Uma aposta pelo Brasil – Editorial

O BRASIL É MARCADO POR CRISES RECORRENTES que refletem traços da colonização, herança de uma elite atrasada, conservadora e autorreferente que perpetua a cultura da ‘casa grande e senzala’. Tropeçando em sucessivas crises ao longo de sua história, a atual exige que reunamos forças para enfrentar os interesses dos atores e projetos que estão atrás do golpe parlamentar.

 

Sob essa perspectiva, é imperativo refletir acerca de algumas perguntas: qual a possibilidade de um pacto social que tire o Brasil da crise? O que esperar das elites políticas e econômicas nacionais no atual cenário político? Ainda continuam vivas as possibilidades para uma democracia que materialize direitos sociais como estratégia ante essa crise? Como construir caminhos alternativos para um Brasil com justiça social?

 

No processo de redemocratização ocorrido na década de 1980, vigoraram e prosperaram, na Assembleia Constituinte, as ideias de um Estado de bem-estar. Mesmo que tardio em relação aos países europeus, esse modelo de Estado assegura aos brasileiros direitos e políticas sociais universalistas, ou seja, inclui a população historicamente excluída da partilha da riqueza produzida pelo trabalho e apropriada pelo capital e pelo Estado. Se por um lado a partilha que sempre favoreceu uma pequena parcela da população legitimou a exploração do trabalho, por outro, é responsável tanto pela origem como pelo aprofundamento das desigualdades sociais.

 

É importante recuperar os mecanismos que tornaram possíveis os avanços constitucionais nesse momento que reclama por estratégias concretas e eficientes de resistência e de luta diante da tendência fatalista que imobiliza face a atual configuração do Congresso Nacional e dos Poderes em geral.

 

Sem desconsiderar que hoje temos a composição mais conservadora do Congresso desde o regime militar, não se pode afirmar que em algum momento da história a ‘Casa do Povo’ tenha sido efetivamente progressista. O Congresso Constituinte que produziu a Constituição cidadã tinha apenas 5% de parlamentares mulheres, 4% tinham menos de 30 anos de idade e mais de 70% tinham formação de nível superior. Além disso, 32% eram empresários, e somente 12% eram servidores públicos.

 

Segundo pesquisa em jornal da época, eleitos sob a luz da mobilização popular por diretas que sacudiu o País, 32% dos deputados se autodefiniam como de centro; 24% como de centro-direita e 12% como de direita, somando uma ampla maioria de 68% dos parlamentares com tendência centro-direita. Nesse contexto político, algumas questões atravessam a História: como a Constituição de 1988 conseguiu incorporar os direitos sociais, políticas universalistas e tantos outros avanços? Como foi barrada a expressão da maioria conservadora do Congresso Constituinte?

 

Uma das fortes razões foi, sem dúvida, a presença da memória recente da força popular mobilizada por mudanças. Ao lado disso, a ação política de lideranças e ativistas – e o Movimento da Reforma Sanitária é exemplar –, representações populares instaladas no cenário político atuando por pressão e realizando interlocução permanente com os parlamentares constituintes.

 

Havia um clima de negociação e havia legisladores que entendiam ser sua função ouvir os anseios da sociedade e construir acordos entre as distintas forças políticas e econômicas. Nessa dinâmica de lutas sociais, foi possível negociar até mesmo com as forças conservadoras patrimonialistas, que desde sempre tratam o Estado brasileiro como se deles fosse.

 

O amálgama desse ‘Pacto Social’ foi o sentimento de que era hora de pagar a enorme dívida social acumulada desde o Brasil Colônia, aprofundada durante a ditadura militar.

 

Recuperar a história recente da cultura de esquerda é útil para fortalecer argumentos por resistência e convencer de que a luta não está perdida. Serve para refletir e concluir que, talvez, o que tem faltado é ação política concreta, politização, discussão cara a cara e fortalecimento dos argumentos. Mudança de linguagem e de tácticas para mobilizar e fazer pressão política. Mais ação sobre a política real.

 

Entretanto, analisar a História é imprescindível para constatar que os interesses de classe não se esvaíram com o Pacto Constituinte, ao contrário, logo observou-se o início de uma ofensiva das classes conservadoras. Após a promulgação da Constituição, as elites econômicas e políticas se mobilizaram por mudanças na Carta Magna resultando na verdadeira desfiguração do seu caráter enquanto parâmetro de bem-estar universal.

 

O fato é que essas elites políticas e econômicas nunca defenderam a cidadania e os direitos sociais. Ao longo dessas três décadas, investem na restituição da ordem anterior para garantir um Estado que legitime acumulação capitalista, assegurando o baixo custo do trabalho, não importando o quanto gere de pobreza e aumente as desigualdades social, econômica e cultural.

 

Se nos recentes momentos de prosperidade todos ganharam – uns muito mais que outros –, promovendo uma aparente e fantasiosa harmonia entre as classes e frações de classes, que permitiu ao Estado implementar políticas sociais redistributivas, nos momentos de crise, o que pretendem é garantir os ganhos. Assim, retoma-se o pacto permanente entre a elite política e a burguesia econômica para restituir o modelo neoliberal de mercado, com ataques sem precedentes aos direitos conquistados, bastando mencionar a ofensiva da reforma trabalhista e da previdência.

