simplesmente, falir. Só os Estados podem fazê-lo. Daí a importância de uma reação ativa à crise internacional. Foi o que fizemos na seqüência do colapso de 1929.
A questão é saber se o Estado brasileiro mantém capacidade para reagir e se terá vontade de acioná-la coerentemente. Forças de natureza supranacional, alojadas principalmente no Banco Central, controlam a nossa política econômica. E forças de natureza subnacional, representadas no Legislativo, apoderam-se de nacos do Estado, em troca de garantir a governabilidade no curto prazo.
Esse arranjo perverso do sistema político mantém o Brasil na condição de plataforma de valorização do capital financeiro e exportador de recursos naturais. Na época da bonança, o presidente Lula conseguiu compatibilizar essa condição com suspiros de crescimento e algumas políticas distributivas. Nos próximos dois anos, isso se tornará mais difícil. No lugar de um acomodador de interesses, o Brasil precisará de um líder.
(*) César Benjamin é editor da Editora Contraponto, doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela) e autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006). Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, na edição do dia 18/10/08.