Revista Saúde em Debate, Vol. 40, Ed.110

O cenário depois do golpe

 

O ensaio das últimas décadas para construir novas formas de democracia, dando outros significados à igualdade e à liberdade, está ameaçado pelo embate com as elites econômicas e políticas que legitimam o poder do capital em nosso País.

O golpe parlamentar e judiciário ocorrido no dia 31 de agosto de 2016, que afastou em definitivo a presidenta Dilma Rousseff da Presidência da República, marca de forma indelével a sociedade brasileira, ameaça à democracia e deixa uma sombra espessa de incertezas sobre as classes que vivem do trabalho e que reivindicaram, nesses anos, a garantia de direitos sociais fundamentais.

Não se trata apenas de alternância no poder, trata-se da restauração conservadora de um projeto político ultraneoliberal, assumidamente pró-capital, que visa resolver os impasses da lógica compulsiva de acumulação e favorecer os menos de 1% de super-ricos do País. A ortodoxia neoliberal dos anos de 1990 contribuiu para transformar o Brasil em um dos países mais desiguais do mundo, onde uma minoria se apropria vorazmente da riqueza produzida enquanto grandes maiorias são colocadas nos limites da sobrevivência. Se essa equação foi amenizada na última década, por meio de políticas públicas que tiraram o Brasil do mapa mundial da fome (FAO , 2014), os desdobramentos do golpe apontam claramente para um retorno e ampliação das enormes desigualdades que ainda caracterizam a 7ª maior economia do mundo.

Como tem sido indicado insistentemente, o projeto neoliberal pretende transferir o peso da crise nacional de acumulação para os ombros dos trabalhadores. Para isso, retoma mecanismos radicais de exclusão e de marginalização social, materializados em propostas que reduzem direitos (reforma da previdência e estabelecimento do teto de gastos com saúde e educação por 20 anos), ampliam a precarização e a flexibilização das relações de trabalho (reforma trabalhista), hipotecam o futuro das próximas gerações (venda do pré-sal), retrocedendo e deixando à margem uma massa imensa da população.

O argumento de que houve um crescimento exagerado dos gastos primários com saúde (e educação) não se sustenta. O gasto público federal com saúde manteve-se estável entre 2002 (1,66% do PIB) e 2015 (1,69% do PIB), já a participação da saúde nas despesas primárias foi reduzida, passando de 10,5% em 2002 para 8,6% em 2015 (VIEIRA; BENEVIDES; 2016).

Portanto, o grande responsável pelo desequilíbrio das contas públicas não foi e não são as políticas sociais, mas a dívida pública, nunca auditada, que em 2015 consumiu 42,43% do Orçamento Geral da União para o pagamento de juros e amortizações, ao passo que para a saúde foi destinado 4,4% desse orçamento (FATTORELLI ; ÁVILA; COLARES, 2016).

Se de fato se pretende equilibrar as contas públicas, não será reduzindo os ínfimos 4,4% do orçamento federal investidos em saúde que, como dissemos, correspondem a apenas 1,69% do PIB, mas interrompendo a transferência de quase metade do orçamento federal para o setor privado, por meio de juros e amortizações. O capital especulativo e o setor privado (supostamente credor do Estado) são os únicos que se beneficiam com a manutenção, pelo Banco Central, dos juros básicos mais altos do mundo, neste momento em 14,25%.

A atual conjuntura brasileira impõe ao campo dos movimentos sociais e das forças progressistas uma ação contundente diante desse projeto e da ameaça da instauração de formas autoritárias de exercício da política. Tentação aberta no cenário internacional em que se observa o renascimento de movimentos conservadores na Europa e nos EUA.

O que está em jogo não afeta apenas as nossas aspirações por uma sociedade mais justa, mas os ensaios latino-americanos colocados em prática aqui e em vários países da região nesse início de século. São contra esses ensaios que as elites conservadoras (apoiadas pelos monopólios da indústria transnacionalizada da mídia que controlam a formação da opinião pública) investem cotidianamente. E o fazem, aqui, combatendo as realizações dos princípios e valores definidos na Constituição Federal de 1988, os quais expressam o consenso democrático estabelecido com o fim do regime militar.

Se por um lado, contudo, a atual crise indica o retorno do neoliberalismo (ainda mais agressivo do que foi nos anos 1990), por outro, aponta para possibilidades de retomada do protagonismo dos movimentos sociais que caracterizaram os anos de 1970 e 1980 como anos de luta pela redemocratização e pela ampliação de direitos sociais. Naquele momento, na contramão da conjuntura internacional que colocava em cheque o estado de bem-estar social (lembremos de Margaret Thatcher na Inglaterra, Helmut Kohl na Alemanha e Ronald Reagen nos EUA), os constituintes, impulsionados pelos movimentos sociais, inscreveram na letra da Lei, por exemplo, a saúde como direito de todos e dever do Estado. Agora, também em uma conjuntura internacional adversa, cabe aos movimentos sociais construir um projeto de nação que confirme as conquistas inscritas na Constituição, no qual caibam todos os brasileiros.

O projeto civilizatório que o Brasil merece e deseja é incompatível com os interesses de uma sociedade de mercado total, própria do capital financeiro, especulativo e improdutivo.

Será construído a muitas mãos, braços, mentes e corações em um processo de radicalização da democracia.

 

Maria Lucia Frizon Rizzotto
Editora Científica da Saúde em Debate – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)