Saúde e infância
QUANDO, EM 1976, UM grupo de jovens sanitaristas se reuniu com alguns outros profissionais de saúde para fundar o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a rede pública de Atenção Básica à Saúde consistia de número restrito de centros de saúde em geral administrados por Secretarias Estaduais de Saúde. Essas unidades, na sua maioria, prestavam escassas ações de prevenção por meio de uma assistência materno-infantil considerada ainda precária.
Ao longo da luta pela Reforma Sanitária, então iniciada, e da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), essa situação foi substancialmente transformada. Temos atualmente em torno de 40 mil Equipes de Saúde da Família, que cobrem mais de 60% da população, e aproximadamente 40 mil Unidades Básicas de Saúde. Em contraste com os tradicionais centros de saúde, as Equipes de Saúde da Família ou das Unidades Básicas de Saúde procuram atender as pessoas em todos os seus ciclos de vida. Entre os distintos ciclos de vida, os extremos — infância e velhice — são os períodos de maior vulnerabilidade.
A infância tem a peculiaridade de representar o futuro hoje, e é por isso que preservar e cuidar dela deve fazer parte do projeto de desenvolvimento de uma nação. Entretanto, é oportuno perguntar: o que se entende por preservar e cuidar? Isoladamente, a saúde tem baixa potência para melhorar as oportunidades da infância. O que propicia o bem-estar das crianças e lhes garante o crescimento como cidadãos plenos de potencialidades e de direitos é um conjunto de ações, programas e políticas que dizem respeito à moradia, segurança alimentar, educação, lazer, segurança, transporte e saúde e que constituem necessidades humanas básicas.
O sucesso das políticas públicas de redução de miséria e pobreza, aliado à expansão da Rede de Atenção Básica, tem contribuído à melhoria das condições de saúde das crianças.
Se o número de óbitos infantis de menores de 1 ano, por mil nascidos vivos, era 47,1 em 1990, ano do início da implantação do SUS em 2011, já havia decrescido para 15,3, e atualmente se situa abaixo de 15. Trata-se de uma redução bem mais acelerada do que a prevista. O Objetivo do Desenvolvimento do Milênio número 4 previa o número de 17,9 por mil até 2015, mas esta meta já foi alcançada em 2010, quando se registrou uma taxa de 17,22. Contudo, persistem grandes desigualdades entre regiões, e crianças pobres correm mais risco de morrer, assim como as nascidas de mães negras e indígenas, que apresentam taxa de mortalidade maior do que as crianças ricas.
Essa situação aponta para a necessidade de promover o desenvolvimento acoplado a políticas públicas que favoreçam a redistribuição de renda e que diminuam as grandes desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, acusa também as condições em que ainda se encontra o SUS: grandes avanços ao lado de uma persistente precariedade das Redes de Atenção à Saúde, o que prejudica principalmente os segmentos mais vulneráveis da população. Assim, o tema da XV Conferência Nacional de Saúde, ‘Saúde pública de qualidade para cuidar bem das pessoas: direito do povo brasileiro’, é altamente oportuno.
A situação aparentemente contraditória do SUS não é meramente resultado da complexidade do processo de criação de um novo sistema de saúde. Sem dúvida, a maturação de tal processo é relativamente longa ao implicar: a criação de uma nova infraestrutura, a formação de profissionais de saúde, a aplicação de novas tecnologias, a introdução de novos modelos de gestão e de atenção e o aumento substancial de recursos financeiros. Todavia, isso não explica suficientemente o atual estágio de implantação do SUS nem decorre apenas do fato de que, ao ser criado, já houvesse um mercado privado de planos de saúde e estabelecimentos. Também não decorre da falta de vontade política do setor da saúde pública, pois há evidentes esforços do Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde e setores da sociedade civil para avançar e dar concretude aos princípios do SUS. Um dos tantos exemplos é a iniciativa conjunta do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo
Cruz, quando decidem, em 2007, trabalhar uma estratégia — posteriormente denominada Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) — com o objetivo maior de contribuir para a formulação e para a implantação de uma política de cobertura nacional voltada à atenção integral à saúde da criança, considerando fundamentalmente o artigo 227 da Constituição Federal, que dedica à criança brasileira prioridade em todas as ações de cuidado.
