Entre a ética e a vida

Correio Braziliense – 16/7/2012

Tese sobre critérios de uso e seleção de embriões em pesquisas com células-tronco rende três prêmios a cientista mineiro e reacende debate sobre o polêmico tema

Belo Horizonte – Uma tese de doutorado feita por um mineiro já lhe rendeu três premiações: o Grande Prêmio da Universidade Federal de Minas Gerais (UFGMG) de teses, na área de ciências humanas e sociais; o Prêmio Capes como melhor tese de filosofia do Brasil, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); e o Grande Prêmio Capes, em toda a área de ciências humanas. Como fruto dessa última premiação, Lincoln Thadeu Gouvêa de Frias ganhou uma bolsa de pós-doutorado, a ser iniciada em breve. O pesquisador concluiu em 2010 seu doutorado apresentado ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, cujo assunto é polêmico: a ética do uso e da seleção de embriões.

Não é à toa que o tema seja delicado: somente no Brasil, 20 mil embriões estão congelados em clínicas, onde casais ou mulheres solteiras fazem 30 mil tratamentos para engravidar anualmente. Calcula-se que, no mundo, hoje, 5 milhões de pessoas são fruto da reprodução assistida. E o sonho de ter um filho não é barato: um tratamento de fertilização in vitro pode sair por até R$ 30 mil.

Em seu estudo, Frias abordou o uso e a seleção de embriões na pesquisas de células-tronco e o diagnóstico genético pré-implantação, o DGPI, utilizado nas fertilizações in vitro. O pesquisador fez um recorte no estudo para citar apenas embriões de até 14 dias, que, segundo ele, é um conjunto de células indistintas, “longe de ter qualquer coisa parecida com sistema nervoso, como sentir dor ou se dividir para se tornar gêmeos.”

De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Reprodução Humana (ABRH), Artur Dzik, 14 dias é um tempo bom para a análise filosófica. “Do ponto de vista prático, temos tecnologia para cultivar o embrião no máximo por seis ou sete dias. A gente tem o conceito da vida embrionário quando ele se desenvolve”, define Dzik, que é ginecologista e especialista em reprodução humana em uma clínica de São Paulo.

É o significado de “vida” uma das questões levantadas por Frias. “Apesar da pesquisa científica significar a morte de alguns embriões, ela é justificada basicamente porque não faz sentido atribuir direito de vida a eles”, justifica o doutor, que tentou se distanciar de argumentos que partiam de crenças religiosas. “Falar que os embriões têm direito à vida porque pertencem à espécie humana não é bom por uma série de razões. Quando vemos filmes como Avatar, em que eles não são humanos, começamos a respeitá-los quando demonstram autonomia, autocontrole, capacidade de respeitar interesses dos outros, características que nos tornam pessoas”, exemplifica o filósofo.

De acordo com Lincoln, antes de 14 dias, um embrião ainda não tem as características que fazem com que o seres humanos sejam importantes. Mas aí ele esbarra em outro argumento, o da potencialidade daquele embrião de se tornar um ser humano. “Em nenhuma outra coisa a gente analisa potencial. A grosso modo, só porque o Atlético tem potencial de ser campeão, você vai escrever o nome dele na taça?”, rebate. Atualmente, no Brasil, não há legislação sobre esse tipo de pesquisa e uso, embora a ciência nacional esteja em pé de igualdade com países desenvolvidos no quesito reprodução assistida, com grandes e importantes clínicas atuando na área há mais de duas décadas. Já a pesquisa de células-tronco ainda está em fase experimental.

Sobre o tema, Dzik dá a opinião da ABRH: “Melhor não ter legislação que ter má legislação. Temos nosso Conselho Federal de Medicina (CFM), do qual tiramos a normatização ética para a reprodução. Nos valemos disso: não pode desprezar embrião, mexer geneticamente ou escolher o sexo. Já a situação de usar embrião para pesquisas de células-tronco não é decisão do médico, mas da sociedade”, afirma.

Para a reprodução assistida, há a regulamentação baseada no Código de Ética do CFM e as normatizações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre o destino dos embriões não usados na fertilização. “Como não há leis, temos de seguir esse código de ética médica. Atualmente, o médico deve intervir o mínimo possível. O que ele deve fazer é a fertilização, propiciar o encontro do óvulo com o espermatozoide. Não é para escolher o sexo do bebê a gosto do paciente, a menos que haja indicação de problemas genéticos ligados ao sexo”, resume Marco Melo, ginecologista obstetra e especialista em reprodução humana da Clínica Vilara, em Belo Horizonte.

