Querem matar o SUS-3: mais CPSUS neles!

Paulo Capel Narvai (*)

 

Desde que, em maio deste ano, publiquei neste espaço o artigo “Querem matar o SUS: CPSUS neles!”, o primeiro do que seria uma trilogia, tenho ouvido elogios e críticas ao que está ali proposto: a criação, com urgência, de uma Contribuição para o Financiamento do SUS, a CPSUS, nos moldes da proposta encaminhada ao Congresso Nacional em 2009, isentando de recolhimento as pequenas movimentações financeiras. Considero que a CPSUS é indispensável nesta etapa histórica do SUS, para que o sistema consiga o oxigênio de que necessita para se manter vivo, uma vez que o Congresso Nacional vem, reiteradamente, rechaçando todas as alternativas que recebe para dotar o sistema de fontes orçamentárias fixas, permanentes, suficientes e razoavelmente estáveis. Mas a CPSUS não é aceita por SUScidas em geral, notadamente a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), a FIESP, a FIERJ e outras organizações vinculadas ao polo do capital. Essa gente não quer nem ouvir falar disso. Contudo, SUSistas, como o ministro da Saúde Arhur Chioro, defendem a proposta. Argumentei no artigo que não criar a CPSUS e postergar decisões sobre o modelo de financiamento do SUS implicará promover um perigoso esgarçamento desse sistema que é, segundo vários analistas, o principal elo da rede de proteção social que estamos construindo no Brasil. Com muitas dificuldades, é certo, mas que já contabiliza feitos notáveis e que a maioria dos brasileiros considera uma conquista a ser defendida de todas as formas.

 

Críticos têm-me dito que estou praticamente sozinho. Um amigo petista aconselhou-me a “deixar isso prá lá, pois o partido recusou a CPMF no último congresso, em Salvador”. Uma amiga tucana não se conformou que eu tenha tido “o atrevimento de propor a criação de mais um imposto, no país dos impostos”. Seguindo no espectro político-partidário em que tenho leitores que se importam com o que escrevo e que me dão o privilégio do bom debate político, topei com um camarada do PSOL que foi logo me acusando de “não ir à raiz dos problemas”, de não falar nada sobre “a dívida pública, o ajuste fiscal e a rendição do governo Dilma aos rentistas e ao capital financeiro”. E nesse tom seguiram as críticas, que sintetizo neste parágrafo para não aborrecer os leitores. Em respeito aos que me leem, excluo os xingamentos que recebi. As principais objeções à criação da CPSUS são, efetivamente, essas que elenquei.

 

Admito que gostei das críticas, pois elas me permitem desenvolver o assunto e esclarecer vários aspectos relacionados com o tema. E sobretudo porque vêm de SUSistas, não de SUScidas. Têm origem em batalhadores por direitos sociais, gente que quer melhorar as coisas para todos no Brasil. Respeito-os(as).

 

Em resposta a esses argumentos tenho dito, basicamente, que não escrevo para agradar, nem proponho alguma coisa para ser simpático. Claro que lamento que o PT tenha tomado essa decisão em um congresso partidário. Creio, porém, que a decisão foi motivada pela necessidade de agradar eleitores e aliados. Mas eu não tenho de agradar ninguém, muito menos eleitores, e sou aliado, apenas, da minha consciência e do que considero ser o interesse público. Depois dessa decisão, que considero equivocada, cabe ao PT e ao governo Dilma, cujo ministro da Fazenda Joaquim Levy se opôs à contribuição, explicar à Nação como pretendem acabar com o crônico subfinanciamento do SUS, para que o sistema sobreviva. Ou correm o sério risco de passar à História como os coveiros do SUS.

 

Devo esclarecer, a esta altura, que a CPSUS não é “mais um imposto”. Aliás, não é um imposto, mas uma contribuição social. Não se trata de jogo de palavras. Os recursos com origem em impostos perdem-se nos meandros do orçamento público. Contribuições podem ser objeto de vinculações, definidas em lei. Política, e tecnicamente, faz diferença, embora haja sempre o risco de um congresso sem compromisso com o interesse público deturpar tudo. Contra isto é necessário, sobretudo, investir na organização popular e seguir firme com as ações em defesa do SUS. Mas, isto, estamos fazendo desde a criação do sistema, contra a ação implacável dos SUScidas que o boicotam e sabotam diuturnamente. Argumentar contra a CPSUS como “mais um imposto” é desconhecimento. Mas pode ser, também, má fé.

 

Sobre a “raiz dos problemas” tenho repetido que a fixação dos objetivos das lutas em defesa do SUS apenas em bandeiras estratégicas vem, objetivamente, paralisando muitos defensores do SUS. Não há dúvida quanto à importância de seguir avançando e encontrar caminhos para taxar as heranças e grandes fortunas e conter a sangria da sonegação de impostos. Mas é preciso cautela na reprodução do discurso veiculado pela mídia comprometida com o capital financeiro de que “o Brasil é o campeão dos impostos” e que “o governo” não devolve o que recebe com bons serviços. Isto é correto, mas apenas em parte. É preciso dizer, também, que no Brasil se paga (muito) menos impostos do que na Inglaterra, França, Espanha, Estados Unidos, Canadá, Suécia e por aí vai (a lista é longa…). E que há dois problemas fundamentais com impostos no Brasil, embora curiosamente a mídia comprometida com interesses econômicos raramente fale deles com destaque, que são: 1) nosso padrão tributário é regressivo, pois quem tem menos paga igual quem tem muito. O que devemos fazer urgentemente com nossa política de impostos é reverter isto; e, 2) há muita sonegação. O “impostômetro” é cortina de fumaça desses sonegadores contumazes para enganar a opinião pública. O “sonegômetro”, em boa hora criado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (SINPROFAZ) é muito, mas muito mais importante, nesse debate, do que o “impostômetro”. A sonegação solapa as políticas públicas de modo contundente e contribui para aumentar as dificuldades da saúde e da educação pública, dentre outras políticas dirigidas ao reconhecimento de direitos sociais. Maus serviços públicos, sucateados, são produzidos deliberadamente por interessados em viabilizar iniciativas mercantis nesses setores. É estratégico para esses interesses difundir esta ideologia, construir e reproduzir, à exaustão, a imagem de serviços públicos com gestores incompetentes, contando com funcionários vagabundos e que, assim, “não entregam serviços com qualidade compatível com a quantidade de impostos que pagamos”. Serviços públicos de saúde precários são, infelizmente, uma realidade que SUSistas combatem o tempo todo, mas isto nada têm a ver com mais ou menos impostos, mas com dirigentes cujas decisões não têm compromisso com o interesse público.