Há vários fatores que freiam o avanço do SUS, dentre eles, vale destacar dois: a falta de uma ampla base política nessa defesa e uma política hegemónica, de cunho neoliberal, que fomenta a privatização da saúde, tornando-a mais uma mercadoria a ser consumida.
As elites brasileiras têm se mostrado avessas a políticas sociais: setores da classe média têm resistido à redistribuição de renda e à construção de uma sociedade baseada em cidadania e preferem manter uma atenção à saúde diferenciada através de planos privados de saúde.
Em contrapartida, os sindicatos dos trabalhadores estão lutando, desde a década de 1970, por planos de saúde corporativos mantidos pelas empresas, que os utilizam como ‘benefícios’ para seus empregados.
A atual crise econômica, em grande parte fabricada pela mídia que se comporta como representante de verdadeiros partidos políticos, do capital financeiro e das elites econômicas brasileiras, implica sérias ameaças às políticas redistributivas e à construção de uma sociedade mais justa. Na esteira da hegemonia do capital financeiro, cresce a pressão para a privatização de serviços públicos e para a redução de gastos com políticas públicas. Nesse contexto, a primeira ameaça ao SUS é o agravamento do crônico subfinanciamento.
Entretanto, a crise tem também um outro lado. O crescimento do desemprego e a redução da renda familiar poderão ampliar o número de pessoas sem acesso a planos de saúde. E se, de acordo com a mídia, a maior procura do SUS tornaria pior o que já é ruim, na realidade poderá provocar maior pressão para a efetivação do direito à saúde e à melhoria do sistema. Essa pressão, a nosso ver, poderá fortalecer a persistente luta dos movimentos sociais pelo avanço da democracia, de uma sociedade mais justa e igualitária e em defesa da manutenção dos direitos sociais consagrados pela Constituição Federal, promovendo também novas formas de solidariedade e pertencimento social em amplos setores da população.
Considerando o cenário acima descrito, balizados por marcos referenciais nacionais e internacionais que apontam para a construção democrática de uma consciência em saúde como fundamental para sua produção e entendendo que os padrões saudáveis para a vida são construídos desde os seus primórdios, com uma primeira infância favorecedora do desenvolvimento infantil pleno, caminhamos decididamente, por meio da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis, com a construção da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança.
É fundamental destacar nesta iniciativa exitosa entre a Coordenação-Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira da Fiocruz um aspecto ousado e inovador não só na formulação da política, na metodologia participativa de sua construção, pautada no respeito ao coletivo de agentes que com ela se relacionam, fortalecendo o pacto interfederativo para sua consolidação, como também no seu conteúdo, permeado por princípios humanizadores notáveis, entre eles o do ambiente facilitador à vida, criado e desenvolvido com tanta expectativa pela EBBS.
Aos leitores, sugerimos apreciá-lo em cada um dos artigos aqui apresentados como uma inovação relacional de cunho transformador presente tanto nas ações de formação quanto naquelas de atenção e gestão, embebendo esta política social da generosidade e do cuidado fundamentais à produção de saúde com cidadania plena.
Uma construção que almeja uma sociedade saudável, um mundo saudável, que o terceiro milênio traz como desafio para tornarmos encarnado o cuidado essencial entre os habitantes deste planeta. Queremos, assim, estimular a curiosidade dos leitores a buscar um exercício de aproximação entre esta iniciativa — seus conteúdos teóricos e conceituais, seu modo de fazer e os resultados já obtidos, além daqueles que se queira projetar — e o recente documento divulgado pelas Nações Unidas, com a Agenda 2030. Esta apresenta os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) voltados para as crianças e suas redes de cuidadores, incluindo os adolescentes, não contemplados nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), analisando o que será preciso para que os países e, claro, o nosso Brasil possam alcançá-los.
Boa Leitura!
Cornelis Johannes van Stralen
Presidente do Cebes
Ana Maria Costa
Diretora Nacional do Cebes
Liliane Mendes Penello
Coordenadora da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis
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A presente publicação é fruto da parceria do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Coordenação-Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno (CGSCAM/MS) e o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), por meio da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS).
Esta revista apresenta artigos de profissionais de diversos segmentos da área da saúde envolvidos com a causa da infância, simbolizando mais um passo no aprimoramento da qualidade de vida dos nossos pequenos brasileirinhos e brasileirinhas e representa um esforço no fortalecimento de políticas de proteção à primeira infância.