“Não será fácil recolocar o aborto na agenda política”, diz Télia Negrão
Vivian Virissimo
O Sul21 conversou com a jornalista Télia Negrão, da Rede Feminista de Saúde, sobre um dos temas tabu da sociedade brasileira: a legalização do aborto. O assunto é tão polêmico que até mesmo as feministas têm dificuldade de fechar um consenso a respeito. Na 3ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres, ocorrida na última semana em Brasília, uma proposta pedindo a legalização do aborto quase não foi incluída no documento final do encontro. Enquanto umas defendiam apenas a descriminalização da prática, outras pediam a legalização do aborto. Depois de duas plenárias para definir este ponto, a legalização do aborto, mais uma vez, consta entre as principais deliberações da Conferência.
Não é de se estranhar o receio até das mulheres feministas de tratar do assunto. Basta lembrar o comportamento da sociedade brasileira quando o assunto pautou a agenda política na última campanha presidencial. Télia Negrão classificou a abordagem do tema em 2010 como desastrosa. “O aborto é refutado pelos políticos, eles evitam falar nesse assunto durante todo o tempo e esse tema é sempre trazido às campanhas eleitorais como forma de localizar os políticos dentro do espectro moral da sociedade.”
Télia projetou um quadro de estagnação no avanço de políticas públicas relacionadas à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Na sua visão, a saúde de qualidade para as mulheres segue sendo negligenciada nas três esferas do poder.
Para embasar sua análise, ela destacou que o STF está há sete anos analisando o aborto em caso de anencefalia do feto. Além disso o Legislativo vem propondo projetos de lei que apresentam retrocesso para a agenda das mulheres, como é o caso da Bolsa Estupro, que visa conceder ajuda financeira governamental para impedir o aborto em caso de violência sexual – este tipo de aborto e a possibilidade de morte para a gestante são as únicas hipóteses em que a prática é autorizada no Brasil. “É de uma criatividade imensurável dos nossos deputados contra as mulheres. E não há meia dúzia de deputados com vergonha na cara, dignidade e coragem para defender o direito das mulheres”, critica.
“A própria decisão de ter filhos passa por situações em que as mulheres têm que ter garantido toda uma atenção a sua saúde durante a gestação”
Sul21 – A Rede Feminista de Saúde é uma entidade que milita pela defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres há vinte anos. Por que a entidade defende a legalização do aborto? Por quais motivos?
Télia Negrão – Ao longo da trajetória da Rede, a gente se baseia em primeiro lugar na ideia de que as mulheres têm direito de decidir pela sua vida. O momento, de que forma e com quem querem ter filhos. O que nós chamamos de direito reprodutivo está vinculado à efetivação de políticas públicas e implica em duas questões, ter ou não ter filhos. Não é só um lado, também se defende o direito das mulheres que querem ter e não podem por razões de saúde, por falta de acesso ao sistema ou por condições pessoais. E tem o outro lado, as mulheres que engravidam e que não querem ter filhos, seja porque ela tem baixa informação sobre seu corpo, sexualidade ou aparelho reprodutivo, seja porque utiliza anticoncepcionais que falham ou não são adequados ou ela tem uma relação sexual sem a proteção – que não é responsabilidade só delas, também é dos homens. Ai entra a questão do direito de decidir.
Sul21 – E esse direito de decidir passa por quais questões?
Télia Negrão – Eu posso decidir o momento de ter ou não ter filhos se eu tiver acesso à informação sobre meu corpo, métodos de planejamento familiar, condições de maturidade desenvolvidas pelas condições de vida que eu tenho que me possibilitam a tomada de decisões autônomas, se eu tenho acesso à saúde que me permite ter uma sexualidade saudável e planejar os momentos da minha vida, se eu tenho condições de efetivamente decidir sobre o aborto, sobre ter ou não ter filhos. Porque a própria decisão de ter filhos passa por situações em que as mulheres têm que ter garantido toda uma atenção a sua saúde durante a gestação, o parto, o puerpério. Nós temos altíssimos níveis de mortalidade materna no Brasil em razão da má qualidade da atenção que as mulheres recebem no Sistema Único de Saúde.
Sul21 – Uma prova disso é que a curetagem é uma das cirurgias mais praticadas no SUS.
