O desmonte da Indústria Farmacêutica Brasileira e a falta de medicamentos

por Paulo Henrique de Almeida Rodrigues

Desde a primeira metade deste ano, vem ocorrendo denúncias de falta de diversos medicamentos, seja no Sistema Único de Saúde (SUS), seja nas farmácias privadas. Participantes de reunião na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, realizada em 25 de abril de 2019, relataram, por exemplo, dificuldade no acesso de pacientes a medicamentos contra a hepatite C – a única das hepatites virais que tem cura em 95% dos casos (Câmara dos Deputados). Em 7 de maio de 2019, o Jornal Nacional da Rede Globo denunciava que dos 134 medicamentos entregues pelo Ministério da Saúde aos estados, 25 estavam em falta ou com entregas insuficientes e 18 tinham estoques baixos (g1.globo.com). Em Recife, o movimento “Pela Manutenção da Vida” mobilizou centenas de pessoas em frente à farmácia de Pernambuco (SUS), na Praça Oswaldo Cruz, em 13 de maio de 2019, contra a falta de diversos medicamentos, inclusive para pacientes pós-transplantados (Diário de Pernambuco). Em maio deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), recolheu lotes de cerca de 200 tipos de medicamentos da família das “sartanas” para hipertensão, para detectar impurezas nos princípios ativos dos mesmos, que são importados da China ou da Índia (Anvisa: 08/05/19; Estadão: 09/05/19). Há notícias do desabastecimento desses medicamentos, desde então, prejudicando milhões de hipertensos em todo o Brasil.

Pode-se dizer que o Brasil vive atualmente uma situação de grave vulnerabilidade sanitária, decorrente da dependência tecnológica no setor farmacêutico e da dependência da importação tanto de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), principalmente da China e da Índia, quanto de medicamentos acabados prontos dos grandes laboratórios estadunidenses e europeus (RODRIGUES ET AL, 2018). Como foi possível que o abastecimento de medicamentos no país tenha chegado a esta situação? Como o Brasil se tornou vulnerável do ponto de vista sanitário? A resposta a esta pergunta obriga a conhecermos de forma rápida as políticas industriais farmacêuticas desenvolvidas desde que as políticas econômicas neoliberais foram impostas ao Brasil nos anos 1990, no auge da chamada crise da dívida externa. É importante saber, em primeiro lugar, que entre 1930 e 1990, o Brasil teve uma política econômica principalmente protecionista em relação ao desenvolvimento industrial, que promoveu a substituição de importações de produtos industriais que passaram a ser feitos no país, além de ter capacitado tecnologicamente o parque fabril brasileiro, inclusive a indústria farmacêutica brasileira.

Um marco importante dessa política, foi a criação da Companhia Nacional de Álcalis (CNA), em 1944, no atual município de Arraial do Cabo (RJ), durante o governo Getúlio Vargas. Segundo a farmacêutica Catalina Kiss, a Companhia Nacional Álcalis “foi planejada para produzir matérias-primas básicas – carbonato de sódio, barrilha e hidróxido de sódio, soda cáustica conhecidos como álcalis sódicos –, itens essenciais para impulsionar a indústria de transformação” (Kiss, 2018, p. 101-102). Tais matérias-primas são fundamentais para a indústria química como um todo e particularmente a produção de medicamentos. Em, 1952, o governo de Getúlio Vargas criou a Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (CACEX), importante instrumento de proteção tarifária para a indústria brasileira, que tornou difícil a importação de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) para a produção de medicamentos (LAFER, 2002, p. 74). Isso forçou a produção no Brasil desses insumos, reduzindo a dependência do país à importação desses produtos, uma vez que a produção nacional abastecia a maior parte das necessidades da indústria.

Mesmo durante a ditadura militar (1964 a 1985), foram tomadas importantes medidas para proteger a indústria farmacêutica nacional. O governo militar deixou de reconhecer patentes para medicamentos em 1969 pelo Decreto-Lei nº 1.005/ 1969 (Presidência da República, 1969), decisão mantida pela aprovação da Lei nº 5.772/1971 (Congresso Nacional, 1971), o que permitiu que o país pudesse reproduzir diversos medicamentos, sem pagar pelos extorsivos custos das patentes para os laboratórios estrangeiros. O regime militar brasileiro estabeleceu, ainda, o controle de preços através do Decreto nº 61.993/ 1967 e criou a Comissão Nacional de Estímulos à Estabilização de Preços (CONEP), que decidia sobre os pedidos de reajuste de preços, do mesmo ano, função que passou a caber ao Conselho Interministerial de Preços (CIP), criado pelo Decreto nº 63.196/1968 (Kiss, 2018, p. 120).

