A epidemia dos partos cirúrgicos
Por Gilberto Dupas*
Nos últimos meses, a comunidade médica dos obstetras agitou-se em razão das medidas tomadas pela Associação Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) procurando incentivar as mães a optarem pelo parto normal. Corporativismo e onipotência à parte, estamos cansados de saber que a aliança entre interesses financeiros dos hospitais, conforto dos médicos e comodismo ou receio mal esclarecido das mães têm feito dos partos cirúrgicos, com seus riscos de intervenção de grande porte, uma verdadeira epidemia no Brasil.
É interessante lembrar que a hospitalização para o parto foi fato histórico-social traumático e prepotente. Ainda antes da anestesia e das técnicas mais elementares de assepsia – quando a internação tentou ser imposta como norma, rompendo uma tradição de milênios de partos feitos em casa e assistidos por mulheres experientes – as gestantes tiveram de ser “forçadas” à internação hospitalar e reagiram duramente.
A razão principal era a “percepção” de violência e perda de intimidade. Mas havia outra razão importante: a propagação das infecções produzidas pelos médicos ao manipularem as mulheres “em série” nos hospitais, sem que sequer lavassem as mãos, o que aumentava em muito o índice de mortalidade nos partos. Na verdade, ao se liberar de maneira radical das crenças metafísicas, a medicina contemporânea operou uma verdadeira má revolução ética e uma ruptura do seu compromisso de estar a serviço do doente, e não da doença. Separando o doente – subjetivado na relação consigo mesmo e com seu médico – do combate à doença, o discurso médico não é mais capaz de levar em conta na sua prática o drama imaginário, a determinação simbólica e o aspecto ético do sofrimento na relação medicina-doença. O médico não pergunta mais “como você está se sentindo”, mas “passe-me seus exames”. E são muitos, e muito caros, os exames. O sofrimento fica restrito à doença e a dor, à neurofisiologia.
Para essa medicina tecnocientífica, o doente não é mais que o porta-voz dos sinais da sua doença através dos seus sintomas. Um exemplo importante são os procedimentos ligados ao nascimento de uma criança. A medicina transformou-o de uma função fisiológica – para a qual o organismo da mulher esteve desde sempre preparado – num evento fundamentalmente cirúrgico-hospitalar. Como lembra Vera Iaconelli, o corpo humano passa a ser considerado incapaz e necessitado de “constantes correções de seus desvios biológicos”. Todo aparato hospitalar, diretamente ligado à história da industrialização e do capitalismo, vem sendo criticado há décadas e, no entanto, encontra incríveis resistências para ser modificado. Proliferam hospitais modernos e equipamentos sofisticados, mas o “médico da família” desaparece.
No Brasil, quase 80% dos partos no serviço privado são feitos por cesariana, quando a Organização Mundial da Saúde a recomenda em apenas 10% a 15% dos casos. A redução desse índice tem encontrado enormes resistências, a principal delas é o aparato médico-hospitalar e seus interesses econômicos e de conforto. Na rede pública brasileira, esses índices caíram quando o reembolso do parto cirúrgico passou a ser reduzido em relação ao normal. Maternidade é vista como fábrica; parturiente, como máquina; e bebê, como produto. O parto, transformado em evento cirúrgico, vê na mulher meramente um recipiente a ser esvaziado. A ênfase na rapidez e no controle – que predominam nos partos – atrapalha os pais em se apoderarem de seu novo papel, levando-os a duvidar de sua capacidade futura de cuidar dos seus filhos. Vera Iaconelli lembra que o atendimento à gestante é um dos “exemplos mais notáveis da forma pela qual se lida com as questões da subjetividade, pois o espaço das elaborações do vivido mostra-se subtraído e evitado”, imprimindo ao parto – início de uma nova vida – a marca registrada tecnológica contemporânea de lidar com o corpo, com a sexualidade e com a morte: banalização ou ocultamento.
Curioso notar que, quando as maternidades de hospitais de luxo querem “modernizar” seu atendimento de parto, introduzem pequenas concessões, como permitir ao bebês ficarem no quarto com a mãe ou serem colocados sobre seu colo, por alguns instantes, ainda na sala de parto. Só muito recentemente as normas hospitalares reconheceram as óbvias advertências de que crianças saram mais depressa em ambiente hospitalar quando a mãe pode ficar com elas nas internações, ou quando têm acesso a salas com jogos e pequenas diversões eventuais, como os chamados “médicos da alegria”. Décadas de lutas se passaram para que os lobbies dos grandes fabricantes mundiais de leite em pó fossem parcialmente vencidos e médicos mais responsáveis voltassem a insistir no papel essencial do aleitamento materno exclusivo, para a saúde do bebê. Na realidade, são todos resquícios de um saber milenar que a medicina moderna havia rejeitado.
Enquanto isso, hospitais de periferia carentes de recursos substituem com enorme vantagem as caríssimas, invasivas e “frias” incubadoras pelos hábitos consagrados das “mães-canguru”. Ou seja, arrogância e intolerância sempre embalaram as importantes e evidentes conquistas da medicina contemporânea.
Donald Woods Winnicott, famoso pediatra e psicanalista, já dizia sobre o parto que médicos são muito necessários quando algo dá errado. Mas “não são especialistas nas questões relativas à intimidade, vitais tanto para a mãe quanto para o bebê”, que precisam apenas de “recursos ambientais que estimulem a confiança da mãe em si própria”. É o oposto do que faz, infelizmente, o aparato médico-cirúrgico contemporâneo.
(*) Gilberto Dupas é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional (IRI-USP) e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI). Artigo publicado no site do Conasems, no dia 22/10/08.