Télia Negrão – A curetagem é feita no caso das mulheres que entram em situação de abortamento nos hospitais. Aí nós temos um número que vem diminuindo. Já tivemos 350 mil casos de internação por ano no Brasil para procedimentos de aborto iniciado. O Ministério da Saúde vem fazendo esse controle há dez anos. Hoje nós estamos numa média de 210, 220 mil ao ano. É a segunda causa de internação pelo SUS, depois do parto. E porque vem diminuindo esse número? Não é porque as mulheres estão deixando de abortar ou de provocar o aborto. É que as mulheres estão utilizando métodos um pouco mais seguros.
Sul21 – O que mudou nesses dez anos?
Télia Negrão – Ao invés das mulheres se cutucarem com agulhas de crochê, talhos de cebola e cebolinha, até mesmo a utilização de clínicas clandestinas que muitas deles só provocavam o aborto ou faziam uma curetagem mal feita e as mulheres tinham que recorrer ao sistema por causa de hemorragias e perfurações uterinas, as mulheres agora estão utilizando um medicamento que é o Misoprostol, conhecido como Citotec, que foi retirado do mercado brasileiro. Ele pode ser utilizado tanto vaginal, como sublingual e oral. Ele é altamente eficiente, considerado pela Organização Mundial da Saúde como um dos medicamentos dos mais seguros, considerado pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia como um medicamente que salva a vida das mulheres e que no Brasil continua sob proibição por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por razões que são incompreensíveis.
“O Misoprostol, que não tem nenhuma contraindicação, é proibido por qual razão? Absolutamente moral, de falsa moral”
Sul21 – Esse tipo de liberação caberia simplesmente à Anvisa?
Télia Negrão – Caberia às diversas instâncias. Porque não é só o Legislativo ou o Judiciário que pode e deve assegurar direitos a partir de conceitos gerais que são criados na sociedade, no país, no Estado. O Brasil é signatário de um conjunto de normas internacionais entre as quais aConvenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação e do Programa de População e Desenvolvimento do Cairo de 1994, e seus segmentos de 1999, 2005 e outros, dos quais o Brasil se compromete com o fim da criminalização das mulheres por abortamento, com a redução dos abortamentos inseguros e com a garantia da vida das mulheres que abortam. Como se pode interpretar isso? É uma questão de interpretação. Vamos liberar um medicamento para as mulheres, que caso elas desejem abortar e isso for absolutamente impossível evitar, ela pode tomar esse remédio. Por exemplo, se eu quero me suicidar com uma overdose, eu posso me suicidar com paracetamol, eu vou na farmácia compro um kilo, tenho uma descompensação, uma hemorragia e o remédio está sendo vendido livremente. E o Misoprostol, que é um medicamento que não tem nenhuma contraindicação, é proibido por qual razão? Absolutamente moral, de falsa moral. Ele é mantido debaixo de um tacão de uma agência que regula medicamentos, sob a alegação de que o Código Penal não prevê abortamento por questões de saúde. Saúde e vida das mulheres. Nós também temos verificado, e há quem esteja estudando isso, o médico Cristian Rosas de São Paulo, os índices de suicídio no Brasil associados à gravidez indesejada de mulheres que preferem morrer do que enfrentar uma situação de gravidez não desejada e porque não conseguem abortar, não têm acesso ao serviço.
Sul21 – Pensando num contexto de liberalização do Misoprostol, também não se pode defender uma venda sem qualquer tipo de regulação.
Télia Negrão – O fato é que a mulher quer abortar e ela vai abortar. Com toda a criminalização que tem no Brasil, com toda a proibição, as mulheres não deixam de abortar, 1 milhão de mulheres abortam por ano. Por isso que nós defendemos um programa, que já existe no Uruguai e em vários países do mundo que se chama redução de danos. Então por exemplo, no Uruguai se reduziu o índice de mortalidade materna por razões de aborto a zero, não teve um caso de morte no Uruguai nos últimos três anos porque tem um serviço que antes era propiciado por organização não governamental e agora se transformou em política pública do Ministério da Saúde do Uruguai. As mulheres que querem abortar vão ao serviço, elas são recebidas por enfermeiras e médicos e lá elas recebem o aconselhamento sobre uma série de temas. É feita uma ultrassonografia para ver o momento da gestação e o governo oferece condições caso ela queira ter o filho. Se mesmo assim, ela quiser abortar, o remédio é indicado, bem como a dosagem e se ele não funcionar ela é orientada a retornar. Além disso esses profissionais apresentam os métodos para a mulher não engravidar de novo se não desejar. O medicamento é proibido no Uruguai, mas as mulheres compram o medicamento e e esses médicos não vão presos. É como redução de danos das drogas injetáveis e do HIV.