Para a fertilização in vitro, alguns embriões são gerados, mas poucos usados. Depois do procedimento, os demais embriões vão para um congelador. “O Código Civil, pela Anvisa, e o Código de Ética do CFM impedem o descarte. Há duas opções: os embriões congelados até 2008 podem ser doados para pesquisas de célula-tronco e os demais, para adoção assistida, em que outro casal os utiliza”, explica Melo. Pacientes que não desejam nenhuma das duas opções devem pagar uma taxa anual de manutenção para a clínica onde os embriões estão congelados.

É nesse ponto que a tese de Lincoln entra em ação novamente. “Durante o sexo normal, sem reprodução assistida, dois terços dos embriões morrem. Se a gente realmente se preocupa com esses embriões em potencial, deveríamos investigar tecnologias para evitar essa perda. Outro teste bom é fazer o seguinte questionamento: se uma clínica de fertilização pega fogo e em uma sala há mil embriões e na outra um bebê e você só tem chance de salvar um deles, qual você salvaria?” provoca.

Lincoln diz que alguns argumentos têm muito poder retórico, mas descartam o que é racional e razoável. “Essa discussão do uso de embriões é pautada pela pergunta de onde começa a vida. Até onde sabemos, no sentido biológico, a vida só começou uma vez, há 4,5 bilhões de anos, quando a primeira mólecula se replicou. O que cabe saber é quando começa a ser um indivíduo que tenha seus direitos respeitados”, argumenta o filósofo.

Transmissão de doenças

Quando o especialista em reprodução humana têm acesso aos embriões, ele tem muitas informações. Ainda não é possível a ciência definir cor de pele ou dos olho. Mas é possível, sim, saber o sexo e analisar os 23 pares de cromossomos que os humanos têm, determinando qual embrião pode gerar uma pessoa com doenças. Ainda assim, esse conhecimento não é todo usado. “Fazemos a análise quando há indicação, ou seja, quando o paciente tem histórico de alguma doença genética. Bebês podem ter 15 mil doenças, então, não vou analisar todas, apenas as que os pais têm conhecimento. Até porque a técnica do DGPI não é acessível para todo mundo, pode custar até R$ 30 mil”, explica o ginecologista Selmo Geber, especialista em reprodução humana e diretor regional da rede latino-americana de reprodução assistida. Geber lembra que a técnica do DGPI foi desenvolvida para evitar a transmissão de doenças de alto risco, como hemofilia e fibrose cística.

“Essas discussões são muito polarizadas e costumam despertar ódio. Por isso, é importante ressaltar a conclusão final. Não digo que o embrião é descartável e não tem significado nenhum, mas merece respeito e, por isso, não deve ser usado para qualquer fim”, ressalta Frias. Ele lembra que fala também de células-tronco para desenvolver terapias capazes de reverter problemas como mal de Alzheimer e de Parkinson, e fazer tetraplégicos voltarem a andar. “E no caso do DGPI, a importância é tentarmos evitar que as pessoas tenham doenças devastadoras. A síndrome de Lesch-Nyhan, por exemplo, faz a criança morrer por volta dos 3 anos, depois de muito sofrimento”, cita Frias.

“Até onde sabemos, no sentido biológico, a vida só começou uma vez, há 4,5 bilhões de anos, quando a primeira mólecula se replicou” Lincoln Frias, filósofo

Ponto Crítico/ Reprodução assistida

É necessária uma discussão ética sobre o uso de embriões?

Selmo Geber

Ginecologista

não “O debate está bem resolvido no Brasil, que tem tecnologia para esse tipo de tratamento. A renovação de nosso código de ética foi moderna. Estamos melhor que antes. Não dá para discutir questão ética da medicina com a população não médica. Quem regula, eticamente falando, é o Conselho Federal de Medicina, pois são procedimentos médicos. Em congressos, todos participam. Mas eles não podem decidir porque não fazem parte da sociedade médica.”

Alessandro schuffner

Ginecologista

sim “Há o ponto de vista ético geral e o do controle de medicina. Meu código ético, do Conselho Federal de Medicina, é diferente daquele do sociólogo ou do biólogo. Atualmente, não há discussão. Deveria ter com todos os envolvidos. Há discussões em cada subgrupo, mas ninguém reuniu todo mundo. Acho que a sociedade pede isso. Os geneticistas, por exemplo, não estão envolvidos no debate dos médicos, eles são ainda mais abertos a ele.”

R$ 30 mil pode ser o preço de uma fertilização in vitro

20 mil embriões estão congelados e armazenados em clínicas brasileiras

34 anos se passaram desde que nasceu o primeiro bebê de proveta no mundo

5 milhões de pessoas hoje, no mundo, são fruto de reprodução assistida

30 mil tratamentos são realizados por ano no Brasil

200 clínicas de reprodução estão instaladas no Brasil

100 clínicas só em são Paulo