 

Enquanto o SUS agoniza, asfixiado pela falta de recursos, não é, política e eticamente aceitável que não se façam propostas para hoje, para frear os SUScidas agora e evitar a morte do SUS. Não fazer nada específico, não propor nada estrutural viável neste momento, é um erro muito grave dos segmentos sociais e políticos que criaram o SUS em 1988. Aferrar-se a propostas (apenas) estratégicas, e ignorar as lutas necessárias hoje, é fazer o jogo dos que acumulam e reproduzem capital à custa de doença e morte.

 

Insisto que é um erro focar as lutas em defesa do SUS apenas em certos objetivos estratégicos porque: a) com ou sem o ajuste fiscal, permanecerá como problema estrutural do SUS o dilema do seu modelo de financiamento, que hoje onera, ao limite da exaustão, sobretudo os orçamentos municipais. Ademais, é ‘estrangulado’ pela lei de responsabilidade fiscal que impede o SUS de contar com o pessoal de saúde em quantidade suficiente. Para não descumprir a lei, prefeitos e governadores cortam o pessoal. Assim, mesmo em um cenário hipotético em que não se faça o ajuste fiscal nada disso se alterará. O modelo (aliás, nada modelar…) de financiamento do SUS seguirá como está hoje, e como estava em 2010, 2005, 2000, 1995… Por essa razão, não faz sentido opor “Ajuste Fiscal versus CPSUS”, pois são coisas de naturezas e dimensões distintas.

 

Da mesma forma, não tenho objeção a que se faça a “auditoria da Dívida Pública Já!”, como querem algumas correntes da Oposição. Mas não é preciso fazer auditoria da dívida para saber que o Estado brasileiro é refém do sistema financeiro, que lhe abocanha quase metade dos recursos orçamentários, agindo como um hiperagiota vampirizando recursos públicos. É preciso dar um basta nisso, sem dúvida. Contudo, imagine-se um cenário, também hipotético, em que se tenha feito a auditoria da dívida e que esta, reestruturada, seja cancelada unilateralmente ou rolada para ser amortizada em três ou quatro ou cinco décadas. Ainda assim permanecerá o desafio do modelo de financiamento do SUS, não me parecendo ser correto, política e tecnicamente falando, opor “Auditoria da Dívida Pública versus CPSUS”. Mais uma vez, são coisas de naturezas distintas…

 

Sou totalmente a favor de taxar heranças e grandes fortunas, mas isso não alterará de modo relevante a estrutura do modelo de financiamento do SUS, impactando apenas o volume dos recursos alocados ao sistema, ainda assim com magnitude insuficiente para suas necessidades.

 

Concordo também com os que advogam o fim das isenções fiscais para as empresas que operam os (mal) denominados “planos de saúde”, um mecanismo nefasto que drena recursos públicos para empresas que operam no setor saúde sem qualquer controle dos conselhos de saúde. É urgente estancar a renúncia fiscal e a sangria que isto provoca no orçamento público. Sou favorável a isto, mas não vejo por que motivos algo nessa direção deveria ser contraposto à criação da CPSUS. São, a meu juízo, medidas complementares que apontam para o mesmo sentido e não o contrário.

 

Por fim, é preciso reiterar que o SUS é uma notável conquista da cidadania brasileira, que quer e precisa do sistema, para garantir a todos o direito constitucional à saúde. Em uma sociedade desigual e iníqua, como a nossa, é crucial contar com o SUS. Mas, como mantê-lo, sem os recursos de que necessita? Como conseguir isto? É preciso reconhecer que praticamente todo o movimento sindical está alheio aos destinos do SUS, como instituição do mais alto interesse nacional. Parte importante dos movimentos sociais está paralisada, parece perplexa frente aos desafios atuais, com receio de propor soluções ao impasse do subfinanciamento crônico. Assim, perplexos e paralisados, estão sendo devorados, diariamente, pelo poder econômico que transforma direito social em mercadoria e investe na perspectiva de que o mercado, e não o Estado, é a melhor alternativa para a saúde dos brasileiros.

 

Ao contrário dos liberais e neoliberais, creio na eficácia do Estado para garantir direitos sociais e não na “mão invisível do mercado”. Não creio, porém, em um Estado qualquer, mas em um Estado democrático, republicano, não patrimonialista, com gestão participativa e controle público das ações e políticas públicas. Um Estado que precisamos seguir construindo no Brasil, pois estamos ainda muito longe dele.

 

(*) PAULO CAPEL NARVAI é professor titular de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).