Sul21 – Por que isso não acontece no Brasil?
Télia Negrão – Porque nós temos uma política moralista, uma pressão dos setores conservadores e porque o Brasil todos os dias é desafiado em relação à laicidade de seu Estado. Nós temos um padrão cultural extremamente atrasado e retrógrado em relação à religião e aos corpos das mulheres, diferente do Uruguai, uma sociedade bastante laica, pouco religiosa e que separa muito bem Estado e Religião. Nós temos que avançar nesta perspectiva: religião é de foro íntimo e individual. Qualquer pessoa tem o direito de ter a religião, de não ter também, mas de professar o seu credo, seja católico, protestante, israelita, matriz africana. São tantas religiosas, milhares de seitas, religiosas, etc. Cada um tem a sua. Agora o Estado não tem religião, o Brasil não é um estado confessional. Então essa questão teria que ser encarada do ponto de vista da saúde pública, do direito das mulheres à autonomia do seu corpo, à justiça social porque quem tem dinheiro vai nos hospitais privados e paga R$ 2,3,5 mil reais faz um aborto e sai dali completamente segura porque o aborto como um procedimento é um dos mais seguros, o aborto bem feito é mais seguro do que o parto, do que a cesárea. Alguns médicos dizem que é menos perigoso do que extrair um dente.
“Estado não tem religião, o Brasil não é um estado confessional. A questão teria que ser encarada do ponto de vista da saúde pública”
Sul21 – Você falou no caso do Uruguai. Qual é o panorama na América Latina e Caribe em relação à legalização e criminalização do aborto?
Télia Negrão – A situação na América Latina é muito ruim, nós temos no geral uma condição de criminalização. Apenas Suriname, Porto Rico e Cuba tem o aborto legalizado. Nos outros países, o distrito federal somente no México, alguns precedentes na da Colômbia e na Venezuela e parou por aí. O resto admite os dois casos do Brasil, violência e risco da gestante. E há países que nenhum caso é autorizado como no Chile e no Paraguai, mesmo com risco de vida da gestante. Então nós temos um quadro bem difícil.
Sul21 – Quero que tu faças um balanço no primeiro ano com uma presidenta. Tivemos avanços ou podemos dizer que houve uma estagnação por parte do Executivo?
Télia Negrão – Dependendo do campo. Se analisarmos que a Dilma se comprometeu com a autonomia econômica e financeira das mulheres e pela inclusão social, eu acho ela vem cumprindo, o próprio enfretamento de algumas doenças crônicas, como a questão do câncer de mama, colo de útero. Em termos da atenção integral à saúde das mulheres e em relação aos direitos reprodutivos, eu diria que nós vivemos num momento de estagnação, em que nos falta canais de interlocução para definir com quem nós vamos dialogar nesse governo para tratar de temas que para nós são fundamentais. Porque antes nós dialogávamos com o ministro da saúde, era um diálogo que tinha alguma efetividade, hoje nós temos um ministro que é aberto, mas que não dialoga e que colocou como política que centraliza a saúde das mulheres a rede cegonha, que é uma política materno-infantil, que não é uma política de direitos reprodutivos.
Sul21 – Alguma política tem contemplado o aborto legal?
Télia Negrão – O aborto legal não está contemplado. O que nós conseguimos acrescentar foi justamente a instalação de novos serviços de aborto legal, algo que foi compactuado conosco e que até agora não foi efetivado. Serviços que são quase clandestinos, porque ninguém sabe que existem. Existem 70 em funcionamento no Brasil, e nós temos 5.430 municípios. Nós compactuamos com o ministério que, na regionalização da saúde que está em processo no Brasil, se constitua um serviço por região. Serão 400 distritos de saúde. É melhor do que 70.