Todas essas medidas que protegiam a produção interna de medicamentos e a manipulação dos preços pelos laboratórios nacionais e estrangeiros, foi desmontada pela política neoliberal. Em 1990, Collor de Mello extinguiu a CACEX, e com ela a proteção à produção interna dos insumos farmacêuticos ativos, desde então, o déficit com a importação desses produtos não parou de aumentar (MAGALHÃES et al, 2003, p. 46). Entre 1995 e 2014, o déficit aumentou 488,3%, chegando a US$ 2,58 bilhões de dólares em 2014 (Rodrigues, Kiss e Costa, 2018, p. 13). Uma das medidas mais criminosas dos governos neoliberais foi o reconhecimento de forma radical e precoce o acordo internacional de patentes, TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Rights), aprovado em 1995.

Collor de Mello enviou em 1993, um projeto de lei de urgência que encaminhava a proposta estadunidense para o Acordo TRIPS, que continha itens muito mais duros do que os que foram aprovados em 1995. O projeto foi aprovado em janeiro 1996, durante o governo FHC, eu o aprovou na íntegra, sem cortes, e desde então o Brasil passou a ter uma das piores e mais servis legislações de patentes do mundo, a Lei nº. 9.279/1996 (KORNIS et al, 2008, p. 92). Esta Lei abriu mão, por exemplo do prazo que o acordo TRIPS permitia que os países continuassem sem reconhecer patentes até o final de 2005. Enquanto o Brasil adotou com nove anos de antecedência o reconhecimento de patentes, a China e a Índia, cujas políticas industriais eram semelhantes à brasileira, até então, aproveitaram o prazo até o último dia, desenvolvendo o que hoje são as maiores indústrias químicas e farmacêuticas do mundo. Enquanto isso, a indústria farmacêutica brasileira deixou praticamente de produzir insumos farmacêuticos ativos – hoje menos de 5% das necessidades são atendidos pela produção interna – e só produz medicamentos de baixo conteúdo tecnológico e baixo valor agregado.

As principais políticas farmacêuticas seguidas pelo Brasil no período de dominação neoliberal foram o enfrentamento dos interesses dos laboratórios internacionais em relação aos antirretrovirais (medicamentos para AIDS) e o desenvolvimento da produção interna de medicamentos genéricos nos anos 1990, além da política de Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDPs) no governo Lula. A mais vitoriosa delas foi a vitoriosa queda de braço com os laboratórios multinacionais em relação aos antirretrovirais garantida pela capacitação do laboratório público de Farmanguinhos para fazer engenharia reversa, depois de muita pressão dos movimentos sociais brasileiros. A produção interna de genéricos cresceu muito desde os anos 1990, beneficiando principalmente a burguesia interna do setor farmacêutico e menos a população. Já a política das PDPs dos governos petistas, permitiram a absorção da capacidade tecnológica para a produção de alguns medicamentos cujas patentes de propriedade de laboratórios multinacionais já estavam para cair, enquanto asseguravam o acesso monopolístico dos mesmos ao mercado brasileiro durante o processo de transferência de tecnologia. Nenhuma dessas duas políticas gerou capacitação tecnológica importante, nem redução da significativa da dependência de importações.

O resultado desses quase trinta anos de neoliberalismo em relação aos medicamentos e uma crescente dependência brasileira de importações e da tecnologia estrangeira, além de enorme vulnerabilidade sanitária, que vem prejudicando a população, o setor público que tem de comprar medicamentos para os usuários do SUS e o risco de o país se ver praticamente sem medicamentos caso haja um agravamento da crise econômica e política internacional. A população já está pagando um preço alto demais com crescente dificuldade para ter acesso a medicamentos, em função da criminosa política de subordinação econômica ao imperialismo.

Referências

AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Esclarecimento quanto à presença de impurezas em medicamentos para hipertensão arterial. 08/05/19. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/219201/4340788/Sartanas+Portal_+08-05-2019+%28003%29+%28Dulce+Maria+Bergmann%29.pdf/621763d1-2bca-4d7b-ba5d-bbd765443a34; acesso em: 13/10/19
BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 1.005, de 21 de outubro de 1969. Código da Propriedade Industrial. DOU de 21/10/1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del1005.htm; acesso em: 05/02/18.
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BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 5.772, de 21 de dezembro de 1971. Institui o Código da Propriedade Industrial, e dá outras providências. DOU de 31/12/1971. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5772.htm#art130; acesso em: 05/02/18.
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Pacientes farão protesto contra falta de medicamentos na Farmácia de Pernambuco. 13/05/19. Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2019/05/pacientes-farao-protesto-contra-falta-de-medicamentos-na-farmacia-de-p.html; acesso em: 13/10/19.
ESTADÃO. Anvisa recolhe 200 lotes de losartana e outros remédios para pressão alta. 09/05/19. Disponível em: saúde.estadao.com.br/noticias/geral.anvisa-recolhe-200-lotes-de-losartana-e-outros-remedios-para-pressao-alta-confira-a-lista.70002822097; acesso em: 13/10/2019.
G1.GLOBO.COM. Doentes crônicos enfrentam o drama da falta de remédios. 07/05/19. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/05/07/doentes-cronicos-enfrentam-o-drama-da-falta-de-remedios.ghtml; acesso em: 13/10/19.
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LAFER, C. JK e o Programa de Metas (1956-1961): processo de planejamento e o sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
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