 

Como a história recente já demonstrou, não é possível construir um pacto entre os grupos que proclamam por ‘nenhum direito a menos’ com aqueles que defendem ‘nenhum centavo a menos’. Do confronto desses interesses é que pode resultar uma saída para o País. É pela via da política, e não das entranhas da crise ou dos grupos que dela se satisfazem que é preciso procurar alternativas. Para isso, a agregação e unidade de forças cujo filtro mínimo deve ser o compromisso com os interesses públicos, do povo e da pólis.

 

O ponto central de análise deve reconhecer que o traço estrutural do capitalismo contemporâneo é de que o mercado e o sistema financeiro vêm praticando orgias desenfreadas, levando o sistema produtivo ao fundo do poço. Nesse contexto, não há mais possibilidades de acumular capital na economia produtiva, e, assim, descarta-se o valor da força de trabalho. A captura absoluta do Estado brasileiro pelos interesses do sistema financeiro corrói qualquer possibilidade de avanço do clamor popular por desenvolvimento e justiça social. Restabelecer um ambiente político de mobilização democrática e desmontar essa hegemonia imposta ao País, garantindo os interesses populares, constituem desafios para a resistência em marcha.

 

O caráter mais significativo dessa resistência é a atual retomada das ruas pelas massas organizadas em defesa da reconstrução republicana, com democracia participativa, vale dizer, na tradição da democracia direta. A inovação é justamente a unidade entre forças que reúnem movimentos sociais, sindicatos, intelectuais e parcelas importantes da sociedade. Hoje o sentimento que prevalece é o da unidade, considerada necessária para mudar os rumos da economia, barrar os retrocessos e restabelecer as instituições e a prática da democracia.

 

A presença do movimento sindical para a luta política deve ser celebrada. Dá-se conta deque, a cada dia, surgem em todo o País grupos de ação política mobilizados pela convicção de que a política de frente ampla é a alternativa para interromper a desconstrução nacional e realizar um projeto nacional-popular.

 

Em resposta ao movimento e mobilização da sociedade, é do maior significado a instalação, na Câmara dos Deputados, da Frente Suprapartidária pelas Diretas Já, constituída de parlamentares filiados às mais diversas siglas e comprometidos com as mais diversas correntes de pensamento.

 

Celebramos a política de um bloco popular e de esquerda, transitando e mobilizando núcleos locais de ação política. É a pedagogia da práxis protagonizada por frentes políticas, como a Frente Povo sem Medo e a Frente Brasil Popular construídas pela reunião de partidos, centrais sindicais e movimentos sociais por unidade do campo popular.

 

Se a crise vem contribuindo para agregar forças progressistas, ela vem demonstrando também, a cada dia, a ilegitimidade da representação política tanto no Legislativo como no Executivo. Câmara e Senado se dedicam a destruir, em admirável velocidade, o que ainda resta de Estado social e de nação. Conduzido por um presidente ilegítimo golpista, o Executivo se afunda em sua desordem moral inesgotável. Nesse contexto, desnuda-se ainda a imparcialidade do Judiciário desfazendo as esperanças por justiça mesmo que historicamente esse poder não tenha como característica nada mais além do que o conservadorismo.

 

A contribuição conservadora da grande imprensa, no Brasil, impõe projeto próprio pautado no monopólio do pensamento único se transformando em poderosa trincheira da luta ideológica do capital rentista.

 

Do sustentáculo da ilegitimidade desses poderes, ergue-se a coalizão antinacional que surrupiou o governo e que conta com o apoio majoritário do poder econômico, exigindo ‘reformas’ cobradas pelo capital rentista, a qualquer custo e independentemente do quadro político. Para eles, democracia e legitimidade são abstrações toleradas somente quando postas a serviço dos interesses das burguesias e dominantes.

 

Que haja clareza quanto à dimensão da luta que o povo brasileiro terá que se empenhar para garantir outro projeto de País e de futuro. Além de combater e retirar os usurpadores do poder executivo, a frente deve garantir novas eleições. Só um presidente legítimo e apoiado nos movimentos sociais poderá, como assinala o Plano Popular de Emergência da Frente Brasil Popular, promover

 

[…] as reformas estruturais necessárias para romper com o modelo de capitalismo dependente que tem produzido, entre outras chagas, o empobrecimento dos trabalhadores, especialmente das trabalhadoras e da população negra, injustiça social extrema, perda de independência e recessão econômica, ao mesmo tempo em que concentra renda, riqueza e propriedade nas mãos de um punhado de barões do capital. (FRENTE BRASIL POPULAR, 2017, P. 1).

 

Todavia não bastará daqui para a frente cumprir essas difíceis tarefas. É preciso uma reforma política. Somente a consciência política que se alastra no meio do povo será ferramenta para mudanças no Congresso Nacional, essencial para avançar em projetos de mudanças. Por agora, o Fora Temer e as Diretas já, agregando o indispensável ‘Nenhum Direito a Menos’, constituem os pontos de partida!

 

Unidade de forças a favor do Brasil e de nossa gente!

 
Ana Maria Costa
Diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e editora associada da Saúde em Debate

 

Maria Lucia Frizon Rizzotto
Diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e editora científica da Saúde em Debate

 

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