“A mulher já é um sujeito, um ser em pleno exercício de seus direitos, na plenitude de sua vida. Não se pode comparar o ser com o vir a ser”
Sul21 – Quero aproveitar para perguntar como a senhora avaliou a forma como foi tratada a questão do aborto na última campanha eleitoral.
Télia Negrão – Foi desastrosa porque o tema do aborto é refutado pelos políticos, eles evitam falar nesse assunto durante todo o tempo e esse tema é sempre trazido às campanhas eleitorais como forma de localizar os políticos dentro do espectro moral da sociedade. E todo mundo sabia que a candidata Dilma já tinha feito pronunciamentos favoráveis a legalização do aborto, porque ela sempre se colocou como uma feminista. No processo eleitoral, isso se tornou uma moeda muito forte de barganha de acordos políticos, e ela acabou se submetendo a essa barganha. Isso aí foi muito grave e acabou impactando as políticas que estão hoje no ministério da saúde. Então esse recuo que o governo teve tanto em relação ao Plano Nacional de Direitos Humanos como em relação ao envio de um projeto ao Congresso Nacional, quanto ao seu posicionamento em relação ao aborto nos diversos momentos isso ai tem sido evitado pelo governo que não está pautando, embora fosse sempre uma questão do programa do partido da presidente isso provocou um recuo muito forte e nós sabemos que não vai ser fácil recolocar esse tema na agenda política. Eu mesma fiz uma pesquisa sobre esse tema na agenda pública nos últimos dez anos e o que nós percebemos que ela só entra na pauta quando ela tá relacionado a morte, prisão ou eleições. Não entra como uma agenda de direitos das mulheres.
Sul21 – No debate religioso sobre aborto, frequentemente as pessoas favoráveis a legalização são taxadas como pessoas que são contra a vida. Na tua visão, porque a defesa da vida das mulheres que morrem cotidianamente por não terem acesso à saúde é solenemente ignorado?
Télia Negrão – Na America Latina as igrejas, principalmente a hierarquia da Igreja Católica, se instituíram para a sociedade como detentoras da verdade, de todas as verdades. E a Igreja estabelece que a vida começa na concepção. É um paradigma diferente do paradigma mais contemporâneo, defendido pelo movimento de mulheres feministas, pelos setores democráticos, pela ciência, que para se constituir como sujeito você tem que ter possibilidade de vida extra uterina. Por isso se defende que a legalização do aborto seja pensada ponderando direitos. Não se pode defender o aborto em qualquer circunstância no sétimo mês por exemplo, a não ser que seja um feto anencéfalo ou com uma má formação grave que coloca em risco a vida da mulher. Obviamente em qualquer momento da gestação não se deve colocar em risco a vida da mulher porque o feto é um ser em potencial, a mulher já é um sujeito, um ser em pleno exercício de sua vida, dos seus direitos, na plenitude de sua vida. Não se pode comparar o ser com o vir a ser. Ai nós fazemos o que se chama de ponderação de direitos: quanto maior a viabilidade deste ser, obviamente que diminui o direito das mulheres de interromper essa gestação, desde que sua a vida não esteja em jogo, se a vida da mulher estiver em jogo ela deve ter a sua vida preservada. Nós somos a favor da vida, é o primeiro direito humano. Mas vamos ver dentro dessa ideia de defender a vida, quais as vidas devem ser primeiramente defendidas. Nos parece uma lógica muito perversa, a lógica da Igreja Católica e de outras religiões e dos setores conservadores da sociedade. Aí entra na ideia de uma sociedade patriarcal, em que os homens têm direito sobre a vida das mulheres.
Sul21 – Como se expressa esse patriarcalismo?
Télia Negrão – As dificuldades estão principalmente nos padrões culturais que estão refletidos no STF, por exemplo, que não julga há sete anos a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental da anencefalia que poderia garantir a interrupção da gestação e evitar o sofrimento de mulheres que têm que recorrer a uma decisão judicial para não morrer, porque a gestação e parto de anencéfalo aumenta enormemente o risco de vida das mulheres. Esta na mão do poder Legislativo, que propõe trinta projetos ao ano contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que deveria ampliar esses direitos garantindo mais saúde para as mulheres. E isto está no próprio Executivo, no Ministério da Saúde, que poderia sim facilitar o acesso ao Misoprostol, poderia instituir serviços de redução de danos, poderia estar implantando novos serviços de aborto previsto em lei e violência sexual em todo o Brasil. Este ano, o Ministério assumiu compromisso com a Rede Feminista de implantar 400 novos serviços de aborto legal e não começou a cumprir até agora. Nós vamos continuar cobrando de todas as formas possíveis e imagináveis.
