Um pediatra, 1.463 crianças

Pesquisa inédita do Conselho Federal de Medicina confirma gravidade do problema de falta de médicos no atendimento infantil em Minas. Situação é mais crítica no interior do estado

A pouca valorização profissional e a falta de retorno aos hospitais reduzem, ou até extinguem, o atendimento pediátrico em Minas Gerais. O maior prejudicado, porém, não entende nem tem culpa alguma: a criança. Na portaria do Hospital das Clínicas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leandro, de 10 anos, esperava na sexta-feira o carro que o levaria ao rotineiro caminho entre a capital e sua casa, em Nova Serrana, no Centro-Oeste. O choro não é por ter pedido a visão de um olho e por não ter conseguido ainda um transplante de córnea, mas por ter perdido o dia de aula.

A mãe adotiva, Luzia Vasconcelos Menezes, explica que o problema de Leandro veio antes dos 4 anos. “Ele não teve um acompanhamento pediátrico, que poderia ter percebido a alta pressão do olho. Quando resolvemos pagar uma consulta particular, já não tinha volta. Era certo que tinha perdido a vista. A gente sofre junto demais da conta”, lamenta. Segundo ela, as idas e vindas continuam, com pouca esperança, mas sem desanimar, até que ele consiga o transplante. “Rezo todos os dias para isso, embora saiba que as chances são pequenas.”

Minas tem um pediatra para cada 1.463 crianças, levando em consideração os 3.003 especialistas registrados no Conselho Federal de Medicina (CFM) e a população de 4,4 milhões de habitantes de até14 anos, de acordo com o Censo 2010 do IBGE. “O idoso de amanhã é o jovem de hoje e merece ser pensado e cuidado desde já. Obesidade, hipertensão, diabetes são exemplos claros de patologias onde a intervenção precoce garante maior sobrevida associada à qualidade de vida”, destacou Fernando Luiz Mendonça, secretário-geral da Sociedade Mineira de Pediatria (SMP).

Ele aponta reflexos desse cenário considerado preocupante: estudantes não optam pela pediatria, aqueles formados e experientes mudam de especialidade, vários hospitais e unidades pediátricas fecham suas portas, escalas estão incompletas, usuários reclamam e o déficit financeiro para quem ousa perseverar no atendimento às crianças é certo. “A medicina vive um momento histórico em que saber ouvir e examinar um paciente, resolvendo o problema do cliente por meio de uma consulta, não reflete retorno social financeiro digno”, disse Mendonça.

Para Hermann von Tiesenhausen, conselheiro que representa Minas no CFM, o problema maior não é a falta de pediatras, mas o desinteresse deles em ocupar as vagas oferecidas pelos hospitais. A “Demografia médica no Brasil”, recente pesquisa divulgada pelo conselho, mostra que o interesse dos médicos, englobando todas as especialidades, está especialmente nas capitais. E, em Minas, pela sua dimensão territorial, a desigualdade assusta mais. A cada 1 mil habitantes há 2,58 médicos em São Paulo (4,33 na capital), ao passo que Minas tem 1,97 (6,28 na capital). “A cada três médicos em Belo Horizonte há só um no interior do estado”, afirma.

Também há desigualdade entre o atendimento público e privado. “São 43 mil postos de trabalho médicos do sistema privado em Minas e 31 mil no público. Mas a população mineira é de cerca de 14 milhões de habitantes e somente 4,8 milhões têm plano de saúde. É desproporcional”, compara Tiesenhausen.

PEREGRINAÇÃO Ranea Aparecida de Oliveira saiu às 2h do dia 12 de Coqueiral, no Sul de Minas, para a filha Emanuelly, de cinco meses, ser atendida no Hospital das Clínicas da UFMG. “Na minha cidade tem uma pediatra que faz atendimento uma vez por semana. Por isso, não tinha como acompanhar a doença da Manu. A prefeitura me trouxe para cá, onde ficarei até o dia 21, quando sairá um último exame”, conta a mãe. Enquanto a pequena tenta se recuperar de um grave anemia, ficará hospedada na casa de uma tia em Contagem, na Grande BH.

Nem o teste do pezinho Cristiane Aparecida Marcelino conseguiu para a sua filha Ana Lara, de quatro meses, em São João del-Rei, no Campo das Vertentes. “Na maternidade de lá não tinha pediatra. Daí, me mandaram para cá”, reclamou. Ana Maria Nascimento também se queixa de ter de sair de Morro da Garça rumo a BH e não a uma cidade-polo mais próxima, como Curvelo, para exames não tão complexos. Ela trouxe a filha Flávia, de 8 anos, para fazer os exames respiratórios antes que a única pediatra da cidade entre de férias. “Durante o Natal e o réveillon e em janeiro ficamos sem pediatra lá”, lamenta.
Para o coordenador da pesquisa do CFM, Mário Scheffer, há emprego, mas falta pediatra. “O problema do Brasil não é a escassez de médicos, mas a desigualdade geográfica e as condições oferecidas, especialmente aos pediatras.

Há especialistas, muitos deles jovens, que preferem a capital e, ainda assim, não aceitam baixa remuneração”, avaliou. Ele lembra que o último relatório da Organização Mundial da saúde (OMS) sobre a escassez de mão de obra médica mundial não coloca o Brasil entre os países que sofrerão com a falta de médicos até 2015. Mas o país também não serve de exemplo para o mundo. Pelo contrário. O levantamento também revela que enquanto a relação é de 1,95 médicos para cada 1 mil habitantes no Brasil, é, por exemplo, de 6,39 em Cuba, 6,04 na Grécia, 4,77 na Rússia, 3,76 em Portugal, 3,43 na Dinamarca, 3,16 na Argentina e 2,67 nos Estados Unidos.