Sul21 – Voltando aos assuntos do Legislativo, vários projetos tramitam no Congresso para penalizar ainda mais as mulheres, até para colocar o aborto no rol dos crimes hediondos.
Télia Negrão – Existem vários projetos. Um deles quer criar um sistema para registrar todas as mulheres grávidas que procuram o sistema de saúde para monitorar a gravidez, aí o Estado passa a controlar o corpo. Outro quer colocar em todos os medicamentos e comidas de criança a frase “O Aborto é Crime”. Outro cria o Bolsa Estupro para as mulheres desistirem de fazer aborto nos casos de violência. É de uma criatividade imensurável dos nossos deputados contra as mulheres. E não há meia dúzia de deputados com vergonha na cara, dignidade e coragem para defender o direito das mulheres. Porque, infelizmente, não se reúne hoje seis deputados que venham a público defender a legalização do aborto do Brasil.
“Nenhum médico pode negar a fazer este tipo de serviço (aborto). Mesmo assim a gente sabe que eles se negam a fazer”
Sul21 – E como tem sido a atuação do Judiciário nos casos de estupro? Ele tem sido ágil e efetivado esse direito?
Télia Negrão – Se for com base na violência, tem uma legislação que garante a mulher interromper essa gestação. Pela norma técnica do Ministério da Saúde que foi instituída na década de 1990, foi atualizada em 2004 e agora sofreu uma nova atualização, ela dispensa o boletim de ocorrência. Basta a palavra da mulher. Ela pode fazer o registro de ocorrência, e a gente até orienta, porque ela pode exigir a responsabilização porque é um crime contra a liberdade sexual. Mas se ela não quiser, ela tem o direito de ir diretamente a um serviço de saúde e informar que ela foi vítima de uma violência sexual e ela deverá ser encaminhada a um serviço especializado, no caso de Porto Alegre tem no HPV, no Hospital de Clínicas e no Grupo Hospitalar Conceição e ela vai receber não só a anticoncepção de emergência se for nas primeiras 72 horas, como a profilaxia para DST e AIDS, um aconselhamento, uma testagem de gravidez e ela pode retornar caso ela se veja grávida para fazer a interrupção. É isso que prevê a norma técnica.
Sul21 – E isso tem funcionado?
Télia Negrão – Funciona precariamente, porque esses serviços são desconhecidos das mulheres. Grande parte acha que necessariamente tem que ir na delegacia de polícia, ou elas ficam sabendo que tem esse direito depois das 72 horas, quando a anticoncepção de emergência não é efetiva. Muitas vezes ela chega no local e as pessoas não sabem orientá-la ou não querem orientá-la.
Sul21 – Nesse ponto entra a questão da discriminação entre os profissionais de saúde que muitas não sabem lidar com essas questões.
Télia Negrão – Muitas vezes não querem lidar. Ai nós temos que separar as diversas situações. Os profissionais de saúde que estão nas unidades sanitárias ou nos serviços especializados se dividem em diversas categorias. Daqueles que realmente não têm informação porque não foram capacitados para isso, os que não conhecem a informação integral e os outros que têm toda a informação, mas que não querem fornecer às mulheres — no caso de médicos, por exemplo, alegando objeção de consciência. Agora, no caso dos serviços públicos, essa alegação serve para que o profissional não faça o procedimento, mas ele é obrigado a chamar um colega para fazer. No caso de violência sexual, ele é obrigado a fazer por que isso está no Código Penal brasileiro. No código diz que não é crime o aborto realizado para salvar a vida da gestante e quando é caso de violência sexual. A norma técnica do ministério determina como deve ser realizado e várias decisões do Conselho Federal de Medicina dizem que ele dever ser feito. Então nenhum médico pode negar a fazer este tipo de serviço. Mesmo assim a gente sabe que eles se negam a fazer. Nenhuma unidade sanitária ou hospital pode se negar a oferecer todos os elementos que compõe a atenção as mulheres, adolescentes e crianças vítimas de violência.